segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XII









O ANJO NO PORÃO- CAPÍTULO XII




A escola estava em polvorosa; Getúlio Vargas, o então Presidente da República, estava em, Petrópolis, hospedado no Palácio Rio Negro, e fora anunciado que ele passearia pelas ruas da cidade naquela tarde. As freiras preparavam as crianças, fazendo anúncios nas aulas da manhã, e avisando que as aulas da tarde estariam canceladas, e que todas elas deveriam estar usando seus uniformes de gala após o almoço, pois iriam para a frente da escola a fim de verem o Presidente passar. Bandeirinhas de papel eram distribuídas entre as crianças, que eram instruídas a agita-las a fim de saudar o chefe da nação. Getúlio Vargas, uma criatura simpática e acessível, parava para falar com as meninas e cumprimentar as freiras. Às vezes, apertava as mãos de algumas delas. As alunas mais antigas estavam acostumadas àquele ritual, mas ele era novidade para as alunas mais novas, como Regiane. Ansiosa, a pequena perguntou à Irmã Dulce:

-O que é um Presidente da... da.. República?

-Presidente da República, Regiane, é um homem muito importante que manda em todo o país. Ele toma decisões muito sérias em nome da Nação. 

-Que tipo de decisões? O que são decisões?

-Decisões são coisas que decidimos, ou seja, que queremos ou precisamos fazer. As decisões de um Presidente da República tem a ver com o bem-estar do povo e a segurança do país, por exemplo.
Regiane refletiu por um momento, os olhos perdendo-se pelas nuvens que passavam à janela. A sala de aula estava vazia, e as outras crianças tinham ido brincar no pátio, pois era a hora do recreio. Irmã Dulce ficou aguardando pacientemente enquanto corrigia alguns cadernos, pois sabia que Regiane teria mais perguntas. 

-Ele pode fazer o que quiser, pois é a pessoa mais importante do país,. Certo?

A freira parou de corrigir o caderno, pousou o lápis sobre a mesa e baixou os óculos:

-Hum... quase isso. Um Presidente pode fazer quase tudo.

-Se eu pedir uma coisa a ele, a senhora acha que ele pode me dar?

Irmã Dulce sorriu:

-Mas o que é isso que você tanto quer, minha pequena?

Regiane arregalou os olhos:

-Eu queria ter uma casa para poder morar com o meu pai. 

Irmã Dulce sentiu que os olhos ardiam e que ela poderia começar a chorar. A simplicidade das crianças sempre a surpreendia e encantava. 

-Sinto muito, querida, mas acho que se você pedisse a ele uma casa, ele não poderia dar-lhe uma...
-Mas ele não é a pessoa mais importante do Brasil? Ele não pode quase tudo?

-Sim, mas...

Regiane a interrompeu:

-Então ele pode me dar uma casa de presente!

-Mas uma casa custa muito dinheiro, querida...

-Então o Presidente não é rico?

Irmã Dulce ficou sem saber o que responder, e achou melhor não explicar muito. Buscou uma resposta que satisfizesse a urgência daquele momento, e depois achou melhor desconversar:

-Não muito, Regiane...

De repente, ela lembrou-se de Ricardo, que morava no porão. Esqueceu-se de que tinha prometido não contar a ninguém que ele estava ali:

-Eu poderia levar meu amigo que mora lá no porão para morar comigo.

Irmão Dulce retirou os óculos, assumindo uma postura séria que espantou a menina. Regiane viu que a freira empalidecera, e que suas mãos tremeram ao retirar os óculos. Imediatamente, lembrou-se da promessa que fizera a Ricardo, de jamais dizer a ninguém que ele estava ali, e pensou rapidamente em uma saída. Irmã Dulce balbuciou:

-Que amigo é esse, menina? De quem você está falando?

Regiane hesitou, depois assumiu um olhar confiante ao afirmar:

-De um gatinho que vi por lá... quando as meninas me trancaram.

Ela percebeu que as feições de Irmã Dulce relaxaram, e que a cor voltou ao seu rosto. Irmã Dulce olhou a menina longamente, e disse, encerrando o assunto:

-Vá brincar lá fora. Preciso terminar estas correções.

Regiane deixou a sala de aula correndo em direção ao pátio, sem escutar as ordens da freira:

-Não corra, menina!

Mal Regiane saiu, Irmã Dulce deixou-se perder em suas memórias. Lembrou-se do menino no porão. Ricardo, seu filho, que ela tivera apenas duas semanas após chegar naquela escola, há dezessete anos. Irmã Malvina queria força-la a entregar o menino a um casal de americanos que desejavam adotar uma criança, mas ela implorou tanto para que ela não o fizesse, que a Madre Superiora cedeu; mas com a condição de não dizer a mais ninguém que a criança existia, e de cria-la longe dos olhos curiosos dos outros e dela mesma. Confinou o menino ao porão, de onde ele quase nunca saía. Às vezes, quando ela finalmente tinha tempo de visitar a criança, o encontrava chorando muito, e parecia que estava chorando há horas. Ela o pegava no colo, embalava, alimentava, banhava e punha para dormir, cantando-lhe baixinho as canções de ninar das quais  conseguia lembrar-se. Aos domingos e feriados, quando a escola estava mais vazia, Irmã Dulce levava seu filho lá para fora, em um canto escondido do pomar, e deixava que ele tomasse sol e visse a luz do dia durante algum tempo. Aqueles momentos eram os mais felizes de sua vida!

Gostaria de poder cria-lo como qualquer criança normal e saudável era criada, mas sendo mãe solteira, e dependendo da caridade de outros para ter o que comer, ela sabia que não podia fazê-lo. Para onde levaria seu filho? A ideia de entrega-lo para adoção e nunca mais vê-lo causava-lhe uma dor excruciante! Planejava deixa-lo crescer, e educa-lo nas horas vagas. Conseguiu que uma de suas amigas do lado de fora ficasse com ele a cada quinze dias, a fim de livrá-lo um pouco do confinamento no porão. Ela dizia a todos que o menino era de um orfanato, e que gostava de leva-lo para casa de vez em quando a fim de prestar um pouco de caridade. Era seu dever cristão. 
 Já crescidinho, Ricardo era instruído a nunca fazer barulho, e nunca permitir que alguém o visse. A porta do porão era mantida sempre trancada. A mãe dizia a ele que havia monstros do lado de fora que gostavam de devorar crianças que saiam sozinhas, e confiando na mãe, Ricardo nunca saía, vendo no porão um refúgio contra os perigos do mundo lá fora. Desenvolveu certa síndrome do pânico, e começou a não querer mais sair nem mesmo nos finais de semana, quando a amiga da mãe vinha busca-lo, e quando era obrigado, sentia tanto medo que passava mal. Aquelas ocasiões antes tão esperadas passaram a causar-lhe verdadeiro pavor, até que finalmente, a mãe concordou em encerrar as suas saídas – com a condição de que ele concordasse ir com ela até o pomar algumas vezes, e sentar-se ao sol e fazer um pouco de exercício. Se alguém o visse, poderia mentir, dizendo que o menino era filho de um dos jardineiros da escola, mas nunca ninguém o viu, pois ela tomava muito cuidado, levando-o sempre para a parte mais distante da escola, onde as crianças não tinham permissão de ir e as outras freiras jamais frequentavam. Ela o fazia apenas nos finais de semana, ou quando os jardineiros não estavam trabalhando.

Ao voltar para a segurança do porão, Ricardo sentia-se em paz. A mãe levava-lhe muitos livros, alfabetizando-o e ensinando-lhe matemática, história, geografia e ciências. Ele tinha pelo menos duas horas de aulas durante a semana, e quatro aos sábados e domingos. Irmã Dulce deixava-lhe bastante tarefas caseiras para que Ricardo se ocupasse, e muitos livros para ler e resumir. O menino foi crescendo, tornando-se muito instruído, exageradamente pálido e demasiadamente quieto. Sabia que Irmã Dulce era sua mãe, e assim a chamava, mas sabia que não deveria chama-la de mãe, caso os dois fossem vistos juntos. 

Vivia isolado de tudo e de todos, mas era assim que se sentia seguro. Na janelinha do seu quarto havia uma cortina que encobria a visão de quem estava do lado de fora, mas ele às vezes, quando estava sozinho, levantava uma das pontas e assistia através da pequena greta no vidro às outras crianças brincarem no pátio, ao longe. Às vezes sentia vontade de juntar-se a elas, mas sabia que era proibido. Sua mãe deixara bem claro, que caso o descobrissem, ambos seriam expulsos e devorados pelos monstros do mundo lá fora. Mesmo assim, algumas das meninas o tinham visto à janela rapidamente – e ele sempre tentava ser o mais discreto possível, baixando a cortininha assim que achava que o estivessem olhando. A brancura do seu rosto fez com surgisse uma lenda que dizia que o porão era habitado por um fantasma. Irmã Dulce, ao descobrir o que as meninas andavam comentando, achou que o melhor seria alimentar aquela lenda, a fim de desencorajá-las a desejarem investigar, e inventou uma história: Há muitos e muitos anos, um menino louco e muito malvado escondera-se naquele porão. Alimentava-se de ratos e outros insetos, além das frutas e legumes que roubava do pomar e da hortinha. Sempre que encontrava alguma menina caminhando sozinha nas imediações do porão, ele a sequestrava, e ela nunca mais era encontrada viva. A lenda foi o suficiente para causar pavor nas meninas, e deixa-las bem longe do porão.

Aos poucos, Ricardo compreendeu que os monstros dos quais sua mãe falava eram uma alegoria, uma maneira que a mãe encontrara de mantê-lo quieto no porão; mesmo assim, os tais monstros viviam dentro dele, para onde se mudaram com o passar do tempo. Ricardo não queria sair. Não poderia, mesmo se quisesse.

Irmã Dulce sacudiu a cabeça, enxotando aquelas lembranças, encaixotando-as novamente em uma parte não acessada frequentemente que mantinha dentro da própria cabeça. Aqueles pensamentos faziam-na sofrer, mas logo o sinal tocou, encerrando o recreio, e ela foi cuidar de preparar as crianças para verem o Presidente passar, esquecendo-se de seus tormentos.

Ela organizou a fila no pátio, distribuindo as bandeirinhas e aconselhando as crianças a não fazerem nenhuma algazarra, mas a serem educadas e silenciosas. Se o presidente as cumprimentasse, deveria fazer-lhe uma reverência. Estava programado que ele passaria pelos portões da escola às três da tarde. Ainda eram duas e trinta. De repente, Regiane teve uma ideia: pediu licença à freira, dizendo que precisava ir ao banheiro. Irmã Dulce permitiu, contrariada, e pediu-lhe que não demorasse, pois se a Madre Superiora chegasse e não a encontrasse por lá, haveria motivos para uma grande bronca.

Regiane saiu da fila correndo, mas ao invés de dirigir-se ao lavatório, foi até o quarto e pegou lápis e papel. Ia escrever uma carta ao Presidente da República. 

Sentou-se em sua caminha, no dormitório vazio. Sabia que precisava ser muito rápida, e colocando o papel sobre a capa dura de um livro, começou:

“Senhor Presidente: Meu nome é Regiane, e vivo nesta escola. Meu maior sonho é ter uma casa. Não que a escola seja de todo ruim, mas eu prefiro morar em uma casa com meu pai. Ele trabalha longe e não pode ficar comigo, e minha mãe morreu. Eles dizem que ela foi viajar, mas eu sei. A bruxa da dona Celeste me contou. Dona Celeste é uma pessoa horrível que meu pai pediu para tomar conta de mim antes de me mandar para cá. Nesta escola a comida nem sempre é boa, e não temos sobremesa todos os dias, a não ser do outro lado, onde vivem as meninas ricas. Às vezes a gente encontra insetos grandes no feijão, mas temos que tirar os bichos e continuar a comer assim mesmo, ou a Madre Superiora nos deixa de castigo. Também sou obrigada a partilhar os doces que meu pai me traz com as outras meninas, e não me sobra quase nada! E ainda somos obrigadas a tomar banho gelado. É muito ruim! Se eu tivesse uma casa, meu pai poderia morar comigo e eu poderia levar minhas melhores amigas também e poderia ter um cachorrinho, e comer doces, e tomar banho quente. Por favor, me compre uma casa. O senhor é muito poderoso, e manda em todo mundo. Obrigada. Assinado: Regiane.”

Ao terminar a carta, que ficou cheia de erros, mas não havia tempo de consertá-los, a menina dobrou-a e escondeu-a sob a blusa da escola, no cós da saia, voltando para a fila.
Irmã Dulce ficou brava  com ela pela demora, pois Irmã malvina ralhara com ela por tê-la deixado sair da fila. Regiane desculpou-se. Levou a mão até a carta. Seu coração batia muito forte. Estava nervosa e cheia de expectativas, pois não sabia se conseguiria entregar sua carta ao Presidente. 
Finalmente, chegou a hora, e as meninas foram encaminhadas em fila até as grades de ferro que separavam o pátio da rua. Regiane tratou de empurrar as outras até conseguir um lugar bem na frente. Logo, viram a comitiva se aproximando, e de repente, Regiane compreendeu que não sabia quem o Presidente era. Virando-se para a menina ao lado, perguntou: 

-Quem é o Presidente?

A menina, mal olhando para ela, disse:

-É aquele baixinho de chapéu.

Com o coração aos pulos, Regiane viu o Presidente da República se aproximando, e enquanto as outras meninas agitavam suas bandeirinhas e as freiras aplaudiam, ela tirou sua carta de dentro da roupa, e assim que ele estava perto, esticou a mão bem na frente do rosto de Getúlio Vargas! Surpreso, ele deu uma meia parada, e olhou-a bem de perto. Sorriu, apanhou a carta, na qual ela tinha desenhado uma flor bem grande, acariciou seu cabelo brevemente e continuou andando. Ela estava emocionada: o homem mais importante do Brasil tocara em seu cabelo, e leria a sua carta! Será que ela conseguiria a tão sonhada casa?

Cheia de expectativas, Regiane quase não dormiu naquela noite. Na manhã seguinte, estava muito quieta e distraída durante as aulas, o que rendeu-lhe algumas broncas, mas ela não ligou. Achava que logo estaria bem longe dali, em sua própria casa. O Presidente a ajudaria. 

Naquela tarde, após as aulas, foi visitar Ricardo para contar-lhe as novidades:

-Adivinha só, Ricardo. Eu vou embora!

O rapaz pareceu triste, mas mesmo assim, deixou escapar um pequeno sorriso:

-Vai mesmo? Mas... bem, estou feliz por você. Não vai sentir minha falta?

Ela não tinha pensado naquilo; se fosse embora, talvez nunca mais o visse. Mas de repente, teve uma ideia.

-É que o Presidente da República vai me dar  uma casa, e eu vou poder levar quem eu quiser. Você está convidado para morar comigo e meu pai e minhas amigas, e meu cachorrinho também. 

Ricardo não parecia muito entusiasmado. Abriu um dos seus livros, e passou a lê-lo, ignorando Regiane.

-Você não ficou contente, Ricardo?

-Estou feliz por você... isso é, se conseguir a casa. Mas não posso ir. Não posso sair daqui, já te disse. Este é o meu lugar, a minha casa. 

Regiane ficou triste, mas tentou não demonstrar:

-Então... eu venho visitar você quando eu puder.

Ele fechou o livro:

-Não acredito nisso. Você vai embora, e eu vou ficar sozinho de novo, pois você é a única que... 
Ele deixou a frase sem terminar. Regiane olhou para ele, e percebeu que ele ia dizer alguma coisa que não deveria. Sabia que quando as pessoas grandes faziam aquilo, nem adiantava perguntar, pois elas não abriam a boca! Achou que Ricardo, sendo bem mais velho que ela, não seria diferente. Não argumentou com ele; chegou mais perto, e colocou a mãozinha sobre a dele:

-Você não vai ler uma história para mim hoje? Gosto daquela que tem a princesa que dorme cem anos. 

Ele sorriu, e foi procurar A Bela Adormecida na prateleira. 

(continua...)





terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XI










O ANJO NO PORÃO
CAPÍTULOXI



Após o que ele pensou terem sido as visões da filha, Régis conversou com os médiuns no centro espírita, e dois deles encarregaram-se de comparecer à casa de suas irmãs para fazer uma sessão durante a qual invocariam o espírito de Vicentina. Era o final da tarde de uma quinta-feira quando eles chegaram: Veridiana, uma mulher de meia-idade, antiga e respeitada médium do centro espírita, e Heitor, seu filho, um rapaz cuja mediunidade estava ainda em desenvolvimento. Foram recebidos no salão da casa principal, onde Régis e suas irmãs o aguardavam (João preferiu não participar, ficando no quarto de brinquedos com as crianças). Regiane, que já tinha retornado à escola, nem suspeitava do rebuliço que uma pequena mentira causara no coração do pai.

Fiorela serviu a todos xícaras de chá – não era aconselhável que comessem antes da sessão. Veridiana, observadora e calada, concentrava-se no que estava para acontecer, enquanto Régis e Heitor discutiam os detalhes do ritual, que aconteceria na casa da colina. Após o chá, juntaram algumas velas, e munidos de lanternas, subiram as escadas que levavam à casa. Rosa carregava consigo as chaves do chalé, sendo que ela já tinha varrido e espanado a sala principal antecipadamente para a ocasião, já que a casa não era limpa há anos, e Régis arrastara para o centro uma velha mesa de madeira e alguns caixotes que serviriam de bancos. Colocaram as velas sobre a mesa – único recurso de luz daquele cômodo.

Veridiana mandou que todos se sentassem em volta da mesa e dessem as mãos. Respirou profundamente algumas vezes, enquanto Heitor começava uma oração acompanhada pelos demais, de olhos fechados. Após a oração, permaneceram em silêncio por um tempo que pareceu a Fiorela, que não acreditava em nada daquilo mas era curiosa, uma eternidade. Rosa não sabia no que acreditar, mas dava a tudo o benefício da dúvida, enquanto Régis aguardava, ansioso. Veridiana pediu que  a sessão fosse assistida pelos bons espíritos, e que estes os protegessem dos espíritos zombeteiros e sem luz. 

Após algum tempo, como nada tivesse acontecido, Veridiana disse:

-Estamos aqui reunidos para pedir aos espíritos de luz que conduzam a nossa presença a boa alma de Vicentina Leme. Vicentina, você pode nos ouvir? Dê-nos um sinal de sua presença!

Após aguardar durante alguns minutos, ela repetiu:

-Vicentina Leme, você está entre nós? Por favor, se estiver presente nesta sala, dê-nos um sinal!

Foi quando todos sentiram um vento gelado soprando em suas costas. Alarmada, Fiorela abriu os olhos, mas Heitor pediu-lhe que permanecesse em silêncio e não soltasse as mãos, quebrando a corrente. Motivada, a médium continuou:

-Vicentina... posso sentir uma presença... quer se comunicar conosco?

Heitor começou a rezar novamente. Régis mal podia conter sua emoção, mas permaneceu calado. Após alguns segundos, a mesa estalou, assustando a todos. Fiorela e Rosa se entreolharam, mas permaneceram sentadas e em silêncio. A médium revirou os olhos, e o frio na sala tornou-se ainda mais forte. Veridiana inclinava a cabeça para a direita, e parecia estar ouvindo alguém que falava com ela. De vez em quando, balançava a cabeça. Régis olhava para ela, querendo saber o que ela estava escutando:

-É Vicentina? Ela está presente?

Heitor fez sinal para que ele se calasse. Finalmente, a temperatura da sala voltou ao normal, e Veridiana abriu os olhos, murmurando uma oração e dizendo a todos que a sessão terminara. Régis estava indócil:

-Mas... o que aconteceu? O que ela disse?

Veridiana encolheu os ombros:

-Ela não pode vir. Um espírito-guia veio em seu lugar. Veridiana ainda se encontra em estado de sono, pois seu períspirito precisa curar-se e restaurar-se. Isso pode levar muito tempo ainda. 

-Mas... Regiane a viu! Falou com ela! As duas brincaram de pegar... e Vicentina colocou uma flor em seu cabelo! Disse que voltaria!

A médium cruzou as mãos sobre o tampo da mesa, lamentando:

-Bem, talvez tenha sido por um momento apenas... ou então a menina imaginou toda a situação. Crianças tem a imaginação muito fértil! Ela pode ter visto o que desejava ver.

Quando os médiuns se retiraram, Fiorela serviu o jantar, convidando Régis para passar a noite no casarão. João juntou-se a eles, e as crianças já dormiam. Durante o jantar, Régis manteve-se calado e triste. Ao vê-lo tão angustiado, Rosa indagou:

-Irmão... por que você quer tanto falar com o espírito de Vicentina? Há alguma coisa que precisa dizer a ela? Porque se houver, você pode fazê-lo através de uma oração. 

Régis pousou os talheres na beirada do prato intocado:

-Fiz muitas besteiras na vida. Cometi muitos erros, Rosa... você é uma das pessoas a quem eu prejudiquei através do meu egoísmo e da minha irresponsabilidade.

Rosa não respondeu. No fundo, ela concordava com ele, mas não desejava magoá-lo ainda mais. Fiorela ergue as sobrancelhas:

-Ora, Régis, de nada adianta lamentar o passado! Você errou por irresponsabilidade e egoísmo, mas aprendeu a lição. Ficar preso ao passado não vai mudar nada, o que aconteceu está escrito no livro da vida e não poderá ser apagado. Mas você pode criar um futuro melhor. Você tem que fazer a coisa certa daqui para frente. Faça o melhor que puder! Deixe que os mortos enterrem seus mortos.

Régis olhou para a irmã. Ela era sempre tão prática e sincera! Às vezes, sua sinceridade exacerbada cortava a pele da alma. Perdoou-a do fundo de seu coração, pois sabia que ela tinha razão. Fiorela sempre fora a mais sensata entre eles, enquanto Rosa era toda emoção. João pigarreou, e pôs a mão sobre a mão da esposa:

-Minha amada, acho que você está sendo dura demais com seu irmão. Todos nós cometemos erros! 
-Não estou sendo dura, apenas digo a verdade. Se a verdade é dura, a culpa não é minha.
Rosa colocou o guardanapo sobre a mesa. Lembrou-se do quanto a irmã lhe dissera coisas que a magoaram em seu momento mais triste, quando seu ex-noivo cancelou o casamento. Apesar de saber que ela estava certa – precisava seguir em frente, esquecer Alfredo e cuidar da vida – Fiorela era sempre tão dura! Por sua causa, Regiane não estava ali com eles, partilhando daquela casa e daquela refeição. Ela recordou-se da ocasião em que pediu a ela que recebesse Regiane, e a resposta que teve fora:

-Ora, ela não é responsabilidade minha, ou sua! Você precisa parar de passar a mão na cabeça de 

Régis, ele tem que amadurecer e assumir os próprios atos. Regiane será bem tratada na escola. Terá a chance de receber uma boa educação e aprender boas maneiras. Além disso, a criança é muito rebelde, e conviver com as freiras em um ambiente onde haja disciplina será bom para ela. Eu já estou cansada! Já tenho duas crianças – uma a caminho -, esta casa, um marido, você, minha irmã. E se você tiver boa memória, lembrar-se há que você não se casou com Alfredo por causa de Régis, que envolveu-se com uma prostituta.

-Ela não era uma prostituta antes de conhecer nosso irmão, Fiorela!

-Mas era uma mulher fraca, e não tinha boa índole, ou não teria caído nas artimanhas dele! Mamãe sempre dizia: “Diga-me com quem andas, e te direi quem és!”

Aquelas memórias vieram à tona à mesa do jantar, naquela noite de quinta-feira. Após colocar o guardanapo sobre a mesa antes de terminar sua refeição – o que fez com que os outros olhassem para ela surpresos – Rosa disse, antes de erguer-se e deixar a mesa:

-Você é uma pessoa muito dura, irmã. Não conhece o significado da palavra tato.

Fiorela ficou boquiaberta. Fez menção de ir atrás da irmã, mas João a impediu, segurando-a pelo braço e fazendo com que permanecesse sentada:

-Deixe-a, Fiorela. Você já falou demais por uma noite.

Indignada, ela respondeu:

-E eu disse alguma mentira? Não sei o que significa a palavra ‘tato?’ E como ela pode ter coragem de dizer isso, depois que a acolhi em minha própria casa, sob o meu teto?

João mandou-a calar-se:

-Cale-se! Não quero que sua  irmã a ouça e se sinta ainda mais humilhada!

A expressão de Fiorela era de alguém que acabara de ouvir algo para o qual não estava preparada, uma verdade que desconhecia totalmente. Estarrecida, ela conseguiu balbuciar:

-Humilhada? Mas eu... eu nunca a humilhei...

João respirou fundo, acalmando-se e voltando a controlar o tom de voz:

-O tempo todo. O tempo todo, Fiorela. Você faz questão de deixar claro para Rosa que a casa é sua, que você é a senhora. Ela sabe disso, não há necessidade de lembrá-la o tempo todo. Rosa passou por momentos muito difíceis, e você poderia ser mais solidária com sua irmã. Além disso, ela a ajuda muito com a casa e as crianças.

Régis permanecia calado, e sem conseguir tocar na comida. Pediu licença e retirou-se da mesa. 

.    .    .    .    .    .    .    .
Naquele domingo, a maioria das crianças foi passar o final de semana em casa dos pais ou parentes. Somente ficaram na escola algumas das crianças órfãs, pois as outras foram escolhidas para acompanharem Irmã Dulce e Irmã Malvina a um passeio no Rio de Janeiro – e Regiane não ficou surpresa quando não foi uma das escolhidas. Apenas entristeceu-se porque suas amigas, Dora e Célia, foram escolhidas, o que significava que ela teria que ficar sozinha. Bem, pelo menos, suas três arqui-inimigas também tinham sido escolhidas, o que a deixava um pouco mais tranquila, já que as freiras que permaneceram na escola, olhando as poucas meninas, trancavam-se em seus dormitórios para ler e passavam horas lá dentro, sem se preocuparem com o que estava acontecendo do lado de fora. Apenas as meninas mais velhas ficavam olhando as menores, mas estas também tratavam de arranjar outras atividades, deixando as menores à mercê da sorte.

O pai e as tias também não poderiam visita-la naquele final de semana. Ele precisava trabalhar, pois Madame daria uma recepção, e as tias estariam ocupadas com convidados. 
No fundo, aquele arranjo não era tão ruim: Regiane lembrou-se de seu amigo que vivia no porão, e que poderia passar o sábado inteirinho em sua companhia, se desejasse. E foi o que ela fez. Ela agora já tinha sete anos de idade (nove para os demais), e sentia-se muito grande! Disseram que ela era uma mocinha, o que fez com que ela se sentisse ainda mais orgulhosa de si mesma. Sentia saudades do seu vestido novo e de seus sapatos de verniz, que ficaram em casa das tias. Lamentava não poder mostra-los a Ricardo. 

Regiane às vezes escutava as meninas mais velhas conversando sobre os meninos que conheciam fora da escola quando faziam passeios ou iam para casa nos finais de semana e nas férias, ou então sobre Padre Augusto, que lecionava História às meninas mais velhas. Elas comentavam o quanto ele era bonito, e que era um pecado que tivesse se tornado padre. Regiane não compreendia muito bem aquela parte, mas ria quando as meninas fingiam estar abraçando e beijando o ar quando se referiam a ele. Ela mesma já o tinha visto algumas vezes saindo de salas de aula, e ele sorrira para ela. Regiane o achou muito simpático e bonito, mas não conseguia entender o que as outras realmente enxergavam nele que ela não enxergava. Sua sexualidade ainda não tinha sido despertada.
Porém, quando ela pensava em Ricardo, seu coração batia mais forte, embora ela também não entendesse o porquê. Só sabia que gostava muito dele. Ele conversava com ela como se ela fosse uma pessoa importante, digna de ser ouvida, digna de ouvi-lo. Ajudava-a de boa vontade nas matérias que tinha dificuldades, sem demonstrar tédio ou impaciência. Lia para ela histórias fantásticas, de reinos encantados e terras que ela só poderia visitar em sua imaginação ou então em seus sonhos. Aquelas histórias ficavam, em sua cabeça quando ela ia dormir, e Regiane sonhava que estava com Ricardo passeando por aqueles reinos encantados. Ele era a pessoa que ela mais gostava no mundo, mais ainda do que seu pai e suas tias. 

Ela entrou no porão, sem a preocupação que tinha de não ser vista quando a escola estava cheia de freiras e alunas circulando o tempo todo. Levava seu caderno de matemática como desculpa para estar ali, mas na verdade, apenas queria conversar com seu amigo. Ela viu a luz sob a porta e ficou feliz que ele estivesse em casa – nem sempre ela o encontrava. Bateu e esperou. Ele disse lá de dentro:

-Entre, Regiane! A porta está destrancada. 

Ela entrou, abrindo a porta devagarinho e olhando para dentro antes de entrar:

-Como você sabia que era eu?

-Um amigo conhece a respiração de outro amigo. Mas venha sentar-se! Trouxe seu caderno de matemática outra vez?

Ela balançou a cabeça, concordando.

-Mas nós tivemos uma aula de matemática ainda ontem!

Regiane, que era sempre sincera, respondeu:

-Mas eu queria ver você.

Ricardo sorriu:

-Não precisa de desculpas. Venha sempre que quiser.

E eles passaram a tarde de sábado debruçados sobre livros de histórias coloridos à mão por Ricardo. Tão bem coloridos que pareciam ter sido pintados por um artista! Ele ensinou-a a desenhar e pintar algumas coisas, e Regiane adorou saber que tinha jeito para desenhar. Nunca tinha dado importância àquilo antes, pois nunca mostrava seus desenhos a ninguém. Os adultos que a cercavam não os valorizavam. Ricardo elogiou seus trabalhos, dizendo que ela poderia tornar-se uma grande artista. 

Ela encolheu os ombros, tímida. Ele perguntou:

-Não acredita em mim, Regiane?

-Acho que sim, não sei... mas é que ainda não sei o que eu vou querer ser quando crescer. Meu pai diz que eu devo aprender a costurar e cozinhar, limpar a casa e ser uma boa mãe, pois as mulheres devem sempre casar-se. Mas eu acho que eu não vou querer me casar! A não ser...

Ela ficou bem vermelha de repente, deixando a frase suspensa no ar. Ricardo olhou para ela, divertido:

-A não ser o quê?

Ela olhou para o livro, para disfarçar seu constrangimento. Ia dizer: “A não ser que você se case comigo!” Mas não soube explicar por que não achou que fosse uma boa ideia dizer aquilo. Ao invés disso, ela só disse:

-Deixa pra lá. Eu acho que não vou me casar, e pronto. E não quero ter bebês. Bebês são um problema.

Ricardo notou que ela estava repetindo algo que ouvira.

-Por que você acha que bebês são um problema, Regiane?

-Porque eu sou um problema, desde que eu era bebê. Por minha causa, mamãe morreu e papai está infeliz, e minha tia não se casou. 

Ricardo tentou não dramatizar o que ela dissera, procurando tornar sua fala o mais leve possível.

-Ora, bebês não são problemas nunca! O problema são os adultos, que não tem responsabilidade e não cuidam deles como deveriam! Você não é problema para ninguém, querida, e se alguém disser que você é, está errado e não enxerga um palmo diante do nariz. Fui claro? 

Dizendo aquilo, ele fez uma carícia na ponta do nariz dela, o que a fez sorrir. 

(continua...)





domingo, 21 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO X






O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO X



Régis passou a evitar relacionamentos após a fuga de Hanna. Decidiu que, aos quarenta aos de idade, já tinha namorado o suficiente, e não pretendia mais casar-se ou envolver-se com outras mulheres, arriscando-se a colocar no mundo mais filhos ilegítimos. Não queria mais que ninguém fosse vítima de sua insensatez. Abraçou o espiritismo, e também as ciências ocultas. Passou a investigar as coisas do espírito, com as quais ocupava a maior parte de seu tempo, e chegou a colecionar tantos livros sobre o ocultismo e o espiritismo, que após a sua morte, anos depois, os herdeiros mal sabiam o que fazer com tantos livros.  Sempre que alguém adoecia, Régis pegava seu crucifixo (carregava-o sempre no bolso do casaco) e, portando seu livro de orações, passava a rezar pela recuperação da pessoa, administrando-lhe passes mediúnicos. Os sobrinhos pequenos gostavam de imitá-lo quando ele virava as costas, mesmo sabendo que sofreriam represálias da mãe, pois Fiorela não admitia que brincassem com “As coisas de Deus.” Tornou-se amigo e protetor dos animais, e vegetariano convicto. Gostava de dizer, ao ver os amigos alimentando-se de carne, que seu estômago não era cemitério. 

Os antigos amigos de farra não entendiam o que tinha acontecido com o velho Régis, e aos poucos foram se afastando. Régis passou a viver para o seu trabalho, sua religião e sua filha Regiane, que continuaria morando no internato até os dezoito anos de idade. A única mulher com quem se relacionava, era madame Fonseca – mas era um relacionamento respeitoso entre empregado e patroa. Mesmo assim, na solidão das horas, ela gostava de chama-lo ao final da tarde, e ambos sentavam-se na varanda da casa, saboreando suas xícaras de chá e falando sobre a vida. Naqueles momentos, a distância entre patroa e empregado era menos nítida. Eles falavam do passado, de religião, de seus conceitos sobre Deus e às vezes, surgiam confissões um tanto íntimas para serem consideradas apenas como entre patroa e empregado. Eram amigos, embora tal palavra jamais tivesse surgido entre eles – havia a distância social. Aos poucos, madame passou a desenvolver por ele uma paixão platônica que ela escondia até mesmo de si mesma, mas os empregados da casa comentavam pelos cantos. 

Madame Fonseca promoveu-o a administrador, dando-lhe a responsabilidade de comandar os demais empregados e os negócios, e aumentando-lhe consideravelmente o salário. Régis até mesmo especulou com ela a possibilidade de trazer Regiane para viver na casa com ele, mas madame imediatamente recusou-lhe o pedido: não queria mais apegar-se a nenhuma criança. Mas faria sempre o possível para que nada faltasse à menina (ou ao pai da menina). Teriam se tornado amantes, se Régis tivesse aceito os convites mudos das portas entreabertas e dos olhares lascivos que madame lhe dirigia; apesar de ser quase quinze anos mais velha que ele, madame ainda era uma bela mulher, mas ele achou melhor não cair em tentação, pois além de não desejar mais envolvimento com mulheres, precisava manter seu emprego.

Eram amigos, embora não admitissem ou pensassem sobre o assunto. Havia entre eles uma relação de carinho mútuo, e por parte dele, de respeitosa distância que jamais seria violada, para infelicidade dela. Mas mesmo assim, madame Fonseca gostava de fantasiar sobre Régis; suas fantasias traziam-lhe a esperança de um dia serem realizadas, e isto servia como um incentivo para viver e sonhar. Não pretendia casar-se com ele, mas adoraria tê-lo em sua cama algumas noites por semana, e alimentou aquele sonho durante o resto de sua vida. O sonho a ajudava a viver e sentir-se mulher.

Na escola Nossa Senhora da Ajuda, Regiane levava sua vidinha. Tentava ficar longe das três colegas agressoras, e aplicava-se nos estudos a fim de conseguir acompanhar as outras crianças. Cumpria a promessa que fizera a Ricardo de não revelar seu segredo aos demais. Ela mesma esquecia-se dele a maior parte do tempo, pois levava sua vida do lado de fora daquele porão, onde estudava, brincava aprendia trabalhos manuais, frequentava a igreja católica (havia missas todos os domingos na capela da escola, ocasião em que as crianças mais abastadas misturavam-se às crianças pobres) e crescia. Só voltou a vê-lo pela segunda vez seis meses depois da primeira, e nesse intervalo de tempo, mal pensava nele. Regiane era apenas uma criança; Às vezes, se perguntava se Ricardo existia de verdade ou se era apenas um amigo imaginário (uma de suas colegas tinha um amigo imaginário). 
Irmã Malvina ainda implicava com ela, e sempre exigia mais e mais. Ela tinha a impressão de que jamais seria boa o suficiente para Irmã Malvina. Mas entendia que ninguém era! A sorte, era que tinha ao seu lado seu anjo bom, Irmã Dulce, que a ajudava com aulas de reforço e a protegia contra as meninas mais malvadas. Mesmo assim, era difícil para uma menina tão pequena sobreviver entre crianças mais velhas, algumas delas, hostis.

Certa vez, durante uma das aulas de Irmã Malvina, a classe fazia as tarefas em silêncio. Regiane estava concentrada em resolver uma multiplicação, quando sentiu alguma coisa cair sobre seu ombro. Distraída, ela levou a mão ao ombro a fim de livrar-se do que quer que fosse, quando sentiu alguma coisa mexer-se entre seus dedos. Ao olhar para trás, deparou com as patas de uma caranguejeira saindo por entre seus dedos. Seu susto foi tão grande, que ela não pode conter um grito, erguendo-se da cadeira com tanta rapidez que derrubou-a ao chão, enquanto a aranha foi parar do outro lado da sala de aula, causando muitos gritos e correrias entre as demais meninas! Regiane tinha pavor de aranhas, e ter uma entre os dedos quase a matou de susto. No instante em que tentava entender o que tinha acontecido, viu que as suas três inimigas riam baixinho, e logo entendeu que acabara de ser vítima de suas maldades mais uma vez. Mal compreendera isto quando Irmã Malvina agarrou-a pelo braço:

-Mas que mal comportamento! 

Regiane ficou muda de medo e indignação, e Irmã Malvina acrescentou:

-Como pode ser tão má a ponto de trazer um inseto daqueles para a sala de aula?

Sem querer, Regiane lembrou-se das aulas de ciência, e corrigiu-a:

-Não é um inseto, é um aracnídeo, Irmã! E... e não fui eu que a trouxe, morro de medo de aranhas.

Irmã Malvina gritou para que todas as meninas se sentassem, e pediu silêncio, sem largar o braço de Regiane. Levou-a até a aranha, que subia pela parede:

-Não se atreva a me corrigir, mocinha! Pegue já este animal dos infernos e leve-a embora daqui! Você está suspensa por três aulas!

Regiane olhou para o rosto furioso de Irmã Malvina, e depois para a aranha, e não conseguiu decidir qual delas ela mais temia. Sentia um pavor enorme, e ao mesmo tempo, muita raiva por estar sendo acusada de algo que não fizera. Tentou explicar:

-Não fui eu quem trouxe esse bicho, Irmã Malvina. Juro por Deus! Alguém a colocou em meu ombro!

Irmã Malvina sacudiu-a:

-E ainda se atreve a jurar pelo nome de Deus, usando-o em vão em suas artimanhas! Menina má! Pegue já este animal e coloque-o lá fora! Eu deveria expulsá-la desta escola, mas se o fizer, quem ficará com você? Lembre-se, antes de ser tão ingrata, que se você está aqui, é porque lá fora ninguém mais a quis! Nem mesmo seu próprio pai!

Aquelas palavras feriram Regiane profundamente, e seus olhos se encheram de lágrimas. Ela viu a imagem raivosa da freira tornar-se cada vez mais turva. Nem percebeu que os gritos dela tinham atraído o jardineiro, que trabalhava no canteiro sob a janela da sala de aula, e que ele pegara a aranha e a levara para fora. Não percebeu o silêncio das outras meninas, nem o quanto estava sendo humilhada pela freira. Apenas sentiu a dor do impacto daquelas palavras dentro dela como se fossem um soco, uma verdade que ela até então não tinha ainda conseguido digerir. Era verdade: ninguém lá fora a queria! Como foi que ela nunca percebera aquilo antes? Celeste dissera a mesma coisa, mas naquela época, o pai ia visita-la com frequência, e por isso, ela não acreditou.

Irmã Malvina, ainda arrastando a menina consigo, foi até a mesa e, abrindo a gaveta, puxou um objeto de madeira – uma palmatória – aplicando três golpes doloridos na palma da mão direita de 

Regiane, que estava tão assustada, que nem sequer reclamou. 

Após a punição, Regiane foi levada pelo braço até o corredor. Sem enxergar direito, devido às lágrimas, escutou quando Irmã Malvina lhe disse para voltar ao dormitório e ficar lá até as aulas terminarem, quando ela lhe aplicaria uma punição devida. Regiane estava magoada, furiosa, e sentia-se injustiçada por estar sendo acusada de algo que não fizera. Mas, mais que tudo, aquelas palavras eram o que mais lhe doía. A mão latejava, vermelha, e começava a inchar. Ela foi caminhando pelo longo corredor silencioso. Tinha a impressão de que todos sabiam de sua humilhação, de sua derrota. Passava pelas outras classes, cujas portas estavam abertas, e via as outras meninas tendo aulas. Todas a olhavam enquanto ela passava, o rosto vermelho, as lágrimas escorrendo pela face. Regiane achava que todas tinham ouvido o que acontecera.

Ao chegar ao final do corredor, Regiane deparou com uma antiga cristaleira, onde ficavam algumas imagens de santos. Olhou para aqueles rostos piedosos, e para as mãos estendidas. Teve ódio de todos eles, que nada faziam para ajuda-la. Não a defenderam das infâmias, não a protegeram dos inimigos, não impediram que sua mãe fosse embora. Lembrou-se de um pequeno altar que tinha no quarto da mãe, sempre com algumas flores, e uma santa parecida com uma daquelas. A santa não a ajudara em nada. De repente, com um golpe de fúria, Regiane ergueu o braço, e com a mão ainda dolorida fechada, desferiu um soco no vidro, que se espatifou aos seus pés. 

Depois  daquilo, ela saiu correndo, e desobedecendo as ordens de Irmã Malvina, foi para o único lugar onde ela sabia que não seria molestada – pelo menos, até o término das aulas: o porão. 
Escancarou a porta, e o cheiro de coisas velhas e poeira encheu-lhe as narinas. Olhou para dentro, e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Puxou a cordinha e a mesma luz fraca de antes se acendeu. Regiane entrou. Procurou pelos gatinhos, mas eles já tinham crescido e ido embora. Ou então, quem sabe, aquela malvada da irmã Malvina tinha mandado leva-los! 

Ela sentou-se no chão e chorou. Sentia-se muito sozinha. Nunca se sentira tão sozinha como naquele momento. Seu pai estava longe. As tias só a visitaram uma única vez, desde que tinha chegado naquela escola, e os finais de semana no casarão que o pai havia prometido, nunca aconteceram. Ela estava há meses naquela escola, esquecida por todos, jogada fora, porque exatamente como Irmã Malvina dissera diante de todas as outras crianças, ninguém mais a queria. Achou que era tão importante quanto aquela aranha feia e repugnante. Mesmo os gatinhos tinham uma mãe amorosa que cuidara deles, mas ela, não tinha ninguém que a amasse.

Abraçada aos joelhos, a menina só chorava, e chorava, e chorava, os olhos fechados, seus soluções prpfundos contidos pelas paredes mofadas do porão, que não admitiam ecos.

De repente, ela sentiu um toque leve sobre seu ombro. Ergueu os olhos, e deparou com o rosto suave de Ricardo. Sem nada dizer, Regiane levantou-se e deixou que ele a abraçasse, e consolasse, até que o choro acalmou-se e foi cessando aos poucos. Quando ela finalmente parou de chorar, secando as últimas lágrimas com a manga do casaco do uniforme, ele disse:

-Querida, a vida nem sempre é justa. Mas você não precisa se conformar, nem se revoltar. Quando estiver passando por um momento ruim, entenda que é só um momento ruim, e que ele vai passar, e que a vida não é toda de momentos ruins. Há coisas boas também. E tudo passa, tudo... não se entristeça demais, nem se alegre demais.

Ela concordou com a cabeça, e compreendeu as palavras dele. 

-Às vezes, as pessoas nos fazem mal porque elas mesmas estão infelizes. Quem está infeliz não consegue ver outras pessoas felizes, então acabam fazendo ou dizendo coisas que deixam os outros tristes... mas não é você o problema, são elas mesmas. Um dia, você vai crescer e entender melhor o que eu estou dizendo. Mas por enquanto, pare de chorar e seja corajosa, está bem?

Regiane concordou com a cabeça.

-Por onde você andou?

-Ele sorriu:

-Eu? Não saí daqui. Estive sempre aqui, minha menininha. Mas você não precisou de mim, não é? Não veio me visitar!

-É que... não deu tempo! Tenho que estudar muito para conseguir acompanhar as aulas. Tenho que fazer as pessoas acreditarem que eu sou mais velha do que sou de verdade. Mas é tão difícil...

-Hum... eu sou muito bom em matemática. Gostaria que eu a ajudasse? Se quiser, venha aqui todos os dias após as aulas, e eu a ajudarei. Mas lembre-se: não conte a ninguém, ou terei que ir embora e nunca mais nos veremos.

Ela beijou os dedos em cruz, já quase esquecida de suas dores recentes:

-Está bem, Ricardo. 

.    .    .    .    .    .    .    .

No dia de seu aniversário de nove anos (na verdade, de sete anos) Regiane teve uma agradável surpresa: foi convidada para ir ao casarão. Tia Rosa foi busca-la bem cedo, no sábado pela manhã. Ela estava com muitas saudades da tia, e ficou muito alegre ao vê-la. Gostaria de poder contar-lhe sobre seu mais novo amigo, Ricardo, mas lembrou-se de sua promessa, e calou-se. Após despedir-se das colegas da escola,  as duas foram caminhando de mãos dadas pela Avenida Koeller, que estava linda naquela manhã de maio, quando pássaros de todas as cores cantavam nas magnólias, e depois de cruzarem a praça da Liberdade (parando alguns minutos para que Regiane pudesse usar os balanços e demais brinquedos), chegaram ao casarão. 

Mal abriram a porta, e Regiane não pode conter sua alegria: todos – Tia Fiorela, Tio João, seu pai e Lea, sua priminha mais velha, estavam lá e cantaram parabéns para ela. Aquela fora a primeira vez que ela tivera uma festa surpresa. Regiane abraçou a todos, muito feliz, conheceu sua nova prima, que ainda era um bebê, e depois sentaram-se à mesa para tomar o café da manhã com bolo confeitado. O pai deu-lhe de presente um lindo vestido novo com uma fita cor-de-rosa na cintura, que Tia Fiorela bordara na gola. Das tias, ela ganhou um par de sapatos de verniz e meias novas. Regiane teve autorização para vestir suas roupas novas, e ficou desfilando na frente do grande espelho do quarto da tia, e quando caminhava, olhava para os próprios pés, admirando os sapatos novos. Sabia que assim que voltasse para a escola, teria que usar os uniformes feiosos novamente, então tratou de aproveitar aqueles momentos. Depois, ela foi ao quintal dos fundos, para matar a saudade dos muitos gatos de Tia Rosa. Brincou com eles por alguns minutos, lembrando-se de seus nomes, e viu que havia novos membros na família dos felinos, que fugiam quando ela tentava se aproximar deles. 
Contou-os, e descobriu que eram onze no total. 

Bem nos fundos do quintal, havia uma escadaria que levava colina acima. Era cansativo subi-la, e por isso, os adultos não iam muito lá, mas Regiane gostava muito de subir as escadas de cimento meio-quebradas, apoiando as mãos no musgo verde e aveludado que cobria o morro. De vez em quando, ela parava para descansar e olhava a vista da cidade: de lá, podia avistar a torre da catedral São Pedro de Alcântara ao longe, algumas ruas próximas, as muitas montanhas azuladas e a sua tão querida Praça da Liberdade. 

No alto daquele morro, havia um pequeno chalé abandonado. Fazia parte do terreno da casa, mas ninguém nunca vivera ali. Junto à casa, algumas toras de madeira, sobras  da serraria de tio João. O chalé estava sempre fechado. Regiane já tentara entrar (adorava coisas misteriosas), mas as portas estavam sempre trancadas. Ali, o silêncio era total. Havia alguns pessegueiros em volta da casa, e naquela ocasião, eles estavam começando a florir, deixando a paisagem ainda mais bonita. Regiane sentou-se nas escadas da porta da frente, e ficou escutando os passarinhos enquanto admirava seus sapatos novos. 

Gostava de fingir que sua mãe morava naquela casa. Fingia que ela estava lá dentro, preparando o doce-de-abóbora que ela tanto adorava, e que logo o doce ficaria pronto e ela seria chamada para comê-lo. Não haveria nenhuma visita dos “tios” para interrompê-las, e ela não teria que apertar os olhos e  fingir que estava dormindo enquanto a mãe fazia coisas com eles, e as duas poderiam estar sozinhas, desfrutando da companhia uma da outra e brincando de pegar, correndo entre os pessegueiros, e a mãe colocaria flores em seus cabelos. A mãe estaria usando um vestido branco esvoaçante, cujas saias dançariam quando o vento soprasse. De olhos fechados, Regiane imaginava a cena. 

Ela não conseguia lembrar-se bem do rosto de Vicentina, e quando aquilo acontecia, Regiane pegava uma fotografia que o pai lhe dera – mas a foto já estava gasta e um pouco amassada, começando a amarelar. Na foto, ela via uma moça séria, de cabelos escuros presos em coque e olhos que olhavam adiante, para algum lugar misterioso que Regiane não podia alcançar. Aquela seria a única fotografia que ela teria da mãe para o resto de sua vida. Não havia outras. Sem aquela foto, a imagem de sua mãe aos poucos tornava-se a de uma mulher sem rosto, e aquilo a deixava apavorada! Às vezes, quando sonhava com ela e não conseguia ver seu rosto, enxergava apenas uma criatura de cabelos  soltos emoldurando uma face translúcida e amedrontadora. Acordava suando, assustada, e agarrava a foto que trazia sempre consigo e olhava o rosto da mãe para certificar-se de que ele ainda estava ali, e agarrada à foto, ainda ofegante pela força do sonho, adormecia.

Regiane despertou de suas fantasias com o grito do pai, que a chamava. Ela sabia que o pai e os tios não gostavam que ela brincasse ali, pois temiam que ela rolasse a colina ao cair da escada. Ela pensava: “adultos sempre acham que as crianças são tolas!” ela começou a descer as escadas, devagar, para não sujar os sapatos novos, e quando chegou lá em baixo, levou uma bronca do pai:

-Menina, eu já não lhe disse para não subir aí?

Sem pensar, e apenas tentando justificar sua desobediência, ela respondeu:

-Eu estava com a mamãe!

Régis sentiu o coração dar um salto dentro do peito. Seria aquela a resposta para suas preces? O tempo todo, Vicentina estava ali, naquela casa, esperando que ele a procurasse? Tantas vezes tentara contato com a alma dela, sem obter sucesso! Ele segurou a pequena pelos ombros, ajoelhando-se para ficar na frente dela:

-Querida, com quem você disse que estava?

Regiane continuou a deixar fluir sua fantasia:

-Com a mamãe! E ela estava tão bonita, de vestido branco! Disse que ia fazer doce-de-abóbora para mim.

Régis abraçou a filha, os olhos cheios de lágrimas, sem conseguir conter a emoção. Vicentina estava ali naquela casa, e se Deus quisesse, ele a veria de novo! 

-E o que mais ela disse?

-Mais nada... a gente brincou de pegar e ela colocou uma flor no meu cabelo... mas eu acho que caiu.

Naquele momento, os dois estavam cercados pelas tias e por João. Régis gritou:

-Vocês ouviram? A menina a viu! Regiane acaba de ver Vicentina!

Regiane, sentindo-se feliz e importante com toda aquela atenção, acrescentou:

-E ela estava tão bonita! Disse que um dia ela vai voltar.

Para ela, mentir um pouquinho não fazia mal, se deixava os adultos felizes e despertava a atenção deles para si. Régis declarou:

-Organizarei uma sessão espírita na casa da colina, isso é, se vocês não se opuserem!

Rosa, Fiorela e João se entreolharam, confusos. Foi João quem falou:

-Bem... eu não acredito em nada disso, você sabe, meu cunhado. Mas se vai deixa-lo feliz, que seja feito! 

(Continua...)








quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO IX








O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO IX



Na manhã seguinte, após as aulas, Regiane foi até o porão a fim de saborear seus doces. Mal abriu a porta, deparou com suas três inimigas – Alice e as irmãs Bia e Dora -  sentadas no chão do porão, calmamente dividindo entre elas tudo o que lhe pertencia. Regiane tapou a boca com a mão, para conter um grito de indignação:

-Vocês não podem fazer isso! Esses doces são meus, meu pai me deu!

Dora ergueu os olhos, dizendo:

-Ele tem bom gosto, pirralha. 

As outras duas riram, e Alice falou:

-Olhe, dê-se por sortuda por não termos dedurado você à madre Superiora. Você infringiu duas regras: entrou no porão e escondeu comida!

Bia arrematou:

-E você vai reclamar com quem, me diga! Você está errada, e quem anda errado, Deus castiga. 

Considere isso como uma espécie de castigo divino.

Regiane sentiu o choro apertando sua garganta. Tinha esperado por aquele momento durante toda a aula: o momento de saborear seus doces preferidos. Guardaria um pedaço deles apenas para suas melhores amigas, Célia e Dóris, mas agora tinha perdido tudo para as três meninas mais malvadas da escola. Será que elas tinham razão, e Deus a estava punindo por seu pecado mais uma vez? Tirara-lhe a mãe, as tias, os vestidos e sua boneca preferida. Deus deveria ser alguém muito malvado, ou então alguém que não gostava nada dela!

Dora chamou-a:

-Não pense que somos cruéis. Guardamos um pouquinho para você. Venha buscar!

As três se levantaram, erguendo a caixa para que Regiane a pegasse. A menina permaneceu à porta do porão, até que Bia chamou-a:

-Venha, Regiane. Não tenha medo! Venha buscar seus doces, ainda tem bastante.

Regiane hesitou; deveria confiar nelas? Deu um passo em direção a caixa, e para dentro do porão, quando uma delas agarrou seu braço e puxou-a totalmente para dentro. As outras duas riam, enquanto a caixa vazia caía no chão. Seguraram-na contra a parede. Regiane tentou soltar-se, mas além de ser bem menor, era mais fraca. Alice sacudiu uma grande chave de ferro na frente dela antes que as três saíssem rindo do porão e deixassem Regiane sozinha, trancada no escuro.

Regiane socou a porta, mas aquele pedaço do pátio era deserto; quase ninguém ia lá. Estava apavorada. Escutava os passos das três meninas do lado de fora, se afastando cada vez mais. Gritou para que alguém a tirasse dali, mas não foi ouvida. Seus soluços ecoavam nas paredes de pedra do porão e o som voltava para ela, como se houvesse um acordo tácito para que qualquer coisa que acontecesse naquele porão permanecesse ali. 

Regiane aquietou-se, mas mesmo tentando permanecer calma, podia ouvir as batidas do próprio coração. Os nós dos dedos estavam ardendo. Ela olhou para trás, e só viu a escuridão. Sentiu o cheiro de mofo que impregnava o ar em volta. Achou que nunca mais conseguiria sair daquele lugar, que morreria ali e que ninguém se lembraria dela. Começou a pensar sobre como seria morrer. O que será que sentia alguém que morre? Celeste dissera que sua mãe estava morta; se ela morresse também, será que se encontraria com ela? Se fosse assim, então ela não deveria ter medo.

Deixou-se escorregar até sentar-se no chão, as costas apoiadas na porta, abraçando os joelhos. Aos poucos, seus olhos acostumaram-se à escuridão e ela pode vislumbrar algumas formas. Havia uma pequena janela no alto da parede em frente a ela que deixava entrar um facho de luz do sol. Regiane olhou para cima, à sua direita,  e viu uma pequena corda pendurada, um interruptor. Ela ergueu o braço e puxou-o, e o porão iluminou-se com uma lâmpada fraca como luz de velas, mas era melhor que nada. Além da mesa velha e coberta de poeira, ela viu algumas cadeiras, um baú fechado com cadeado, algumas garrafas vazias empilhadas em um canto, vassouras, ancinhos e outras ferramentas de jardim que pareciam não ser usadas há muito tempo – estavam cobertas de teias de aranha – um pouco de lenha e uma lamparina velha. Escutou um som vindo de um dos cantos, e assustou-se. Ficou bem quieta, com medo de mover-se, mas logo sorriu ao descobrir que estava sendo observada por um gatinho bem pequeno. Ela ergueu a mão para chama-lo, e logo outros dois gatinhos juntaram-se ao irmãozinho, seguidos pela mãe, que a olhou desconfiada, estancando atrás da pilha de lenha e miando para chamar seus filhotes de volta. 

-Não vou machucar vocês, nenéns! Fique tranquila, Dona Gata. Eu não sou malvada como aquelas outras que acabaram de sair... aqui... ah, vocês são mesmo umas gracinhas! Devem morar aqui desde que nasceram. Tomem cuidado para que a Madre Superiora não encontre vocês. Ouvi dizer que ela manda o capataz coloca-los em uma caixa e abandonar debaixo da ponte. Se eu conseguir sair daqui, dou um jeito de trazer leite para vocês.

Ela ficou distraída durante algum tempo, brincando com os gatinhos. Mamãe gata percebeu que ela não representava nenhuma ameaça para ela ou seus filhotes, e a observava de longe, as patas sob o corpo, em posição de iogue. Regiane começou  agostar da paz úmida, silenciosa e fria daquele porão, onde ela podia fazer o que quisesse, dizer o que quisesse e sentar com maus modos sem que ninguém a corrigisse. Estava distraída brincando com os gatinhos, até que um deles se afastou, e ela foi atrás dele. O gatinho escondeu-se por trás de uma pilha de caixas de madeira, junto a uma porta que ela não tinha notado antes. Regiane viu que havia um facho de luz vindo por debaixo da porta, e escutou alguns ruídos lá dentro: estava salva! Com certeza, era o jardineiro, que tinha uma chave a tiraria dali!

Segura de si, bateu à porta três vezes, e esperou; como ninguém respondesse, ela bateu de novo. Escutou alguém encaminhando-se lentamente até a entrada, mas a pessoa não abriu a porta. Encostou o ouvido na madeira, tentando escutar melhor, e bateu outra vez:

-Olá! Será que você pode me ajudar? Preciso sair daqui! As meninas me prenderam, e logo darão falta de mim na sala de aula... Irmã Malvina vai me castigar!

Com um click, a fechadura girou, e Regiane deu um pulo para trás. A porta foi se abrindo aos poucos e bem devagar, e ela, de olhos arregalados e já arrependida por ter batido, aguardou, os pés colados no chão. 

O que ela viu foi a silhueta de um rapaz contra a luz que brilhava por trás dele. Percebeu que ele vestia uma camisa branca simples, e calças também brancas, como se fossem calças de pijama, só que não eram. Atrás dele, Regiane viu uma cama de solteiro coberta com um cobertor pardo, como os que elas usavam nos dormitórios, uma pequena escrivaninha cheia de livros e uma poltrona estofada onde ele provavelmente se sentava para ler - (havia livros empilhados também no chão), uma lamparina, um castiçal, algumas velas. Em frente à cama, um tapete redondo, de cor azul escura. Havia também uma mesinha de cabeceira, onde estavam uma garrafa com um copo emborcado por cima, um pequeno abajur e mais livros. À direita, Regiane pode vislumbrar metade de uma cadeira (o restante, bloqueado pela porta). O rapaz nada disse; ficou parado, olhando para ela. Parecia estudá-la. Talvez quisesse ter certeza de que ela era confiável. Regiane apertou os olhos, tentando ver os traços do seu rosto, e se aproximou, e ele deu um passo para trás. Era mais alto, como um adulto, mas parecia bastante jovem ainda. Tinha cabelos louros e cacheados, e a pele tão branca, que mais parecia pintada à cal. Regiane estava um pouco assustada, mas notou que ele também estava. Ela chegou ainda mais perto:

-Como é o seu nome?

A voz dele saiu como se despertasse de um sono profundo:

-Ricardo.

-Você mora aqui?

Ele não respondeu. Afastou-se da porta, e fez sinal para que ela entrasse. Regiane entrou devagar, reparando nas coisas em volta dela, e sentou-se na beirada da cama. Ricardo a olhava com certa curiosidade, e ela devolvia seu olhar com o mesmo sentimento. Regiane pousou os olhos nas capas dos livros, e também nos outros objetos do quarto, que não tinha janelas – apenas uma pequena abertura junto ao teto, um retângulo por onde poderia entrar um pouco de ar e luz do dia, mas que estava coberto por um pedaço de vidro e um quadradinho de cortina bege entreaberta. Ela repetiu sua pergunta:

-Você mora aqui?

-Sim. Mas ninguém pode saber, será o nosso segredo.

-Por que ninguém pode saber?

-Porque se souberem, serei expulso! Não terei mais onde morar.

-E por que você mora aqui?

-É uma longa história.

-Eu gosto de histórias.

Ricardo sorriu:

-Eu já percebi que você gosta também de fazer muitas perguntas. Qual o seu nome?

-Regiane. Eu moro lá, na escola. Mas por que você mora aqui em baixo, no escuro?

-Eu conto, se você prometer não dizer a ninguém que eu estou aqui!

Ela concordou com a cabeça. Ricardo sentou-se na poltrona em frente a ela:

-Eu nasci aqui. Sou filho de uma das Irmãs.

Regiane lembrou-se do pai dizendo que as freiras eram santas, nunca se casavam ou tinham filhos, pois eram casadas com Jesus. Coçou  a cabeça:

-Mas... as freiras não tem filhos!

-Todo mundo sabe disso, mas às vezes pode acontecer.

-Então você é filho de Jesus Cristo? Porque meu pai me disse que as freiras são casadas com Jesus!

Ele riu discretamente:

-Não... e sim! Somos todos, pelo menos, é o que dizem. Mas tive um pai de carne e osso, como você tem um.

-E onde ele está agora? Ele também trabalha longe, como o meu? A minha mãe morreu. A sua mãe morreu também? O que é morrer?

Ele riu mais uma vez:

-Calma, você pergunta demais mesmo, hein? Pensei que quisesse escutar a minha história!
-Eu quero!

-Então fique quieta, e ouça: 

Ela se inclinou na direção dele, para escutar melhor, e Ricardo continuou:

-Minha mãe chegou aqui comigo na barriga ainda. Ela ainda não era freira.  A família dela não a quis em casa depois que descobriram que eu estava a caminho.

Regiane buscou na memória frases de uma história parecida que ela escutara na casa das tias, e comparou as duas. Descobriu que aquela história que o menino contava era muito parecida com a dela.

-Bem... Irmã Malvina deixou que minha mãe morasse aqui, e ela acabou virando freira também, mas com a condição de me manter fora da vista das demais pessoas. Porque... você sabe, as pessoas não entendem.

-Não, elas não entendem... mas gostam de explicar tudo!

-Você é uma menina esperta, Regiane.

-E você nunca sai? Fica aqui o tempo todo?

Ricardo levantou-se, e pegou um dos livros, abrindo-o:

-Saio sim. Viajo pelo mundo todo. Viajo por mundos onde a maioria das pessoas não viaja. Sabe como? Através disto aqui! (Ele bateu na capa do livro).

Regiane ficou pensando no que ele acabara de dizer durante algum tempo:

-Mas... sair de verdade...

Ele baixou os olhos, colocando o livro de volta no lugar:

-Bem... não posso ficar andando por aí durante o dia, mas eu saio à noite, ou quando ninguém está olhando.

Ela pareceu lembrar-se de algo de repente, e disse com entusiasmo:

-Eu também tenho um segredo! Mas só conto se você prometer não contar para ninguém.

Ele beijou os dedos em cruz:

-Pode confiar em mim!

-É que... eu não tenho oito anos. Tenho seis e um pouquinho.

-Ora, ora... sabe que eu nem adivinharia? Bem, agora eu sei um segredo seu, e você sabe um segredo meu. Então, somos amigos!

Ele estendeu a mão para ela, e ambos se cumprimentaram. Naquele momento, eles ouviram alguém tentando abrir a porta do porão. Alarmado, Ricardo levou Regiane à porta, e antes de fechá-la, segredou, implorando com os olhos:

-Lembre-se! Somos amigos! Ninguém pode saber que eu estou aqui!

Dizendo aquilo, ele trancou a porta. Regiane ainda olhou por baixo da greta, mas não havia mais nenhuma luz vindo de lá. Ela caminhou na semiescuridão, e esperou em frente a porta. Irmã Dulce a aguardava:

-Pobre menina! Deve estar muito assustada... mas não se preocupe, as responsáveis já foram punidas, ficarão de castigo.

Regiane, que de assustada não tinha nada, olhou para trás antes de saírem do porão, e sorriu para si mesma.

(continua...)






segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO VIII









O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO VIII



Quando Régis chegou em Niterói após deixar Regiane na nova escola, encontrou a casa em polvorosa: os empregados corriam pelos corredores, e os gritos de Madame ressoavam pela casa toda. Rapidamente, Régis tentou inteirar-se do ocorrido. Os outros empregados tentavam fugir dele, dizendo estarem muito ocupados naquele momento, carregando sais de banho para Madame, pílulas tranquilizantes e xícaras de chá. Régis ficou parado no corredor da casa, tentando abordar os outros empregados, que passavam por ele sem olhá-lo nos olhos, até que perdeu a paciência e gritou:

-Mas alguém pode me dizer que diabos está acontecendo por aqui?

Uma das criadas deu-lhe a atenção que ele solicitava:

-Tenho más notícias. Aliás, péssimas notícias, senhor Régis. 
-Fala logo, mulher!
-Sua esposa... Hanna... ela...
-O que aconteceu? Hanna está doente?
-Não. Mas se Madame a encontrar, ela poderá estar morta sem nunca ter ficado doente na vida! Ela fugiu. Com o patrão Levou o pequeno Paulinho.

Régis sentiu que as paredes se espremiam em volta dele, e tonto, apoiou-se em uma delas. A mulher achegou-se mais, segurando seu braço:

-O senhor está bem?
-Sim, só um pouco tonto... o que aconteceu, quando foi?
-Madame acordou esta manhã e encontrou um bilhete do Coronel. Ele disse que não deixaria faltar nada na casa, e que ela continuaria  a levar uma vida confortável como sempre, mas confessou-se apaixonado por Hanna. Disse que eles vão deixar o país a fim de evitar escândalos. Sinto muitíssimo, senhor. 

Régis tentava absorver o impacto daquelas palavras. Finalmente, após algum tempo começou a rir da peça que a vida lhe pregara! Ele, que sempre abandonava suas mulheres; ele, que as deixava para trás assim que as coisas se complicavam, ou que uma outra mais bela ou mais jovem aparecia, estava provando uma boa dose do próprio remédio. Tendo se convertido ao espiritismo, Régis procurou dentro de seu coração o perdão para que pudesse libertar Hanna e a si próprio. Encontrou-o empoeirado, em uma curva do coração. Aquela era a maior armadilha que o destino já lhe pregara.

Despertou de seus pensamentos ao escutar os gritos de madame:

-Régis! Régis, você está aí?

Procurou recuperar-se do susto, e encaminhou-se ao quarto de sua patroa, tentando não demonstrar seu nervosismo. Encontrou-a de cama, segurando um lenço rendado, os olhos e o nariz vermelhos de tanto chorar. Ela estendeu um braço, fazendo sinal para que ele se aproximasse, e entregou-lhe uma xícara de chá vazia, que ele deu à empregada, que a levou embora, saindo do quarto e fechando a porta atrás de si. Mandou que ele se sentasse na cadeira que tinha sido colocada em frente aos pés da cama:

-Oh, Régis, meu bom Régis... eu jamais poderia imaginar que aquela ingrata estava nos traindo por trás!

Ele sentia todo o impacto da tragédia daquela situação, mas tentou conter um riso. Sua cabeça estava confusa. Pensou nas palavras de Madame: “Traindo por trás.” Ninguém trai pela frente, pensou. A não ser ele mesmo, no passado. Ele ficou sentado na cadeira, torcendo as mãos, sentindo que seu emprego estava em jogo, e não se atreveu a dizer nada, enquanto ela continuava:

-Eu a tratei como se fosse uma filha! Criei seu menino como se fosse meu próprio neto... oh, o menino... de tudo o que ela me tirou, é de Paulinho que sentirei mais falta! O senhor sabe que eu  nunca pude ter filhos... o menino era tudo para mim...

Naquele instante, Régis se deu conta totalmente da situação, e a realidade abriu-se diante dele.

-Para onde eles foram? Para onde levaram meu filho?

Ela assoou o nariz, deixando-o ainda mais vermelho:

-Partiram de navio para Portugal, onde, segundo ele, se casarão, e levaram o menino com eles.

Régis viu o rosto belíssimo de Hanna, os olhos azuis pelos quais se apaixonara, e escutou a voz doce e sedutora. Naquele instante, compreendeu que ela não era melhor que Vicentina, a quem abandonara, e que jamais seria! Chorou lágrimas amargas, lágrimas que ele vinha tentando conter para não desabar diante de Madame, que penalizou-se dele, pensando que as chorava pela esposa, quando na verdade, chorava por Vicentina e pela vida miserável que ela tivera por causa dele. Se tivesse ficado com ela, se tivesse assumido a filha e a casado com Vicentina, hoje teria uma família feliz e ajustada, e a menina não estaria em um internato. Vicentina estaria viva! Poderiam ter sido felizes... mas Régis sabia que de nada adiantaria pensar no que passou. Os mortos estavam mortos – embora o espiritismo lhe tivesse aberto uma outra porta àquele respeito. Frequentava as sessões do Centro Amor & Caridade, esperando obter uma mensagem de Vicentina, mas sem sucesso. Quem sabe, ela agora se manifestasse? Agora, que era novamente um homem livre? Aquela esperança deu-lhe forças. Olhou para Madame, e disse, com voz calma:

-Cara senhora, se quiser me demitir, eu compreenderei, pois sei que, toda vez que Madame pousar os olhos em mim, se lembrará do acontecido. Mas saiba que eu jamais desconfiei de nada. Acho que tudo o que aconteceu a mim foi merecido, já que levei uma vida desregrada e egoísta até o momento, mas a senhora realmente não merecia estar passando por tudo isso... só nos resta ter fé, e perdoar.

Madame negou com a cabeça:

-Você é um bom homem, Régis, e um bom empregado. Não vou demiti-lo, a não ser que seja de seu desejo deixar esta casa. Preciso de seus serviços, de sua fidelidade, mais ainda agora. E gostaria de dizer que sinto muito pelo que aconteceu, e principalmente, por seu filho... talvez nunca mais o vejamos... posso ter fé, mais jamais serei capaz de perdoá-los pelo que nos fizeram.

Ela recomeçou a chorar, e a empregada entrou no quarto com outra xícara de chá. Madame fez sinal para que Régis saísse. Ele cruzou o corredor sentindo os olhos dos outros empegados grudados em suas costas, e mal virou a esquina e entrou na cozinha, os murmúrios começaram. 


 .   .    .    .


Regiane estava enfiada em seu camisolão, às seis da manhã, sentindo-se sonolenta. Foi seguindo as outras crianças, até que chegou a uma sala de banho grande e comprida, com vários chuveiros enfileirados. As meninas entravam sob os chuveiros e puxavam o ar com força ao contato com a água fria. Imaginem, tomar um banho frio às seis da manhã em Petrópolis, quando o clima era bem mais frio! Quando chegou sua vez, ela olhou para a encarregada – uma menina bem mais velha, que estava ali para assegurar-se de que todas as meninas tomariam banho – e esta fez sinal para que Regiane entrasse no chuveiro. Regiane colocou a ponta do pé sob a  água, sentindo o frio despertá-la. A menina maior a empurrou, segurando-a debaixo do chuveiro, enquanto as outras meninas riam:

-Vamos lá, depois você acaba acostumando! Banhos frios são bons para os pulmões, não sabia? Agora se ensaboe... os cabelos também, isso... muito bem. Enxague... Agora pode ir para a cabine enxugar-se e vista seu uniforme.

Quando Regiane abriu os olhos, estava em uma cabine minúscula, fechada por uma cortina parda. Em frente a ela, o uniforme da escola pendurado em um cabide. Ela tremia tanto de frio que mal conseguia mover-se, mas achou que quanto mais rapidamente se vestisse, melhor, e assim enxugou a pele arroxeada rapidamente com a toalha. Achou estranho que, após vestida, não sentiu mais frio o dia todo, e teve uma sensação de bem-estar que durou até o final da tarde. Aquele ritual do banho frio repetia-se dia sim, dia não. Quando as meninas mais velhas estavam menstruadas, as irmãs não permitiam que tomassem banho, e faziam com que ficassem de cama nos alojamentos ao invés de assistirem às aulas, e as refeições – geralmente, pratos de canja – eram servidas para elas nos quartos. 

Mas ainda demoraria muito para que Regiane descobrisse o que é estar menstruada.

Regiane acostumou-se à rotina da escola, e acabou não achando tão ruim. As freiras eram geralmente bondosas e pacientes, com algumas exceções, mas mesmo as consideradas mais ‘malvadas’ pelas meninas, não chegavam aos pés de Celeste, sua antiga guardiã. Ela procurava não olhar muito para Irmã Malvina, e baixava a cabeça sempre que cruzava com ela em algum corredor. Porém, não podia evita-la nas aulas de aritmética, pois ela era a encarregada de ministrar a matéria, e Regiane, que sempre tivera muitas dificuldades com números, ficava tão tensa durante as aulas, que mal conseguia respirar, com medo de dizer ou fazer algo que chamasse a atenção de Irmã Malvina para si. Aplicava-se na arte de permanecer invisível, embora Irmã Malvina frequentemente a questionasse e a mandasse ir ao quadro negro para resolver equações que ela jamais conseguia. As outras meninas riam dela naqueles momentos. 

Nas outras matérias, apesar de ser bem mais nova que as outras meninas, Regiane era uma aluna aplicada, e não tinha problemas. As suas duas novas colegas, Dóris e Célia, estavam sempre com ela, e as três brincavam juntas na hora do recreio – apesar de Dóris e Célia – respectivamente, com 12 e 9 anos de idade -serem bem mais velhas. As duas tomaram a menor sob sua proteção instintivamente, mesmo sem saber que na verdade ela era dois anos mais nova do que realmente dizia ser. Para todos, Regiane era apenas uma menina franzina, talvez devido a maus cuidados. Nas aulas de arte, corte e costura, Regiane era bem mais lenta que as demais, mas o acabamento de seu trabalho era mais esmerado, o que compensava a sua lerdeza. 

Após um mês na escola, Finalmente Régis pode estar presente em um dia de visita. Ainda estava abatido após a traição da esposa, que àquela altura, estaria bem longe com seu filho, mas Régis não estava zangado com Hanna, pois ela apenas fizera a ele o que ele sempre fazia com as mulheres de sua vida. 

Ao ver o pai ao longe, esperando por ela, a menina correu em sua direção. Régis abraçou sua menininha, entregando a ela uma caixa de tamanho médio, que ela sacudiu, perguntando a ele o que continha. Ele disse:

-Está cheia de seus doces favoritos, filha! Há doce-de-leite com chocolate, rapadura, mariola, sonho, balas, biscoitos doces e chocolates.

O sorriso de Regiane morreu nos lábios.

-O que foi, não gostou, filha?
-É que tenho que dividir tudo com as outras meninas. Da outra vez, não sobrou nada do pirulito que o senhor me deu. Aqui todas temos que dividir tudo.

De repente, o rosto dela se iluminou:

-Já sei! Papai, o senhor pode esperar aqui um pouquinho?
-Sim, mas... onde você vai?

Sem responder ao pai, Regiane escapuliu por entre as outras crianças, indo parar nos fundos da escola, onde ala sabia que existia uma porta que dava para um porão. Já tinha tentado abri-la antes, e verificado que não estava trancada. Ela olhou para os lados, e rapidamente abriu a porta e colocou a caixa no porão, sobre uma mesa que estava no canto, saindo em seguida e fechando a porta atrás de si. As outras meninas disseram a ela que jamais entrasse ali, porque era proibido. Havia ratos, gatos de rua e aranhas. Mas Regiane não tinha medo de bicho nenhum. Uma das meninas mais velhas, responsável por ajudar a olhar as menores, dissera que existia também um fantasma naquele porão, e que ele saía à noite a procura de alguma menina que estivesse fora do dormitório nas horas indevidas, e as levava com ele para a Madre Superiora.

Regiane voltou ao pai, fazendo sinal para que ele ficasse em silêncio. Nem desconfiava que esteve sendo observada por três pares de olhinhos maldosos o tempo todo...

-O que você fez com os doces, menina?

-Shsh... eu escondi! Vou comer quando estiver sozinha e ninguém estiver olhando!
A visita transcorreu normalmente. O pai prometeu voltar para visita-la um outro dia, e pediu que ela se comportasse. Regiane concordou. Ao ver o pai se afastar, percebeu que estava menos triste do que pensava que ficaria. 

No casarão, Fiorela e Rosa estavam às voltas com a administração da casa e o cuidado com as crianças. Rosa pensava muito em Regiane, e gostaria de visita-la, mas Fiorela a convencera de que seria ainda mais sofrível para a menina receber a visita das tias, e que melhor era deixar com que ela se esquecesse delas. Aquela ideia soava um tanto cruel para Rosa, mas ela não tinha forças para contestar a irmã, principalmente porque vivia sob o teto de sua casa. Prometia a si mesma que um dia acompanharia o irmão em uma visita. 

Na verdade, Rosa não tinha forças para muita coisa. Após o rompimento com o noivo, a vida tornara-se um simples suceder-se de dias e noites, sem muito sentido ou sabor. Nada a interessava. Passava horas sozinha – quando não estava ajudando a irmã nos cuidados com os pequenos – e nestas horas, ficava sentada em sua cadeira de balanço, olhando as sombras passando pela parede de seu quarto na edícula. Pensava em tudo o que sua vida poderia ter sido, caso tivesse se casado. Poderia ter sua própria casa e seus próprios filhos, e levaria a sobrinha para viver com ela. Ali, ela era apenas alguém que vivia sob a caridade de sua irmã e seu cunhado, não era dona de nada, não podia ter vontade própria. E mesmo que pudesse, vontade era uma coisa que morrera dentro dela. Ela se perguntava se algum dia sua vida seria diferente.

Toda manhã ela abria a janela do salão à mesma hora, e via passar de braços dados com a esposa o seu ex amor. Os dois trocavam olhares furtivos, para que a esposa não percebesse, e era tudo o que aconteceria entre eles por anos a fio, até que ambos estivessem já bem velhos, e ele, viúvo.



(continua...)





A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...