terça-feira, 29 de janeiro de 2019

INOCÊNCIA - PARTE 1, CAPÍTULO III







SOBRE BERTA

Quando eu nasci, Berta tinha seis anos. Mamãe contava que começara a sentir as dores do parto na véspera do aniversário de Berta, e devido a correria, todos tinham se esquecido de comprar-lhe um presente. Até mesmo vovó, que ainda era viva naqueles tempos. Quando me trouxeram para casa (as pessoas contavam aquelas histórias achando muita graça, menos Berta, que escutava tudo de braços cruzados e cara fechada), mamãe pareceu se lembrar do aniversário de sua filha mais velha de  repente, e por falta de presente, sentou Berta no sofá, colocando-me no seu colo e dizendo: “Tome! Aqui está o seu melhor presente: uma irmãzinha!” Dizem que Berta pareceu confusa, e depois começou a chorar e berrar tão alto, que tiveram que me tirar do seu colo!

Nossos aniversários – meu, de Berta e de Cristina - eram comemorados juntos, já que havia apenas uma semana de diferença entre as datas de Berta e Cristina e  um mês de diferença entre as datas de Berta e eu, e minha irmã odiava ter que aturar as decorações nas festinhas. Cristina não se importava, e até ajudava nos detalhes.

Não sei se por causa do nosso começo traumático, sempre senti que Berta guardava um pouco de ressentimento contra mim. Sabia que ela me amava, assim como eu a amava muito, mas às vezes, ela agia de maneira um pouco cruel, e sabia ser competitiva – principalmente quanto à afeição de papai, de quem sentia muito ciúme. Mas para seu desgosto, papai sempre demonstrou um carinho enorme por mim. Ele me chamava de “Minha Bonequinha.” Até mesmo depois que me tornei adulta. É claro que ele amava Berta, mas às vezes, ele se esquecia de deixar aquilo bem claro para ela. Berta orbitava em volta dele, principalmente quando eu estava por perto. Ela o rodeava quando ele estava no escritório, lendo seu jornal, e eu brincava de recortar minhas bonecas de papel sobre a sua escrivaninha. Berta chegava por trás dele e o abraçava, cobrindo-o de beijos. Papai às vezes ralhava com ela em tom de brincadeira: “Hey! Desse jeito, você vai acabar me enforcando, menina!”

Aquilo era o suficiente para que Berta saísse da sala pisando duro e me olhando de soslaio, como se eu tivesse alguma culpa.

Papai adorava sair com a gente. Aos sábados, enquanto mamãe e Flora cuidavam da casa e preparavam o almoço, ele colocava a mim, Berta e Cristina no carro, e nos levava ao zoo, à praia ou a qualquer outro lugar que crianças adoravam. Às vezes ele nos levava para pescar no lago. Quando  meus tios Aurora e Antonio compraram uma casa de campo perto da nossa, ele também levava meus primos Joanna e Marcelo. Éramos cinco crianças ao todo, e Berta quase tinha um ataque de nervos se ela não viajasse no banco da frente, perto de papai. Nós nos ajeitávamos na traseira do Aero Willys de papai. Aqueles eram dias felizes! Por volta do meio-dia e meio, estávamos todos em casa, e corríamos para tomar banho antes do almoço. Eu e Berta tínhamos permissão para usar o banheiro da suíte dos nossos pais, que tinha uma banheira enorme, enquanto meus primos tomavam banho em sua casa e Cristina podia tomar banho na nossa casa, no banheiro do corredor. Ela adorava usar nosso banheiro, pois dizia que ele era grande e arejado, diferente do banheiro do apartamento sobre a garagem onde ela morava com os pais, que era pequeno e escuro, sem janelas, com apenas um pequeno basculante.

Depois almoçávamos todos juntos. Se o dia estivesse bonito, Flora e Eugênio armavam uma grande mesa no jardim, debaixo da jabuticabeira, e juntavam-se a nós. Aquelas tardes sempre terminavam com todo mundo dançando “Twist” no piso escorregadio da varanda. Às vezes, eu me afastava de todos e ficava sentada em um canto, observando tudo aquilo, sentindo uma saudade estranha e sem razão de ser. Intuitivamente, eu sabia que um dia tudo aquilo seriam apenas memórias... eu nem suspeitava, ainda, que a perda da minha inocência seria uma coisa gradativa, e que cada episódio causaria muita dor. Aqueles dias se aproximavam no horizonte. Vinham junto com as nuvens negras de chuva que os derramavam sobre o telhado feliz da nossa casa. Aos poucos, eles aguardavam nos cantos da casa, em volta do jardim, prontos para esperar a hora certa para destruir tudo.

Berta tinha muitos amigos na escola. Era muito popular, e muito bonita também, embora eu achasse que ela não fosse tão bonita quanto Cristina. Ela tinha uma personalidade alegre, quase esfuziante, dominadora. Uma líder nata. Aonde quer que Berta estivesse, estaria cercada de admiradores. Os rapazes se apaixonavam por ela facilmente, embora raramente fossem correspondidos, e as moças tentavam copiar seu modo de vestir e se pentear. Eu a admirava, mas a maneira condescendente e distante com a qual Berta me tratava, fazia com que eu me mantivesse longe. Eu queria muito que ela me amasse. Faria qualquer coisa para que aquilo acontecesse, e quanto mais eu tentava e fracassava, mais eu me aproximava de Cristina. Berta não me tratava mal; simplesmente me ignorava a maior parte do tempo. Quando eu forçava as circunstâncias para tentar ficar por perto, ela se irritava e me colocava para correr, dizendo que eu não passava de uma criança. Se eu conseguisse ficar longe dela e de seus amigos, e fizesse tudo o que ela queria (às vezes ela precisava de mim para que papai a deixasse ir a certos lugares aos quais não permitiria que fosse sozinha, principalmente quando começou a namorar Sebastian) ela me tratava muito bem. Se eu concordasse em fazer pequenas tarefas para ela, quando estava em casa rodeada de seus amigos, como ir até a cozinha e pedir que Flora preparasse um lanche para todos, ela me tratava bem e permitia que eu ficasse por perto observando, “desde que eu não fosse uma intrometida.”

Quando eu reclamava com mamãe sobre essas coisas, ela apenas dizia, sem dar muita atenção às minhas mazelas: “Sua irmã já é uma mocinha. É natural que ela queira estar entre pessoas da sua própria idade. Você precisa fazer seus próprios amigos, Yara.” E eu tentava. Mas acho que na tentativa de parecer-me com o que eu achava que Berta era, e de agir como ela agia, as outras crianças acabavam me achando autoritária e metida, se afastando de mim. Daí eu me agarrava à Joana, e ficava pendurada na saia de Cristina quando me sentia fragilizada.

Eu tinha poucos amigos na escola, e era muito comum que eu fosse excluída das festinhas. Muitas vezes, na segunda-feira, eu escutava os comentários dos colegas antes das aulas, enquanto eles falavam das festinhas de aniversário no final de semana anterior – as quais eu quase nunca era convidada. Eu sofria com aquilo, mas fingia não ligar.

Mas Berta era convidada para tudo. Tanto, que muitas vezes tinha dois eventos em uma só noite. Todos a queriam por perto. Eu crescia à sombra de minha irmã mais velha, amando-a e me sentindo sempre apagada junto a ela, que nada fazia para que eu me sentisse bem-vinda. Se eu sabia que ela gostava de mim, eram por causa das raras ocasiões em que ela me defendia do bullying no pátio da escola, e convencia mamãe a me comprar presentes caros de aniversário que ela sabia que eu gostaria de receber. Então eu me sentia no céu! Quando eu e Berta estávamos bem uma com a outra, eu era a pessoa mais feliz e realizada do mundo.

Mais velhas, os ciúmes e a impaciência de Berta diminuíram. Nos tornamos boas amigas. Mas eu não mais precisava da amizade dela tanto assim, pois crescera sem a atenção dela, e acabei me acostumando com aquilo. Então eu me sentia mais tranquila em relação a ela, sem a necessidade de chamar sua atenção ou conseguir sua aprovação. Por incrível que pareça, aquela atitude a trouxe para mais perto de mim – não sei se por curiosidade ou admiração. Com o tempo, compreendi que aquela mania de Berta de sempre fazer questão de estar cercada de pessoas, era carência, e não auto confiança. Ela liderava porque tinha medo de desaparecer; ela temia a solidão. Ela precisava estar no centro para saber quem ela era. Ela tinha uma necessidade quase mórbida de saber-se amada, pois ela se via dentro dos olhares alheios, e não diante do próprio espelho. Berta precisava de aprovação constante, e não sabia lidar com críticas ou fracassos.

Mesmo durante os muitos anos que passamos separadas, ela tentou me procurar poucas vezes, e não insistiu quando não lhe dei atenção. Na verdade, eu queria que ela tivesse insistido; mas Berta tinha medo de ser deixada ao relento. Ela não queria insistir, pois não suportava a rejeição. Não sabia lidar com uma pessoa que não fizesse exatamente o que ela queria, e eu não estava disposta a continuar fazendo. Eu pensei que ela tinha desistido de mim porque não me amava, mas não tinha sido por isso que ela simplesmente me deixou ir embora. Descobri isso muito mais tarde – quem sabe, tarde demais. É que ela não conseguia sentir-se rejeitada. É que ela me amava demais para isso.

Quando papai morreu, eu tinha vinte e cinco anos, e ela, trinta e um. Ela não derramou uma lágrima sequer durante o velório, enquanto eu simplesmente me desmanchava. Mas quando todos foram embora, encontrei-a sentada na sala escura, os olhos vermelhos, as mãos trêmulas. Eu não sabia que ela estava ali. Quando acendi a luz e deparei com ela ali sozinha, ela se levantou e veio até mim, implorando:


-Por favor, Yara, não vá embora... eu não sei ficar sozinha...

 Eu segurei as mãos dela, repetindo que ela jamais estaria sozinha, pois tinha Sebastian, tinha mamãe e tinha seus amigos. Ela ficou me encarando durante muito tempo, e vi quando parou de chorar e suas sobrancelhas se crisparam de dor. Na hora, eu não compreendi aquilo, não sabia por que ela me olhava como se eu não tivesse entendido alguma coisa... ela respirou fundo, suprimindo um novo soluço, e concordando com a cabeça, deixou a sala. Hoje eu entendo o que ela quis dizer com aquele gesto e aquela súplica: Era de mim que ela precisava. Era a mim que ela queria ter por perto. Ela abriria mão de tudo se eu apenas ficasse e a ajudasse a passar por tudo aquilo.

Quando Berta compreendeu a minha importância, eu compreendi que, apesar de importante, ela não era indispensável à minha vida. Entendi que era capaz de me virar sozinha, e foi ela quem me ensinou a não depender dela, a não confiar em ninguém. Quando ela finalmente compreendeu que precisava de mim, eu já não mais precisava dela. A vida é engraçada.

(continua...)





segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Inocência - Parte I, capítulo II






SOBRE CRISTINA

Porque eu tinha crescido acreditando que eu tinha uma família perfeita, eu me orgulhava muito daquela ideia. Enquanto as casas dos meus amigos da escola começavam a ruir – eram os anos setenta, e os divórcios começavam a modificar as estruturas familiares, eu me orgulhava do casamento sólido dos meus pais, da estrutura segura da qual eu e minha irmã dispúnhamos. Adorava acordar no meio da noite e escutar, no corredor vindo do quarto dos meus pais, a respiração deles enquanto dormiam.

Lamentava ver os lares desfeitos dos meus colegas de escola, que ficavam divididos entre seus pais e suas mães, que brigavam na justiça para obter pensões ou a guarda deles. Algumas situações eram ainda piores, pois os pais simplesmente saíam de casa portando suas jovens namoradas e nunca mais queriam saber dos filhos. E as mulheres divorciadas eram vistas com receio pela sociedade, caso os maridos as tivessem deixado, e com desprezo, caso elas tivessem deixado seus maridos. De qualquer forma, a culpa era sempre da mulher, não importando se seus maridos tinham ido embora, trocando-as por exemplares mais jovens.

Mas eu me considerava livre daquelas classificações, pois tínhamos “um lar sólido”, como Flora gostava de dizer.

E é claro, eu tinha Flora, a minha segunda mãe. A minha Mãe Preta. Ela estava conosco desde que eu nascera, ou melhor, antes disso. Ela sempre existira em nossas vidas, e era parte da nossa família, e quando casou-se com Eugênio, segundo mamãe contava, eles tiveram muito medo de perdê-la. Assim, meus pais ofereceram a ele um emprego de jardineiro e caseiro, e Eugênio passou a ser um novo membro da família. Mais tarde descobri que a história não era bem aquela, mas durante anos, ela bastou para mim.

Eugênio e Flora viviam em um pequeno apartamento de dois quartos que ficava sobre a garagem. Tomavam conta de tudo enquanto estávamos na cidade estudando ou trabalhando. Quando a família chegava, nas épocas de férias, natal ou finais de semana prolongados, eles estavam lá para nós. No começo, chamavam a atenção de todos por serem um casal inter-racial – Eugênio era branco e tinha olhos azuis, e Flora era negra. Esse tipo de coisa costumava chamar a atenção, principalmente numa cidade pequena como Rio da Prata. Mas o casal logo deixou de ser a curiosidade local, sendo aceito pela maioria dos moradores – a não ser algumas velhas famílias mais “tradicionais” que faziam questão de torcer o nariz quando um deles passava por Eugênio ou Flora no mercado.

Rio da Prata, que fica no interior de Minas Gerais, é uma cidade pequena, que naqueles tempos sobrevivia principalmente da atividade do comércio local e de uma ou duas fábricas que existiam por lá, sendo que uma delas, de laticínios, pertencia ao meu tio Antônio, casado com a irmã de minha mãe. Tínhamos apenas dois cinemas, um hospital, alguns restaurantes (o maior e mais tradicional também pertencente ao meu tio Antônio), o coreto da praça, um clube de elite, uma piscina pública e mais ou menos trinta mil habitantes.

Em Rio da Prata passou-se a história que eu vou contar. Apesar de só ter passado a morar em Rio da Prata na minha segunda infância, minha família estava sempre ali, nas férias e em alguns finais de semana e feriados prolongados. Foi na nossa casa de campo que eu fiz as minhas primeiras descobertas sobre mim mesma e sobre os rostos ocultos disfarçados sob as máscaras que as pessoas usavam. Nossa história começou bem antes de eu ter nascido, e o que eu escutei dela através de meus pais, Flora ou Eugênio, não era totalmente verdadeiro. Mas tudo começou assim:

Quando minha mãe engravidou de Berta, Flora também engravidou de sua única filha, Cristina. As duas meninas nasceram com apenas uma semana de diferença, e tornaram-se amigas, comemorando aniversários juntas, e sempre que minha família chegava em Rio da Prata para uma temporada, as duas não se largavam. Eu só cheguei seis anos depois. Cresci tendo Cristina, Eugênio e Flora sempre por perto, e jamais considerei-os como empregados da casa, principalmente porque eu era inocente demais para saber a diferença. Eram eles que tomavam conta de mim quando meus pais saíam à noite com minha irmã mais velha para irem aos bailes dançantes onde as crianças não entravam. Quando eu me machucava, quase sempre era Flora quem cuidava dos meus joelhos ralados, aplicando um medicamento que ardia, e soprando quando eu chorava. Às vezes, Cristina fazia isso.

Cristina era uma menina excepcionalmente bonita; tinha a pele morena, quase mulata, os olhos azuis do pai e cabelos negros e ondulados. Logo começou a chamar a atenção pela sua extrema beleza, e por onde passava, as pessoas olhavam para ela. Eu a considerava uma irmã mais velha – ela era uma irmã mais velha, nunca me ensinaram a vê-la de outra forma. Pelo menos, não até os meus cinco, seis anos de idade. Eu era uma criança pequena, e não me perguntava o motivo pelo qual ela dormia no quarto comigo e Berta quando estávamos lá, enquanto Eugênio e Flora dormiam no apartamento sobre a garagem. Tinha sido sempre daquela forma. Também nunca tinha me perguntado por que Cristina voltava para o apartamento e meus pais trancavam as portas da casa quando íamos embora, deixando as chaves com Eugênio e Flora, recomendando que “a menina” (Cristina) não ficasse brincando lá dentro sozinha. Era assim que as coisas se davam, e pronto.

Algumas vezes eu via minha mãe dando ordens na cozinha, e notava que Flora a chamava de Dona Mirtes, mesmo que as duas tivessem a mesma idade, e eu não entendia muito bem aquilo; mas acabava concluindo que era coisa de gente grande e que não era da minha conta. Da mesma forma, Eugênio se dirigia aos meus pais chamando-os por Dona Mirtes e 'Seu' Nelson. Mas meus pais os chamavam pelos seus nomes, simplesmente.

Cristina era meu 'role model.' Eu não era lá muito bem-vinda junto à Berta quando ela estava com os amigos, pois eram todos bem mais velhos que eu. Ela simplesmente aturava a minha presença, livrando-se de mim sempre que podia, dizendo que os lugares que eles frequentavam não aceitavam crianças. Cristina muitas vezes era convidada para sair com minha irmã e os amigos, e às vezes, Berta emprestava-lhe algumas roupas mais bonitas – embora Cristina sempre ganhasse as roupas usadas de Berta, mas eu também “herdava” as roupas da minha prima Joana, um ano mais velha, quando elas não serviam mais. Eu me sentava na cama e ficava olhando as duas se arrumando para sair, passando lápis preto nas pálpebras inferiores, usando o mesmo brilho labial rosa discreto e perguntando uma à outra se a calcinha estava 'marcando' sob a calça comprida justa estilo pantalona.

Eu adorava Cristina, não somente porque ela era linda, mas porque ela sempre me tratava bem. Quando Berta perdia a paciência comigo, era nos braços dela que eu chorava. Ela me pedia que tivesse um pouco de paciência, pois logo estaria maior e teria meus próprios amigos. E para me fazer parar de chorar, ela pegava o estojo de maquiagem usado que ganhara de Berta e começava a me pintar. “Beeem clarinho,” ela dizia, enquanto espalhava a sombra azul sobre minhas pálpebras fechadas e eu sentia seu hálito com cheiro de chicletes de hortelã. Minha mãe não gostava de me ver maquiada, e sempre ralhava com Cristina quando isso acontecia, e quando mamãe ralhava com Cristina, Flora também ralhava com ela. Dizia que ela estava ali para se comportar e fazer o que tinha que fazer. E logo dava a ela uma tarefa – buscar os ovos no galinheiro, ou um pé de alface na horta. Ela obedecia sem contestar, rindo e piscando um olho para mim, e eu ia com ela.

Eu também amava Flora, e guardo memórias dos tempos em que eu era muito pequena e ela me punha para dormir. Ainda posso sentir seu cheiro, uma mistura de sabonete e desodorantes baratos com os cheiros de laranja, maçãs e temperos das muitas comidas que ela cozinhava para nós. Flora era um pouco gordinha, e tinha seios grandes. Era naqueles seios que eu muitas vezes deitava a minha cabeça de criança antes de adormecer. Meus pais me contavam que mamãe não tivera muito leite quando Berta nascera, e que Flora tinha sido sua ama de leite.

Eu era uma menina magrinha, cabelos castanhos muito lisos e escorridos cortados em estilo channel na altura dos ombros. Usava uma franja lisa que vivia precisando ser aparada, pois eu detestava cortar a franja, e então mamãe muitas vezes me obrigava a usar grampinhos que mantinham a franja 'no lugar' e não prejudicavam a 'vista,'. Eu detestava aquilo! E quando Cristina descobriu o quanto eu detestava, ela mesma passou a aparar a minha franja a cada duas semanas, mantendo-a sempre do mesmo tamanho – escondido de mamãe, é claro. E eu não me importava quando era ela que cortava meu cabelo. Ela tinha mãos precisas e firmes, e o fazia muito bem. Dizia que um dia teria seu próprio salão de cabeleireira – o que mais tarde realizou-se. Me ensinava a fazer tranças e coques, e para isso, eu penteava os cabelos dela, que eram longos. Eu adorava quando nos sentávamos nas escadas da frente da casa, ela na minha frente, cotovelos apoiados nos meus joelhos, enquanto eu trançava seu cabelo.

Gostava de andar com ela pela rua, quando Flora pedia que ela fosse ao mercado comprar qualquer coisa, pois todo mundo olhava para ela, e consequentemente, eu também me sentia observada. Eu andava de mãos dadas com ela pelas calçadas, sorrisinho maroto no rosto e cabeça erguida. Um dia, ao passarmos por um grupo de rapazes, um deles sorriu para nós e perguntou-me, em tom de graça, qual era o nome da beldade.  Enquanto passávamos por eles, olhei para trás e respondi. “É Cristina. Ela é minha irmã!”

Somente anos mais tarde eu entenderia o porquê das gargalhadas deles e das pessoas que estavam próximas, e das lágrimas que arderam no rosto de Cristina enquanto ela começou a andar mais rapidamente, puxando-me pela mão. No mercado, ela me chamou em um canto, secando as lágrimas com as costas das mãos, e me disse: 

-Nós não somos irmãs, Yara, e você não pode ficar repetindo isso por aí, entendeu?

 Eu não entendi nada, e tentei argumentar com ela, que me explicou: 

-Irmãos são filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Irmãos têm a mesma cor de pele.  

Eu disse: 

-Mas eu gosto mais de você do que da Berta!

 Ela sorriu um pouco, mas logo ficou séria de novo: 

-Nunca mais diga isso, Yara. Berta é a sua irmã. Eu sou negra, e não posso nunca ser chamada de sua irmã.

Naquele dia, eu cheguei em casa muito magoada, e não quis almoçar. Ignorei o convite de uma amiguinha para brincar. Acho que eu tinha uns cinco anos naqueles tempos, e não compreendia o porquê de Cristina não querer ser a minha irmã. Mas não tive coragem de perguntar a ninguém sobre aquilo, talvez temendo, instintivamente, que alguma coisa se quebraria. Então, eu simplesmente esqueci. Continuei fingindo que Cristina era minha irmã, e ignorei todo o resto, embora nunca mais tivesse dito aquilo em público.

(continua)





quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

INOCÊNCIA - Parte I, capítulo I








PARTE I - YARA




A CHEGADA


Quando abri a porta da frente e coloquei as malas no chão, fiquei lá parada algum tempo, olhando para a casa escurecida, como se estivesse esperando que alguma coisa acontecesse. Tive a esperança – ou talvez, o medo – de que as memórias  que estiveram trancadas dentro daquela casa pudessem se transformar em criaturas sólidas e virem me abraçar (ou me sufocar). Quem sabe, minha mãe viria da cozinha enxugando as mãos no avental e me perguntando como tinha sido a escola; talvez meu pai estivesse sentado na sala de estar fumando aquele cachimbo que minha mãe costumava chamar de irritante, mas cujo cheiro eu adorava e que passou a fazer parte da personalidade da casa, entranhado nas paredes e cortinas; talvez Berta, minha irmã seis anos mais velha, estivesse falando ao telefone no corredor da casa com Sebastian, que então ainda seria seu namorado, o fio do telefone bem esticado até o armário que ficava sob a escada onde ela estaria a fim de ter alguma privacidade. Se eu olhasse para trás, quem sabe veria Eugênio trabalhando no jardim, enquanto Flora, que eu considerava a  minha segunda mãe, - a minha mãe preta - estaria lendo para ele a lista de compras para o jantar.

Logo após o almoço, eu poderia escutar as vozes alegres de meus primos – Joana e Marcelo – entrando pela casa. Durante a tarde, Berta se trancaria no quarto com suas revistas, e Marcelo se juntaria ao meu pai ou então estaria no jardim a procura de Cristina, por quem ele nutria uma paixão mais que apenas adolescente; e eu, criança, estaria correndo pelos campos ao redor, na companhia de minha priminha Joana.

Aquela era a nossa casa de campo, que mais tarde, após a doença de papai, tornou-se o nosso lar permanente.

As vozes e cenas chegaram com muita força. Senti-me um pouco tonta, e tive vontade de fechar a porta e nunca mais voltar, mas eu sabia que já tinha passado da hora de enfrentar os meus fantasmas. Na última vez em que pusera meus pés na nossa casa de campo, há exatos onze anos, eu prometi que nunca mais voltaria. E cumprira a minha promessa até então. Para mim, foi uma grande surpresa saber que minha mãe deixara a casa para mim, e não para Berta, que tinha ficado e cuidado dela depois da morte de papai. Já eu, afundada em meus ressentimentos, que cresceram ao longo dos anos devido à minha imaginação fértil – que, segundo meu pai sempre dizia, era fadada a criar ideias equivocadas sobre as pessoas – me mantive longe. Porque eu não sabia como lidar com as coisas. Não sabia perdoar, e nem queria admitir que pudesse estar entendendo tudo erradamente.

Dei o primeiro passo e entrei na casa. Automaticamente, levei a mão ao interruptor junto à porta, e ela se iluminou de repente, revelando cenas muito conhecidas da minha vida; da porta, eu via o tapete – já um pouco gasto, mas o mesmo imenso tapete de fundo vermelho rubi com desenhos florais que mamãe escolhera ela própria. Eu estava junto com ela naquele dia, e apesar de ter apenas quatro anos, ela pediu minha opinião: “Yara, você gosta?” E eu balancei a cabeça contente, concordando com ela, sentando-me sobre o tapete e passando as mãos sobre a trama macia.

O mesmo velho grupo de sofás  – agora estofados de bege escuro – e o mesmo conjunto de mesinhas de centro e laterais de madeira clara, com pés palito e formato de aquarela. As muitas almofadas que ficavam sobre o sofá tinham desaparecido, deixando-o nu. Nas janelas, as persianas tinham sido trocadas (eram novas) mas por outras exatamente iguais às antigas. Em volta delas, as sanefas de gorgorão pesado, há muito fora de moda, tinham sido lavadas e recolocadas. Minha mãe nunca tinha se preocupado muito com a moda doméstica, e mantinha a casa sempre igual.

A cozinha tinha o mesmo aspecto de antes, parecendo agora muito antiquada. Sobre a pia de mármore branco, a janelinha que dava para a parte lateral do jardim tinha sido aumentada, mas ainda tinha cortinas estilo romântica de xadrez azul e branco.

Subi os degraus, agora acarpetados de marrom-claro, e fui olhar os quartos. Parei no corredor e acendi as luzes. Respirei fundo. Eles não tinham modificado a estrutura da casa, e ainda havia o velho banheiro de azulejos azuis até o teto e piso de pastilhas brancas já amarelecidas. A banheira de louça com pés imitando garras de urso também era a mesma.

Os primeiros quartos eram os nossos – meu e de Berta. As duas camas de solteiro continuavam por lá, e para minha surpresa, também as mesmas cortinas cor-de-rosa bebê, já muito desbotadas. Sobre a escrivaninha do meu quarto, reconheci meu velho estojo de lápis de cor, e também alguns livros didáticos que eu usara na escola e que levava para estudar nas nossas viagens durante as férias (ordens de mamãe), embora mal tivesse tocado neles. O quarto ao lado era de hóspedes. Nele havia apenas uma cama coberta com um lençol branco e um armário, onde guardávamos algumas coisas que não usávamos muito, a não ser quando Duílio, o sócio de papai, passava a noite lá em casa. Porém, mais tarde, ele passou a ocupar o quarto junto ao escritório, no primeiro andar. Acho que minha mãe não queria um garanhão junto às suas mocinhas, que estavam crescendo.

Eu abri a porta do armário devagar e deparei com os patins de Berta. Quando ela cresceu, eles ficaram para mim, mas eu nunca consegui patinar. Desisti após o primeiro grande tombo. Também vi um casaco que eu ganhei quando eu tinha mais ou menos dez anos; era de pelos falsos na gola, e xadrez vermelho com cor-de-rosa berrante. Imediatamente vieram-me à mente algumas das ocasiões em que eu o usei, e eu o adorava tanto, que só deixei de usá-lo quando as mangas ficaram curtas demais. Como ele pareceu-me feio então!  No armário também havia roupas antigas de Berta e algumas camisas que reconheci como sendo de papai. Meus olhos se encheram de lágrimas, e eu tirei uma delas do cabide, levando-as de encontro ao rosto, tentando sentir um restinho de perfume da colônia que ele usava, mas tudo o que consegui foi cheiro de mofo e espirros. Algumas coisas jamais voltam.

Havia um vestido de mamãe – o mesmo que ela usava no último dia. No nosso último dia. Me perguntei por que aquelas coisas ainda estavam ali. Deveriam tê-las jogado fora. Seria bem mais fácil não vê-las.

Fechei o armário, e atravessando o corredor, cheguei ao quarto dos meus pais. O maior quarto da casa. Fiquei surpresa ao ver que mamãe demolira parte da parede leste, dando espaço a uma enorme janela e vista para as montanhas onde o sol nascia. Pensei que ela talvez tivesse passado seus últimos dias ali, olhando para aquela paisagem, e quem sabe, recordando os momentos felizes e também se arrependendo de muitas coisas. Um bom lugar para morrer: acho que todos nós precisamos de um. Da cama alta de hospital que tinha sido colocada no quarto, ela podia ter uma linda vista, todos os dias e noites.

Todos precisamos de um lugar para morrer, onde nossas memórias possam voltar aos poucos, um lugar onde não seremos perturbados por apitos de aparelhos hospitalares que nos mantenham vivos à força, um lugar sem paredes cinzentas e, especialmente, um lugar que tenha janelas.

Berta havia me contado que mamãe morrera em casa, pacificamente, em uma manhã de sábado. Berta passara a noite praticamente em claro, controlando sua respiração difícil e erguendo-a quando ela tossia. Quando Berta abriu os olhos após cair no sono  de exaustão, mamãe a olhava fixamente, o rosto tranquilo. Berta me contou que ela sorriu, após muito tempo sem fazê-lo, e disse: “Bom dia.” E se foi com o ar da letra “a”. E isso foi tudo. Não houve últimas palavras significativas, e nem recados que ela desejasse deixar para mim. Não houve pedidos de desculpas ou explicações, e ela nem sequer mencionou o fato de que eu me recusara a visitá-la durante todos aqueles anos, mesmo após saber de sua doença. Naqueles meses que passara ali, despedindo-se da vida, segundo Berta, mamãe nunca mencionou meu nome. Mas deixara-o no testamento, onde legou-me a casa de campo, que mais tarde, tornara-se a casa onde a família viveria oficialmente. Por que? Acho que jamais descobrirei.


(Continua...)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

SEMENTES - um micro-conto










Das mãos entreabertas, caíam as sementes no solo, vagarosamente espalhando-se em uma longa e fina fileira. Muitas caíam sobre as pedras que ladeavam o passeio, e outras, seriam levadas pelo vento ou pelos bicos dos pássaros e replantadas em lugares inimagináveis. Algumas - a minoria - germinaria, e outras não. Mesmo entre as que germinassem, nem todas cresceriam e se tornariam plantas adultas. Das que se tornassem plantas adultas, algumas não sobreviveriam, sendo dizimadas por raios, secas, tempestades ou pelos machados e motosserras dos homens. 

Eu observava as sementes que caíam daquelas mãos, enquanto soprava uma prece silenciosa a Deus, para que as protegesse, mesmo sabendo que nem todas as preces seriam atendidas. 





A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...