O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO VII
Regiane apertava o pirulito que o pai lhe dera, e que estava no bolso do casaco, inconscientemente tentando escondê-lo das outras crianças. Metade dele estava para fora, e ela viu que as outras meninas a estavam olhando com insistência. Ela baixou a cabeça, tímida. Notou que todas eram mais altas que ela. Uma das meninas – uma mulata magrinha com tranças no cabelo – aproximou-se:
-Oi. Meu nome é Dóris. E o seu?
-Regiane.
-Por que você está chorando?
-Eu não quero ficar aqui.
-Por que você veio, então?
-Porque meu pai mandou.
-Onde está a sua mãe, Regiane?
-Ela foi embora, acho...
A outra menina suspirou:
-Eu não tenho mãe, nem pai. Minha avó foi para o céu, e meu avô me colocou aqui, só que ele nunca veio me ver. Mas aqui é bom. Pelo menos, sempre tem comida.
Naquele momento, Irmã Dulce aproximou-se, e disse:
-Olá, meninas. Duas de vocês estão aqui pela primeira vez... sejam bem-vindas. Hoje não teremos aulas, deixaremos que vocês conheçam umas às outras enquanto brincam juntas no pátio. Gostaria de apresentar as novatas: Regiane e Célia. Digam olá para elas!
As outras disseram um olá em uníssono, de maneira fria e automática, e logo voltaram a ignorar as novatas e também Dóris . Irmã Dulce continuou:
-Podem ir até o pátio agora. Voltarei daqui a uma hora, e as levarei para o almoço, e depois mostrarei o dormitório. Lembrem-se: vocês só podem brincar do lado de cá do portão!
Ao ouvir aquilo, Célia, a outra novata, uma menina loira e gordinha, sussurrou baixinho junto a Dóris:
-Por que não podemos ir ao outro lado?
-Porque lá é das meninas ricas, as que pagam. Elas tem balanços e escorregas, gangorras, teatrinho, e o chão do lado de lá brilha que nem espelho. E dizem que tomam banhos quentes de manhã, e podem repetir a sobremesa, se quiserem.
Regiane lembrou-se de sua primeira visita à escola, junto com o pai, e das paredes altas e assoalhos polidos. Ficou feliz por não ter sido colocada do outro lado, junto com os fantasmas das pessoas mortas das fotos. Perguntou, timidamente:
-Dóris... por que não podemos ficar com elas?
-Já disse, elas são ricas, e pobres e ricos não devem se misturar. Meu avô vivia dizendo isso.
-Quantos anos você tem?
-Eu tenho doze, e você?
-Eu tenho... oito.
-Mas você é bem pequena, hein? E você, Célia? Quantos anos tem?
-Eu tenho nove. Eu estudava em outra escola, mas ela fechou.
-Você tem mãe?
-Não.
-E pai?
-Também não. As freiras me mandaram para cá. Acho que as outras meninas foram mandadas para outros lugares.
As três meninas foram caminhando juntas, e sentaram-se sob uma mangueira. Logo, um grupo ruidoso de três outras meninas grandes apareceram, rindo alto. Dóris foi logo avisando:
-Não se metam com elas! São as irmãs Bia e Dora e a colega delas, Alice. Elas são muito más. Nem olhem muito para elas, porque se elas perceberem, vocês estão fritas.
As três desviaram os olhares, mas Regiane, que era curiosa, olhou-as de soslaio no exato momento em que a maior delas também a olhava. Elas sustentaram os olhares por alguns segundos, e Regiane voltou a olhar para o chão. Sentiu um calafrio na espinha. Dóris apontou para o pirulito:
-O que você tem aí?
Regiane tentou esconder, mas era tarde.
-Um pirulito que meu pai me deu.
-Divide com a gente, Regiane!
-Mas ele é pequeno demais!
-Não é não! Irmã Dulce disse que a gente nunca deve ser egoísta. Dividimos tudo por aqui!
Dizendo aquilo, Dóris estendeu a mão, e Regiane deu-lhe o pirulito, vacilante. Dóris abriu-o, e com os dentes, partiu-o em três pedaços, dando o maior deles a Regiane. A menina fez cara feia, e
devolveu-o para ela.
-Não quero! Está babado!
As outras duas riram, e se entreolharam. Célia respondeu:
-Mas você é muito cheia de não me toques, hein? Está bem, eu fico com a sua parte então.
Dóris disse:
-Você logo vai aprender como é que as coisas funcionam por aqui. A gente come o que tem, o que dão para nós, não importa nem se tenha caído no chão. Dividimos os doces que ganhamos nos dias de visita. A Irmã Malvina coloca todos eles dentro de um cesto, e cada uma morde um pedaço, ou então, ninguém come. Às vezes quando tem algum que ela gosta muito, ela pega e leva para ela. Você vai ter que aprender a perder o nojo.
Regiane perguntou:
-Mas por que eu tenho que dividir meus doces com todo mundo?
-Bem... porque a Irmã mandou. (e com voz mais doce):É que tem gente aqui, como eu, que não tem visita nunca, e se não fosse assim, nunca poderiam comer doces.
O tempo passou rapidamente, e logo Irmã Dulce voltou ao pátio a fim de conduzir as meninas ao refeitório. Regiane ficou surpresa diante da mesa muito comprida, onde havia pratos, colheres e canecas de latão enfileirados, e se perguntou onde estaria a louça branca, como na casa das tias, quando a Madre Superiora – Irmã Malvina – fez um gesto para que todas se sentassem. As meninas fizeram silêncio, e Irmã Malvina sinalizou às assistentes, que começaram a servir a comida: feijão, arroz, legumes cozidos, um pequeno pedaço de carne sebosa e uma laranja para cada menina. Para beber, um pouco de leite. Regiane não estava acostumada a beber leite durante as refeições, e virando-se para Irmã Malvina, que estava de pé atrás dela, disse:
-Eu não quero o leite!
As outras meninas fizeram um silêncio sepulcral, parando de comer, e todos os olhares se dirigiram a Regiane. Irmã Malvina olhou a menina com seus olhos que eram frias rajadas de censura, e respondeu com voz cortante:
-Aqui todos comem o que estiver sobre a mesa. Beba seu leite agora. Todo ele.
Regiane engoliu em seco:
-Mas eu não quero!
Irmã Malvina berrou:
-Saia da mesa imediatamente!
Irmã Dulce aproximou-se, tentando consertar a situação:
-Irmã, trata-se de uma das novatas, ela ainda não conhece as regras...
-Então está na hora de começar a aprender! Saia da mesa, mocinha. Irmã, leve a menina para o dormitório. Agora!
-Mas Madre, ela nem sequer comeu ainda...
-Comerá na hora do lanche. Guarde o prato dela e o leite na cozinha, e ela o terá de volta em algumas horas.
Irmã Dulce nada podia fazer contra as ordens da madre superiora, e pegando Regiane pela mão, levou-a ao dormitório, que estava vazio. Mais uma vez, a menina surpreendeu-se com as camas cobertas por cobertores cinzentos, enfileiradas umas bem juntinho das outras, com espaço apenas para que as meninas caminhassem espremidas entre elas. Contou-as a dedo: havia vinte delas. Levou-a a uma cama sob uma grande janela, dizendo:
-Aqui é sua cama. Guarde bem o lugar, o número é 16. Suas coisas estão guardadas dentro do seu armário, que fica no corredor, e tem o mesmo número. Aqui está a sua chave. Não a perca! Você conhece os números, não conhece?
-Sim! E eu sei ler e escrever, porque as minhas tias me ensinaram.
-Então você deve ser uma menina bastante esperta, Regiane.
Dizendo aquilo, Irmã Dulce colocou a chave, que estava em uma correntinha prateada junto com uma medalha de Nossa Senhora, no pescoço de Regiane. A menina sentiu que naquele ambiente desconhecido, Irmã Dulce poderia ser uma aliada. Sentia-se tranquila na presença dela, e achava que podia perguntar o que quisesse, e ela responderia com gentileza.
-Por que dormimos todas juntas?
-Porque não há espaço para que cada menina tenha seu próprio quarto.
Regiane olhou para o assoalho de madeira, fosco mas aparentando limpeza, e cheirando a desinfetante:
-Por que o chão daqui não brilha? Lá no outro prédio, o chão brilha como espelho!
-É que é mais prático assim, Regiane. Assoalhos brilhosos dão muito trabalho, e arranham com facilidade. Mas veja, é tudo muito limpo.
Ela concordou com a cabeça. Passou a mãozinha sobre o cobertor, e sentiu a aspereza da lã.
-Isso espeta!
A freira riu:
-Não se preocupe, tem um lençol bem macio por baixo. Amanhã de manhã você terá que acordar assim que ouvir o sino tocar; daí, você tem que se vestir com o camisolão de banho.
Irmã Dulce mostrou a ela uma camisola feia e larga que ficava pendurada na cabeceira da cama.
Regiane olhou-a, curiosa.
-A gente tem que vestir isso para tomar banho? Nunca vi ninguém tomar banho de roupa. Como é que a gente vai se ensaboar?
-Bem, você passa o sabão por baixo da roupa. E depois, enxagua.
-Por que eu não posso tomar banho sem essa camisolona?
Irmão Dulce tentou soar convincente, embora não acreditasse nas próprias palavras:
-Porque a nudez é um pecado mortal.
-E o que é um pecado mortal?
-É alguma coisa feia diante dos olhos de Deus.
-Uma coisa errada?
-Isso mesmo.
A menina recordou-se das vezes em que Celeste a acusara, e à sua mãe, de serem pecadoras, enumerando os motivos que justificavam suas teorias. Ela era uma pecadora toda vez que os meninos – Romualdo e Rômulo – tentavam bater nela, e ela se defendia, jogando coisas sobre eles. Era uma pecadora quando se recusava a comer a comida que estava com gosto esquisito, pois sabia que se comesse, passaria muito mal. Era uma pecadora quando chorava enquanto Celeste tentava desembaraçar seus cabelos, puxando-os com força, antes dos dias de visita do pai. E sua mãe, segundo Celeste, era a maior de todos os pecadores, pois deitara-se com vários homens e tivera filhos ilegítimos.
-Eu sou uma pecadora.
Aquela declaração feita por uma menina tão pequena, tocou o coração de Irmã Dulce. A tarde deitava seus raios de sol sobre as caminhas arrumadas, os raios brancos em feixes. Lembrou-se de sua própria infância, quando fora deixada naquela mesma escola aos dezesseis anos de idade, há muitos anos, com um filho na barriga. Sorriu:
Aquela declaração feita por uma menina tão pequena, tocou o coração de Irmã Dulce. A tarde deitava seus raios de sol sobre as caminhas arrumadas, os raios brancos em feixes. Lembrou-se de sua própria infância, quando fora deixada naquela mesma escola aos dezesseis anos de idade, há muitos anos, com um filho na barriga. Sorriu:
-Querida, todos somos pecadores.
(continua...)
Engraçado, Ana, tento me lembrar de quando fui internada aos 5 anos, mas poucas coisas me vêm à lembrança. Lembro de uma menina mais velha e o que fez comigo.
ResponderExcluirLembro de ter criado uma bolha de pus, enorme em meu pé e passei por hospital.
E, tenho muito nítido, uma irmã muito amorosa, que sempre me levava quando saia, aí, quando chegávamos, me levava para a cozinha, para almoçar com ela. Parecia que o sabor da comida era diferente, muito mais gostosa!
Fora isso, não lembro de mais nada.
Com a sua história, tentei forçar a memória, mas não tem jeito, não lembro de mais nada.
O escritor tem uma imaginação muito fértil, admiro os detalhes de seus contos. Obrigada!
Tenha um excelente fim de semana!
Abraços carinhosos
Maria Teresa
Tenha um lindo sábado flor!
ResponderExcluirbjs
http://www.pinkbelezura.com/
O que será da pobre Regiane... Creio que Deus lhe recompensará em algum momento.
ResponderExcluirConto bom de se ler... Lembro dele sempre, tipo: será que a Ana já postou continuação? rsrs
Bacios
Certas vaidades são piores que a cegueira.
ResponderExcluirQuando eu era criança me sentia igual Regiane, tudo era pecado, morria de medo de inferno, até escrevi sobre isso (o texto se chama "No mesmo lugar")
Adorando e torcendo muito pela Regiane.