segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO XII









O ANJO NO PORÃO- CAPÍTULO XII




A escola estava em polvorosa; Getúlio Vargas, o então Presidente da República, estava em, Petrópolis, hospedado no Palácio Rio Negro, e fora anunciado que ele passearia pelas ruas da cidade naquela tarde. As freiras preparavam as crianças, fazendo anúncios nas aulas da manhã, e avisando que as aulas da tarde estariam canceladas, e que todas elas deveriam estar usando seus uniformes de gala após o almoço, pois iriam para a frente da escola a fim de verem o Presidente passar. Bandeirinhas de papel eram distribuídas entre as crianças, que eram instruídas a agita-las a fim de saudar o chefe da nação. Getúlio Vargas, uma criatura simpática e acessível, parava para falar com as meninas e cumprimentar as freiras. Às vezes, apertava as mãos de algumas delas. As alunas mais antigas estavam acostumadas àquele ritual, mas ele era novidade para as alunas mais novas, como Regiane. Ansiosa, a pequena perguntou à Irmã Dulce:

-O que é um Presidente da... da.. República?

-Presidente da República, Regiane, é um homem muito importante que manda em todo o país. Ele toma decisões muito sérias em nome da Nação. 

-Que tipo de decisões? O que são decisões?

-Decisões são coisas que decidimos, ou seja, que queremos ou precisamos fazer. As decisões de um Presidente da República tem a ver com o bem-estar do povo e a segurança do país, por exemplo.
Regiane refletiu por um momento, os olhos perdendo-se pelas nuvens que passavam à janela. A sala de aula estava vazia, e as outras crianças tinham ido brincar no pátio, pois era a hora do recreio. Irmã Dulce ficou aguardando pacientemente enquanto corrigia alguns cadernos, pois sabia que Regiane teria mais perguntas. 

-Ele pode fazer o que quiser, pois é a pessoa mais importante do país,. Certo?

A freira parou de corrigir o caderno, pousou o lápis sobre a mesa e baixou os óculos:

-Hum... quase isso. Um Presidente pode fazer quase tudo.

-Se eu pedir uma coisa a ele, a senhora acha que ele pode me dar?

Irmã Dulce sorriu:

-Mas o que é isso que você tanto quer, minha pequena?

Regiane arregalou os olhos:

-Eu queria ter uma casa para poder morar com o meu pai. 

Irmã Dulce sentiu que os olhos ardiam e que ela poderia começar a chorar. A simplicidade das crianças sempre a surpreendia e encantava. 

-Sinto muito, querida, mas acho que se você pedisse a ele uma casa, ele não poderia dar-lhe uma...
-Mas ele não é a pessoa mais importante do Brasil? Ele não pode quase tudo?

-Sim, mas...

Regiane a interrompeu:

-Então ele pode me dar uma casa de presente!

-Mas uma casa custa muito dinheiro, querida...

-Então o Presidente não é rico?

Irmã Dulce ficou sem saber o que responder, e achou melhor não explicar muito. Buscou uma resposta que satisfizesse a urgência daquele momento, e depois achou melhor desconversar:

-Não muito, Regiane...

De repente, ela lembrou-se de Ricardo, que morava no porão. Esqueceu-se de que tinha prometido não contar a ninguém que ele estava ali:

-Eu poderia levar meu amigo que mora lá no porão para morar comigo.

Irmão Dulce retirou os óculos, assumindo uma postura séria que espantou a menina. Regiane viu que a freira empalidecera, e que suas mãos tremeram ao retirar os óculos. Imediatamente, lembrou-se da promessa que fizera a Ricardo, de jamais dizer a ninguém que ele estava ali, e pensou rapidamente em uma saída. Irmã Dulce balbuciou:

-Que amigo é esse, menina? De quem você está falando?

Regiane hesitou, depois assumiu um olhar confiante ao afirmar:

-De um gatinho que vi por lá... quando as meninas me trancaram.

Ela percebeu que as feições de Irmã Dulce relaxaram, e que a cor voltou ao seu rosto. Irmã Dulce olhou a menina longamente, e disse, encerrando o assunto:

-Vá brincar lá fora. Preciso terminar estas correções.

Regiane deixou a sala de aula correndo em direção ao pátio, sem escutar as ordens da freira:

-Não corra, menina!

Mal Regiane saiu, Irmã Dulce deixou-se perder em suas memórias. Lembrou-se do menino no porão. Ricardo, seu filho, que ela tivera apenas duas semanas após chegar naquela escola, há dezessete anos. Irmã Malvina queria força-la a entregar o menino a um casal de americanos que desejavam adotar uma criança, mas ela implorou tanto para que ela não o fizesse, que a Madre Superiora cedeu; mas com a condição de não dizer a mais ninguém que a criança existia, e de cria-la longe dos olhos curiosos dos outros e dela mesma. Confinou o menino ao porão, de onde ele quase nunca saía. Às vezes, quando ela finalmente tinha tempo de visitar a criança, o encontrava chorando muito, e parecia que estava chorando há horas. Ela o pegava no colo, embalava, alimentava, banhava e punha para dormir, cantando-lhe baixinho as canções de ninar das quais  conseguia lembrar-se. Aos domingos e feriados, quando a escola estava mais vazia, Irmã Dulce levava seu filho lá para fora, em um canto escondido do pomar, e deixava que ele tomasse sol e visse a luz do dia durante algum tempo. Aqueles momentos eram os mais felizes de sua vida!

Gostaria de poder cria-lo como qualquer criança normal e saudável era criada, mas sendo mãe solteira, e dependendo da caridade de outros para ter o que comer, ela sabia que não podia fazê-lo. Para onde levaria seu filho? A ideia de entrega-lo para adoção e nunca mais vê-lo causava-lhe uma dor excruciante! Planejava deixa-lo crescer, e educa-lo nas horas vagas. Conseguiu que uma de suas amigas do lado de fora ficasse com ele a cada quinze dias, a fim de livrá-lo um pouco do confinamento no porão. Ela dizia a todos que o menino era de um orfanato, e que gostava de leva-lo para casa de vez em quando a fim de prestar um pouco de caridade. Era seu dever cristão. 
 Já crescidinho, Ricardo era instruído a nunca fazer barulho, e nunca permitir que alguém o visse. A porta do porão era mantida sempre trancada. A mãe dizia a ele que havia monstros do lado de fora que gostavam de devorar crianças que saiam sozinhas, e confiando na mãe, Ricardo nunca saía, vendo no porão um refúgio contra os perigos do mundo lá fora. Desenvolveu certa síndrome do pânico, e começou a não querer mais sair nem mesmo nos finais de semana, quando a amiga da mãe vinha busca-lo, e quando era obrigado, sentia tanto medo que passava mal. Aquelas ocasiões antes tão esperadas passaram a causar-lhe verdadeiro pavor, até que finalmente, a mãe concordou em encerrar as suas saídas – com a condição de que ele concordasse ir com ela até o pomar algumas vezes, e sentar-se ao sol e fazer um pouco de exercício. Se alguém o visse, poderia mentir, dizendo que o menino era filho de um dos jardineiros da escola, mas nunca ninguém o viu, pois ela tomava muito cuidado, levando-o sempre para a parte mais distante da escola, onde as crianças não tinham permissão de ir e as outras freiras jamais frequentavam. Ela o fazia apenas nos finais de semana, ou quando os jardineiros não estavam trabalhando.

Ao voltar para a segurança do porão, Ricardo sentia-se em paz. A mãe levava-lhe muitos livros, alfabetizando-o e ensinando-lhe matemática, história, geografia e ciências. Ele tinha pelo menos duas horas de aulas durante a semana, e quatro aos sábados e domingos. Irmã Dulce deixava-lhe bastante tarefas caseiras para que Ricardo se ocupasse, e muitos livros para ler e resumir. O menino foi crescendo, tornando-se muito instruído, exageradamente pálido e demasiadamente quieto. Sabia que Irmã Dulce era sua mãe, e assim a chamava, mas sabia que não deveria chama-la de mãe, caso os dois fossem vistos juntos. 

Vivia isolado de tudo e de todos, mas era assim que se sentia seguro. Na janelinha do seu quarto havia uma cortina que encobria a visão de quem estava do lado de fora, mas ele às vezes, quando estava sozinho, levantava uma das pontas e assistia através da pequena greta no vidro às outras crianças brincarem no pátio, ao longe. Às vezes sentia vontade de juntar-se a elas, mas sabia que era proibido. Sua mãe deixara bem claro, que caso o descobrissem, ambos seriam expulsos e devorados pelos monstros do mundo lá fora. Mesmo assim, algumas das meninas o tinham visto à janela rapidamente – e ele sempre tentava ser o mais discreto possível, baixando a cortininha assim que achava que o estivessem olhando. A brancura do seu rosto fez com surgisse uma lenda que dizia que o porão era habitado por um fantasma. Irmã Dulce, ao descobrir o que as meninas andavam comentando, achou que o melhor seria alimentar aquela lenda, a fim de desencorajá-las a desejarem investigar, e inventou uma história: Há muitos e muitos anos, um menino louco e muito malvado escondera-se naquele porão. Alimentava-se de ratos e outros insetos, além das frutas e legumes que roubava do pomar e da hortinha. Sempre que encontrava alguma menina caminhando sozinha nas imediações do porão, ele a sequestrava, e ela nunca mais era encontrada viva. A lenda foi o suficiente para causar pavor nas meninas, e deixa-las bem longe do porão.

Aos poucos, Ricardo compreendeu que os monstros dos quais sua mãe falava eram uma alegoria, uma maneira que a mãe encontrara de mantê-lo quieto no porão; mesmo assim, os tais monstros viviam dentro dele, para onde se mudaram com o passar do tempo. Ricardo não queria sair. Não poderia, mesmo se quisesse.

Irmã Dulce sacudiu a cabeça, enxotando aquelas lembranças, encaixotando-as novamente em uma parte não acessada frequentemente que mantinha dentro da própria cabeça. Aqueles pensamentos faziam-na sofrer, mas logo o sinal tocou, encerrando o recreio, e ela foi cuidar de preparar as crianças para verem o Presidente passar, esquecendo-se de seus tormentos.

Ela organizou a fila no pátio, distribuindo as bandeirinhas e aconselhando as crianças a não fazerem nenhuma algazarra, mas a serem educadas e silenciosas. Se o presidente as cumprimentasse, deveria fazer-lhe uma reverência. Estava programado que ele passaria pelos portões da escola às três da tarde. Ainda eram duas e trinta. De repente, Regiane teve uma ideia: pediu licença à freira, dizendo que precisava ir ao banheiro. Irmã Dulce permitiu, contrariada, e pediu-lhe que não demorasse, pois se a Madre Superiora chegasse e não a encontrasse por lá, haveria motivos para uma grande bronca.

Regiane saiu da fila correndo, mas ao invés de dirigir-se ao lavatório, foi até o quarto e pegou lápis e papel. Ia escrever uma carta ao Presidente da República. 

Sentou-se em sua caminha, no dormitório vazio. Sabia que precisava ser muito rápida, e colocando o papel sobre a capa dura de um livro, começou:

“Senhor Presidente: Meu nome é Regiane, e vivo nesta escola. Meu maior sonho é ter uma casa. Não que a escola seja de todo ruim, mas eu prefiro morar em uma casa com meu pai. Ele trabalha longe e não pode ficar comigo, e minha mãe morreu. Eles dizem que ela foi viajar, mas eu sei. A bruxa da dona Celeste me contou. Dona Celeste é uma pessoa horrível que meu pai pediu para tomar conta de mim antes de me mandar para cá. Nesta escola a comida nem sempre é boa, e não temos sobremesa todos os dias, a não ser do outro lado, onde vivem as meninas ricas. Às vezes a gente encontra insetos grandes no feijão, mas temos que tirar os bichos e continuar a comer assim mesmo, ou a Madre Superiora nos deixa de castigo. Também sou obrigada a partilhar os doces que meu pai me traz com as outras meninas, e não me sobra quase nada! E ainda somos obrigadas a tomar banho gelado. É muito ruim! Se eu tivesse uma casa, meu pai poderia morar comigo e eu poderia levar minhas melhores amigas também e poderia ter um cachorrinho, e comer doces, e tomar banho quente. Por favor, me compre uma casa. O senhor é muito poderoso, e manda em todo mundo. Obrigada. Assinado: Regiane.”

Ao terminar a carta, que ficou cheia de erros, mas não havia tempo de consertá-los, a menina dobrou-a e escondeu-a sob a blusa da escola, no cós da saia, voltando para a fila.
Irmã Dulce ficou brava  com ela pela demora, pois Irmã malvina ralhara com ela por tê-la deixado sair da fila. Regiane desculpou-se. Levou a mão até a carta. Seu coração batia muito forte. Estava nervosa e cheia de expectativas, pois não sabia se conseguiria entregar sua carta ao Presidente. 
Finalmente, chegou a hora, e as meninas foram encaminhadas em fila até as grades de ferro que separavam o pátio da rua. Regiane tratou de empurrar as outras até conseguir um lugar bem na frente. Logo, viram a comitiva se aproximando, e de repente, Regiane compreendeu que não sabia quem o Presidente era. Virando-se para a menina ao lado, perguntou: 

-Quem é o Presidente?

A menina, mal olhando para ela, disse:

-É aquele baixinho de chapéu.

Com o coração aos pulos, Regiane viu o Presidente da República se aproximando, e enquanto as outras meninas agitavam suas bandeirinhas e as freiras aplaudiam, ela tirou sua carta de dentro da roupa, e assim que ele estava perto, esticou a mão bem na frente do rosto de Getúlio Vargas! Surpreso, ele deu uma meia parada, e olhou-a bem de perto. Sorriu, apanhou a carta, na qual ela tinha desenhado uma flor bem grande, acariciou seu cabelo brevemente e continuou andando. Ela estava emocionada: o homem mais importante do Brasil tocara em seu cabelo, e leria a sua carta! Será que ela conseguiria a tão sonhada casa?

Cheia de expectativas, Regiane quase não dormiu naquela noite. Na manhã seguinte, estava muito quieta e distraída durante as aulas, o que rendeu-lhe algumas broncas, mas ela não ligou. Achava que logo estaria bem longe dali, em sua própria casa. O Presidente a ajudaria. 

Naquela tarde, após as aulas, foi visitar Ricardo para contar-lhe as novidades:

-Adivinha só, Ricardo. Eu vou embora!

O rapaz pareceu triste, mas mesmo assim, deixou escapar um pequeno sorriso:

-Vai mesmo? Mas... bem, estou feliz por você. Não vai sentir minha falta?

Ela não tinha pensado naquilo; se fosse embora, talvez nunca mais o visse. Mas de repente, teve uma ideia.

-É que o Presidente da República vai me dar  uma casa, e eu vou poder levar quem eu quiser. Você está convidado para morar comigo e meu pai e minhas amigas, e meu cachorrinho também. 

Ricardo não parecia muito entusiasmado. Abriu um dos seus livros, e passou a lê-lo, ignorando Regiane.

-Você não ficou contente, Ricardo?

-Estou feliz por você... isso é, se conseguir a casa. Mas não posso ir. Não posso sair daqui, já te disse. Este é o meu lugar, a minha casa. 

Regiane ficou triste, mas tentou não demonstrar:

-Então... eu venho visitar você quando eu puder.

Ele fechou o livro:

-Não acredito nisso. Você vai embora, e eu vou ficar sozinho de novo, pois você é a única que... 
Ele deixou a frase sem terminar. Regiane olhou para ele, e percebeu que ele ia dizer alguma coisa que não deveria. Sabia que quando as pessoas grandes faziam aquilo, nem adiantava perguntar, pois elas não abriam a boca! Achou que Ricardo, sendo bem mais velho que ela, não seria diferente. Não argumentou com ele; chegou mais perto, e colocou a mãozinha sobre a dele:

-Você não vai ler uma história para mim hoje? Gosto daquela que tem a princesa que dorme cem anos. 

Ele sorriu, e foi procurar A Bela Adormecida na prateleira. 

(continua...)





Um comentário:

  1. Pensando nas reações, tanto da mãe de Regiane, como a de Ricardo... Tão contrastantes, cada uma tentou creio do seu melhor modo, enquanto as crianças foram sobrevivendo.
    Ricardo parece forte, então penso que as dores dele devam ser mais profundas. Regiane apesar dos traumas, ainda preserva alguma inocência, talvez pela menor idade, não sei...

    Curiosa pra ver o desfecho.

    Um beijo Ana, excelente dia!

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