terça-feira, 30 de maio de 2017

A MÃO & O LAÇO - Capítulo VIII



Ela se acalmou. Estranhamente, o céu de chumbo começou a desfazer-se, e o vento levou embora as nuvens mais pesadas, deixando a paisagem menos opressiva. A chuva esperada não caiu. Ela pegou minha mão, e nós nos sentamos nos balanços de novo. 

“-Eu era muito pequena. Não entendia direito as coisas que meu pai fazia. Só sei que apesar de eu não gostar, principalmente porque ele me pedia para não contar nada à mamãe, eu sentia que aquele momento era nosso, que ele nos aproximava, e que eu fazia por ele uma coisa que o deixava feliz. E que ele ficava grato. E era o nosso segredo, algo que era só nosso. Ele me chamava de sua princesinha, dizia que me amava, e eu acreditava. Era melhor ficar com ele do que com minha mãe, pois ela era sempre muito séria e mau humorada. Os dois não se davam bem. Meu pai passava muito tempo fora de casa, e quando chegava, eles brigavam. Minha mãe era muito rígida quanto a disciplina. Ele não; era sempre bom para mim, me levava presentes, doces... tudo o que eu precisava fazer, era dar a ele os carinhos que ele me pedia. E ele jamais me feria. Era sempre tão carinhoso e doce... mesmo quando me tocava... se eu pedisse, ele parava. E me abraçava, e me colocava para dormir. As coisas aconteciam sempre que minha mãe saía de casa para fazer compras, ou quando ela tinha que trabalhar até mais tarde e ele chegava em casa mais cedo e dispensava a babá. 

Você pode achar estranho, mas eu o amava. Ele era o meu pai. Mas as coisas entre ele e minha mãe foram ficando cada vez piores. Eles brigavam muito. Eu tinha medo de que um dia ele fosse embora e nunca mais voltasse. E ele começou  a beber demais. Um dia, eles brigaram feio. Houve barulhos de coisas se quebrando na cozinha, gritos... eu ... estava no meu quarto, sentada dentro do armário, a cabeça escondida entre as mãos, esperando tudo acabar para que eu pudesse sair do meu esconderijo. A porta da frente bateu, e eu corri até a janela e vi minha mãe saindo para a rua, carregando a bolsa, ela ia trabalhar. Parecia estar chorando...

Eu desci, e fui até o quarto dos meus pais. Ele estava sentado na cama. Parecia triste. Eu me aproximei. Eu tinha só seis anos, como poderia saber que quilo era errado? 

E aquela foi a primeira vez que ele me machucou. Ele estava muito bêbado... eu nunca me esquecerei do cheiro do álcool... eu senti nojo, e muito medo. Eu gritei, mas ele tapou a minha boca e me deu um tapa. Ele me tocou de uma maneira muito dolorida. 

Quando tudo acabou, eu sangrava. E ele me levou para o meu quarto, me jogou na banheira, me deu um banho com tanta brutalidade... eu via desprezo nos olhos dele. Depois me colocou para dormir, e disse que se eu abrisse a boca, ele me daria uma surra. Aquilo não me deixou tão preocupada, mas quando ele me disse que se eu contasse, ele iria embora para sempre e que eu ficaria sozinha com minha mãe, eu entrei em pânico. 

E ele ainda fez aquilo comigo algumas vezes. Eu não contava nada para ninguém, e não deixava mais minha mãe me dar banho ou me vestir, com medo de que ela visse as marcas. Eu aprendi a me cuidar sozinha. E aprendi também a usar as roupas adequadas para esconder as marcas roxas nos braços ou pernas. Ele nunca me feria no rosto. Apenas nas partes que ficavam cobertas. 

Um dia ele chegou em casa mais tarde ainda. Já era quase de manhã, e eu estava acordada na minha cama, pois eu não conseguia dormir bem enquanto ele não chegasse. E assim que ele entrou em casa, eu corri para a porta do quarto e escutei. Pensei que ele viria até mim, mas ele foi direto para o quarto deles, e a briga começou. Enquanto mamãe gritava com ele, ele dizia que a desprezava. E que ele iria embora de casa. Ela disse algo sobre ele ter outra mulher, e ele confirmou, disse que tinha mesmo, e que iria morar com ela, pois já tinham uma garotinha da minha idade, e ele não precisava mais de nós.

Ao ouvir aquilo, corri até o quarto. Gritei que ele não podia ir embora e nos deixar sozinhas. Eu o odiei quando ele me disse que não me queria mais, pois a outra menina era bem mais bonita do que eu. Então berrei, enfurecida: “Vou contar tudo à mamãe se você for embora!”  Minha mãe me olhou de olhos arregalados, dizendo: “Tudo o que?” E eu, sem saber explicar direito, apontei para as marcas arroxeadas no meu corpo, e também para o lugar onde ele mais me machucava, enquanto eu dizia a ele, chorando, que eu nunca mais guardaria segredos com ele. Meu pai pegou as malas e saiu, e minha mãe me levou ao médico, que constatou o estupro. Meu pai ficou alguns anos preso depois daquilo, e fiz tratamento psicológico, mas a única coisa que me preocupava, era que ele tinha outra filha. Eu estava com ciúmes. Porque na minha cabeça, ele era bom para  a outra menina, ele a tratava com o carinho que não tinha mais por mim, e que por causa dela, ele deixara de me amar e me machucara.  

Quando eu fiz 13 anos, ele saiu da prisão e foi morar com Doralice e Diana. Eu o segui e descobri onde morava. Quando vi Diana, reconheci-a como sendo uma das meninas da escola. A minha irmã. O tempo todo ela estudava na mesma escola que eu, e eu nem sabia quem ela era. E então eu me apresentei a ela um dia, depois da aula, e desde aquele momento, eu a odiei. Eu a proibi de dizer a qualquer um que éramos irmãs. Diana era bem mais sugestionável do que eu, e ela morria de medo de mim... e morria de medo que alguém mais soubesse de sua vergonha. Partilhei a minha com ela. Eu passei a sentir dó e desprezo por ela, conforme o tempo ia passando. Mas por mais absurdo que isso possa parecer, eu não queria que meu pai fosse para a cadeia. Droga, ele é meu pai!”

Eu escutava tudo o que ela dizia, e aquele quadro tenebroso ia se desenhando na minha cabeça. O rosto de Shirley era uma máscara de louça, branca e rígida. Perguntei:

-E você nunca se preocupou com o que acontecia a ela?

Shirley fungou, enxugando o rosto com a  manga da roupa:

-Na verdade, não... só mais tarde eu entendi melhor que nós duas éramos vítimas, e você me mostrou, me ajudou a compreender. Sua mãe também. 

-E durante o tempo que seu pai esteve fora da cadeia, vocês mantiveram contato?

-Tentei... eu queria entender por que ele fazia aquelas coisas... mas ele me repelia. Até que descobri que eu poderia me vingar dele. Eu poderia usar Diana para me vingar dele. Ela tinha me contado tudo o que ele fazia com ela, e eu gravara a conversa com meu celular. Filmei tudo o que ela disse. Fui até ele, e exigi que ele me pagasse. Ele ficou furioso, tentou me bater e roubar meu celular, mas eu expliquei que eu tinha armazenado tudo em nuvem, e em outros dispositivos, e que se ele tentasse me agredir, ou não me desse o dinheiro que eu queria, eu iria à polícia e entregaria o vídeo. E assim, desde meus quinze anos, eu venho recebendo dinheiro de meu pai, até que ele perdeu o emprego e disse que não poderia mais me pagar. 

Minha cabeça girava, e eu começava a compreender que Diana chantageava o pai, usando a irmã como escudo. Aquilo era terrível! Senti raiva dela, e medo. A história que ela estava me contando  parecia ser a de alguém totalmente diferente da pessoa que eu via diante de mim, tão frágil e pálida. 

Era como se ela estivesse me contando algo que acontecera a outra pessoa, não a ela. Perguntei:

-Então foi por isso que você o encontrou na noite da morte de sua irmã? E o que ele entregou a você era um pacote com dinheiro, não era?

Ela empalideceu mais ainda:

-Quem te contou isso?

-A própria Diana viu vocês dois no bar conversando, e contou tudo a Drica por telefone. Drica me disse ontem à noite, quando ela e Susi foram lá em casa. Logo depois, enquanto ela ainda falava ao telefone, Drica ouviu ruídos de luta e ela desapareceu. Então descobrimos que ela estava morta. 

O rosto dela permanecia branco feito giz. Os olhos estavam injetados e úmidos. Ela enxugou o suor que brotou em sua testa, apesar do vento gelado. 

-Por que você não disse à polícia, quando Diana desapareceu, que você estivera com Pedro? E mesmo depois que o corpo dela foi encontrado, por que você não disse nada, Shirley?

Eu estava chorando, e ela também. De repente, ela me olhou e disse, quase aos berros:

-E por que você não foi contar tudo `a polícia ao invés de vir falar comigo? Porque você sabe, tanto quanto esse céu que está sobre nós, que eu seria incapaz de fazer mal a ela! Eu sei que você pode ter chegado a pensar que eu possa ter matado a Diana, não é? Mas eu não matei!

-Mas você sabia o tempo todo onde Pedro está, e não disse nada. Por que?

-Porque eu não queria que ele fosse preso! Você não entende?

-E onde ele está agora?

Ela não respondeu. Eu estava ofegante, respirando com dificuldades. O céu escureceu novamente, e as primeiras gotas de chuva começaram a cair. 

-Não sei... Ele estava escondido em um casebre na floresta, a alguns quilômetros da cidade. É uma velha cabana de caça, e ele costumava me levar lá com mamãe quando eu era pequena.  Mas a casa ficou muito tempo abandonada, e está quase em ruínas. Ele tirou do banco todo o dinheiro da indenização que recebeu quando foi demitido e escondeu lá para fugir, quando soube que Letícia, sua mãe,  sabia de tudo e ajudaria Doralice e Diana. Mas eu – só eu – sabia daquela possibilidade, da cabana... minha mãe pensava que a cabana não existia mais. Que tinha sido vendida, ou algo assim. Mas eu desconfiei, e fui até lá, e o encontrei. Depois, sem que ele me visse, deixei um bilhete na porta da casa, marcando um encontro com ele naquele bar imundo, obrigando-o a me entregar parte do dinheiro. Ou eu chamaria a polícia. E foi isso que Diana viu. Logo depois que ele saiu do bar, eu saí também, e fui para casa. 

-Shirley... você tem ideia do que fez? Você pode estar escondendo o assassino de sua irmã! Você precisa ir à polícia e contar o que sabe! 

-Não adiantaria! A essa hora, ele está bem longe daqui. Disse que nunca mais o veria. 

Mesmo assim, você terá que fazer isso. Ou então farei eu!

Ela me olhou com tamanho ódio, que eu pensei que fosse me matar. 

-O dinheiro é meu! É com ele que eu vou pagar minha faculdade e me manter antes de arranjar um bom trabalho! Se eu for a polícia, terei que devolver o dinheiro, e jogar meus sonhos pela janela por causa de um caso perdido! Ela já está morta, Jordana! Nada vai trazê-la de volta, mas eu estou aqui e preciso desse dinheiro! Para você, que nasceu e cresceu em um berço de ouro, e que vai herdar uma fortuna quando sua avó morrer, dinheiro nada significa, mas para mim, filha de uma professora que mal ganha para comermos, a coisa é bem diferente!




(continua...)










quinta-feira, 18 de maio de 2017

A MÃO E O LAÇO – CAPÍTULO VII






Fiquei esperando, os olhos presos em Drica, especialmente nos lábios dela, que pareciam pronunciar palavras absurdas enquanto ela falava:

-Diana me telefonou na noite em que ela desapareceu. O que eu vou contar pra você, ninguém sabe. É que nós não sabemos o eu fazer com esta informação.

As duas se entreolharam, e Drica continuou:

-Ela me disse que tinha acabado de ver o pai na cidade, e ela o tinha seguido. Ele foi até um bar esquisito, onde ele sempre costumava ir. Ela ficou na calçada, mas havia uma vitrine de vidro, e Diana ficou vigiando o pai... ele pediu uma cerveja... e logo Shirley apareceu, vindo de dentro do bar – provavelmente, do banheiro – e sentou-se ao lado dele. 

Engoli em seco; por que Shirley não me contara que tinha estado com o pai na noite do desaparecimento de Diana? Por que ela não tinha contado aquilo a ninguém? Drica fechou os olhos durante algum tempo, apoiando-se no braço do sofá. Notei que ela tentava conter o choro. Continuou, após respirar fundo algumas vezes:

-Diana me disse que os dois conversaram durante algum tempo; ele parecia estar furioso, e em um certo momento, entregou a ela um pacote que ela guardou na mochila. Shirley parecia estar se divertindo com a situação, enquanto Pedro, o pai, estava muito zangado. 

Tentei imaginar a cena. Algumas coisas passaram pela minha cabeça; uma delas, é que talvez Shirley estivesse contando a ele que agora elas não estavam mais sozinhas, e que havia gente ajudando-as, e que ele não poderia mais aproveitar-se de Diana. Talvez ela só quisesse ver a cara dele enquanto ela falava aquilo, e por isso, marcara o encontro. Ou então o pacote que ele lhe entregara era dinheiro, e ela o estivesse chantageando. Pensei naquilo, e uma luz se acendeu. Porque eu me lembrei de que quando mamãe e eu fôramos à casa de Diana para falar com Doralice, ela dissera que Pedro havia desaparecido e que ela não sabia do paradeiro dele. Mas se ninguém sabia, como Shirley ficara sabendo? E uma outra coisa que passou-me pela cabeça, era que eu poderia estar errada, e que provavelmente Shirley tinha uma boa razão para não ter contado aquilo a ninguém. Será que estaria protegendo o pai? Se ela sabia do paradeiro dele, por que não o denunciava à polícia, se ele era suspeito pela morte da irmã?

Perguntei a Drica:

-E o que mais ela disse?

Ela continuou:

-Disse que ficou olhando os dois durante algum tempo. Shirley falava com o pai e às vezes ria. Naquelas horas, ele ficava ainda mais enfurecido. Depois, ele se levantou e atravessou o bar feito um furacão, saindo para a calçada e se perdendo na multidão. 

-E quanto a Shirley?

-Pois é... esta é a parte estranha. Estávamos conversando sobre isso ao telefone, quando de repente, ela deixou de me responder, e disse: “Você? O que você quer de mim?” E então, o telefone ficou mudo. Tive a impressão de que ela gritou. 

Gelei; senti calafrios subindo pela minha espinha. Provavelmente, Pedro a encontrara, e acabara com ela, por medo de que ela contasse à polícia tudo o que vinha acontecendo. Pelo menos, era nessa história que eu queria acreditar. Mas ao mesmo tempo, a ideia de que o pacote que Pedro entregara à Shirley continha dinheiro, não me saía da cabeça. 


Eu disse às meninas que elas deveriam ter contado aquela história à polícia. As duas disseram que não sabiam se seria adequado, pois poderiam estar comprometendo Shirley; então preferiram contar a mim, que naquele momento, era sua melhor amiga. Notei que elas tinham medo de Shirley, e minhas suspeitas se confirmaram logo em seguida, quando Susi disse de repente, já à porta de casa, de saída:

-Você tem sorte por ela gostar de você. Já vi o que ela faz às pessoas de quem ela não gosta. 

-O que você quer dizer?

Ela hesitou. Drica segurou-a pelo antebraço, dizendo:

-Vamos embora. Precisamos ir. Já ficamos tempo demais aqui. 

Mas Susi se desvencilhou dela, e explicou:

-Shirley pode parecer ser alguém que ela realmente não é. Às vezes parece doce, outras vezes parece amarga feito fel. Se ela gosta de você, fará de tudo para ajudar em tudo o que for preciso, mas se ela não gosta, ou se sente contrariada por alguma coisa que você disse, ela é capaz de derrubá-la no chão. Ela pode colocar as pessoas contra você. 

Eu fiquei ali, parada e confusa, olhando para elas sem saber o que dizer. Drica tinha chamado o elevador, e quando ele chegou, praticamente arrastou a amiga para dentro dele. Fechei a porta, ainda sentindo no ar o peso das palavras de Susi ecoando em meus ouvidos.
Mamãe estava parada à porta da sala, os braços cruzados, recostada à parede; pensei no quanto daquela conversa ela tinha ouvido, e ela perguntou:

-O que elas queriam?

-Você não escutou a conversa?

-Não, eu estava no banho.

Eu poderia ter contado a ela. Eu poderia ter aberto minha boca e colocado Shirley em uma situação muito difícil, mas sem saber porque, inventei uma mentira. Era a primeira vez que eu mentia para minha mãe:

-Vieram apenas agradecer pelo que fizemos pela Diana. Sabe, elas eram muito amigas.

Minha mãe não pareceu muito convencida:

-Hum... então por que essa cara espantada?

Eu tentei rir:

-Mãe, essas meninas quase acabaram comigo no primeiro dia de aula... sinceramente, quando as vi, gelei por dentro. Elas são bem... esquisitas. Metem medo na gente. Vou dormir um pouco.

Dei-lhe um beijo no rosto, e enterrei em meu quarto, desabando de joelhos no tapete. Meu coração começou a bater mais rápido do que o normal. Eu me sentia dona de um segredo muito grande, que eu não sabia se deveria carregar. Estava ansiosa, e não sabia o que fazer. Shirley mentira para mim duas vezes: sobre a noite do desaparecimento de Diana, e também sobre o que fizera após o velório. 
Resolvi tomar um dos comprimidos para dormir de minha mãe – sem que ela soubesse, é claro- e apagar. E foi o que fiz.

No dia seguinte, bem cedo, acordei e custei a me centralizar dentro daquela realidade que eu teria que lidar em apenas algumas horas. Porque decidi que precisava confrontar Shirley e perguntar a ela seus motivos antes de contar tudo à minha mãe e à polícia. Cheguei à janela, e vi um caminhão de mudanças parado junto à portaria do prédio. Havia mobília sendo carregada para dentro. 

Tomei uma ducha, e fui tomar o café da manhã. Mamãe já tinha posto a mesa quando cheguei na cozinha. 

-Bom dia, filha linda. conseguiu dormir bem?

-Bom dia, mãe querida. Sim, dormi. E você?

-Mais ou menos. Mas hoje é domingo, e posso recuperar meu sono à tarde.

Nós nos sentamos e notei que, enquanto comíamos, minha mãe me olhava com o canto dos olhos. Ela era mestra em descobrir os segredos que a gente não queria contar, e parecia ler dentro das pessoas. Geralmente, suas impressões eram acertadas. Eu não queria falar sobre a visita da noite passada, e então saí pela tangente, antes que ela começasse a fazer perguntas:

-Parece que tem alguém se mudando para o prédio.

-É verdade. O casal de idosos do primeiro andar me contou, no elevador, que há um rapaz se mudando para o apartamento vazio do quinto andar. Bem debaixo do nosso. Dizem que é um estudante de Direito.

-Pôxa, eles prestam atenção, hein? 

-Disseram que têm medo que ele transforme o apartamento em um bordel, já que é solteiro.

-Quanto preconceito!

Rimos. Terminamos de comer em silêncio, e perguntei:

-O que vai fazer hoje? 

Ela encolheu os ombros, dizendo que ia ficar em casa, enrolada em cobertores, assistindo a uma pilha de filmes antigos. Perguntou se eu queria ficar com ela, e eu concordei, mas disse que antes precisava sair para falar com Shirley e ver como ela estava. Ela ficou séria, respirou fundo, mas não disse nada. Beijei-a, e enquanto deixava o apartamento, liguei para Shirley. Marcamos um encontro na pracinha. 

Ao chegar na portaria do prédio, deparei com o novo morador. Ele era simplesmente lindo! Um gato! Ele me olhou, sinalizando um olá com a cabeça, e sorrindo discretamente. Passei por ele, e senti os olhos dele fixos às minhas costas enquanto eu passava. Já estava na calçada, quando escutei-o me chamar:

-Hey! Por favor...

Virei-me na direção dele. Ele se aproximou, apresentando-se:

-Sou Noel.

Segurei a mão estendida:

-Sou Jordana. Prazer em conhecer você.

-Prazer, Jordana. Você mora aqui no prédio?

-Sim. Sexto andar. Bem acima do seu apartamento. 

De repente, achei meu comentário desnecessariamente sugestivo, e senti meu rosto corar. Ele pareceu não perceber, e continuou:

-Eu estou aqui para estudar. Na verdade, vou começar a estudar Direito no ano que vem, mas meus pais acharam melhor que eu me mudasse de uma vez e me adaptasse ao apartamento, e à vida sozinho. 

Ele sorriu, talvez constrangido por dizer tanto de si mesmo a uma perfeita estranha. Tentei deixa-lo à vontade:

-Estou terminando o segundo grau também. Semana que vem será minha última semana. Mas ainda vou fazer um ano de vestibular antes de tentar a faculdade.

-E o que você quer estudar?

-Arquitetura. Adoro casas. 

Ficamos ali na calçada, um tanto embaraçados, sem saber o que mais dizer um ao outro, mas sem vontade de nos afastarmos. Olhei nos olhos dele, e meu coração fez um movimento estranho dentro do meu peito. Eu nunca tinha me sentido daquele jeito perto de nenhum garoto, mas os olhos azuis  de Noel me arrebataram. Seu cabelo cheio de cachinhos loiros também. E logo a mim, que nunca gostara de meninos loiros. Mas nele, tudo parecia perfeitamente harmonioso. Tudo nele estava exatamente no lugar certo, como tinha que ser, e seria impossível imaginar que seus cabelos pudessem ser de outra cor – pretos, como eu gostava – ou que seus olhos não tivessem aquele tom de azul cobalto, escuro e absurdamente raro. Uma brisa fria soprou em meu rosto, e pensei que alguma coisa muito boa estava acontecendo a mim, a primeira coisa realmente boa depois de tudo pelo que vinha passando desde a morte de meu pai. 

Mas eu precisava ir. Shirley já deveria estar a minha espera, e ela não gostava de esperar. Eu disse:

-A gente se vê, Noel. 

Ele respondeu, sem tirar os olhos dos meus:

-Com certeza. A gente se vê, sim.

-Se precisar de alguma coisa... eu e minha mãe moramos no sexto andar. Digo, às vezes... você acaba de se mudar, e pode precisar de ... sei lá...

-Uma xícara de açúcar?

Eu ri:

-Quem sabe? Pode ser. Tchau!

Saí quase flutuando pela rua, sentindo meu andar desengonçado e finalmente tropeçando numa parte mais alta da calçada. Não olhei para trás para ver se ele tinha notado. Apertei o passo, e quando cheguei na pracinha, estava quase correndo. Vi Shirley sentada em um dos balanços. Estava muito frio, e ameaçava chover, e por isso, a pracinha estava vazia. 

Shirley se levantou quando me viu. Notei as olheiras profundas sob seus olhos, e o cabelo mal arrumado, preso em um rabo de cavalo. Também notei os jeans velhos, rasgados nos joelhos, e a camiseta preta de mangas compridas sob a jaqueta jeans surrada. Ela sempre procurava andar muito bem arrumada, e aquele visual não combinava com ela. Mas mesmo assim, estava estonteantemente linda. 

Nos abraçamos, e depois nos sentamos nos balanços, lado a lado.  Perguntei:

-Como você está?

-Mais ou menos. Não dormi muito bem, mas acho que vou ficar bem. Eu sempre fico. E você?

-Estou indo...

Fez-se silêncio, e após alguns minutos, ela perguntou:

-Por que me chamou para vir aqui com esse frio? Poderíamos ir até a sua casa...

Me perguntei por que ela jamais me convidara para ir até a casa dela. Mas deixaria aquele assunto para depois. 

-É que eu não queria que minha mãe escutasse a nossa conversa. 

-Vamos a uma lanchonete então. Acho que vai chover.

-Não... Shirley, ninguém pode escutar o que eu vou te contar, e nem o que eu vou te perguntar. 

Ela me olhou de uma maneira preocupada e curiosa:

-Bem, desembucha!

-Por que mentiu para mim?

Ela ficou visivelmente perturbada. Vi quando uma pequena veia em sua têmpora se agitou, e seu rosto corou um pouco. Ela pigarreou:

-Tá bom. Você está falando de ontem à noite, não é? Logo após o velório. Eu disse que ia para casa. Que queria ficar sozinha. Mas não fui. 

-Isso mesmo.

-Como você descobriu?

-As amigas de Diana estiveram lá em casa. Me contaram que você as procurou.

Vi os olhos dela se tornarem frios e raivosos, mas ela se controlou.

-Você contou a elas sobre Diana ser abusada pelo pai. Por que? Por que você as procuraria para contar uma coisa dessas, agora que ela se foi? Por que não tentou ajuda-la antes?

-Sei lá, eu só achei que se elas são... eram... as melhores amigas de Diana, mereciam saber da verdade. E se eu nunca contei nada a ninguém antes, foi porque a própria Diana me pediu. 

Tentei me acalmar. Ela estava mentindo de novo.

-Não foi isso que a Diana me disse na festa de aniversário do Adílio! Ela me contou que foi você que não queria que ninguém soubesse o que acontecia com ela, porque se alguém ficasse sabendo, saberiam logo de que a mesma coisa também acontecia com você. Ela também me disse que você não queria que ninguém soubesse na escola que vocês eram irmãs. Por que fez isso, Shirley?

Ela se levantou do balanço, e passou a medir o chão de um lado ao outro na minha frente, dando passos largos. Seu rosto era uma incógnita, algo entre medo, ódio, vergonha, raiva, decepção, ressentimento. Por um momento, tive medo de que acontecesse uma explosão, que ela iria começar a gritar ou me agredir em plena praça. Por detrás dela, no céu cinzento e pesado, um raio cortou as nuvens ao meio. 

De repente, ela começou a chorar. Parecia tão indefesa e frágil, que eu me levantei e a abracei, tentando acalmá-la. Ela se deixo ser reconfortada, deitando a cabeça em meu ombro. Shirley era mais alta que eu, e tive dificuldades de suportar seu peso. Quando se acalmou, ela me olhou:

-Você não entende...

-É claro que não, Shirley. Mas gostaria de entender. Somos amigas, não?

-Somos sim. Vou te contar tudo. Tudo mesmo. 



(continua...)




quarta-feira, 10 de maio de 2017

A MÃO E O LAÇO – CAPÍTULO VI







Diana foi encontrada morta, à beira da represa da cidade. A polícia pensou em suicídio, mas após encontrarem indícios de uma pancada na cabeça, a hipótese foi descartada. Pedro, o pai, era suspeito. 

Fiquei sem saber como contar à Shirley. Sabia que precisava fazê-lo antes que alguém mais soubesse e contasse a ela de qualquer maneira.

Era sábado. Abri a janela e pensei no quanto a vida era uma história enfadonha e absurda. Lá em baixo, na nossa rua pouco movimentada, os velhinhos chegavam para sua partida de bingo no primeiro andar. O carro da proprietária do apartamento do quarto andar estava parado junto ao meio-fio. A rua dos Ipês continuava encantadora, com suas árvores altas e magníficas, o vento assoviando entre as folhas. E havia uma menina morta, deitada sobre o alumínio frio de uma sala de necrotério, esperando que a mãe a fosse reconhecer. Seus cabelos estariam molhados e penteados para trás. Seus olhos poderiam estar abertos, fitando o teto. Talvez as mãos estivessem ao longo do corpo. Roxas. Ela estava morta. 

E o mundo não sabia. As pessoas continuavam vivendo suas vidas, até que a vez delas chegasse. Haveria festas, música, casamentos, viagens, passeios. As férias começariam. As pessoas que conheceram Diana a esqueceriam. Ela seria enterrada, e não sobraria nada do corpo dela, do seu belo rosto, da sua história. Ela viraria pó. Teria sido amada por alguém? Será que sua mãe a amara, pelo menos? 

Quando Shirley chegou, encontrou-nos com os olhos vermelhos. Ela entrou, e sentando-se à mesa do café, perguntou, pegando um pãozinho e espalhando geleia sobre ele:

-O que aconteceu? Vocês andaram chorando?

Fui cuidadosa:

-Shirley... a gente precisa de contar uma coisa. 

Ela parou de comer. Sentei-me perto dela, e minha mãe sentou-se do outro lado da mesa. Eu disse:

-Encontraram Diana. Ela está morta. Foi assassinada. 

Shirley arregalou os olhos, e as lágrimas brotaram, caindo em fileiras salgadas. Ela parecia muito emocionada. Talvez, pensei, ela tivesse achado que teria mais algum tempo com a irmã, agora que as coisas estavam mudando. Mas era tarde. 

Abracei-a, e ela perguntou:

-Mas... como, assassinada?
-A polícia suspeita de Pedro... seu pai, amiga. 

Ela tapou a boca com a mão. Minha mãe estendeu-lhe uma xícara de café. Notei que mamãe permanecera calada durante todo o tempo, olhando muito para Shirley. Conhecendo minha mãe muito bem e sabendo que ela não gostava de Shirley, achei injusto o olhar de  desconfiança dela, principalmente naquela hora tão difícil.

Shirley pegou a xícara, e tomou um gole do café. Estranhamente, vimos quando ela pegou o pãozinho e continuou a comer. 

A escola compareceu em peso ao velório. As amigas de Diana choravam muito. 
Fizeram uma homenagem para ela, cantando uma de suas músicas preferidas. Doralice também chorava muito. Após o enterro, mamãe levou-a de volta à clínica, dizendo que continuaria a pagar pelo tratamento mesmo assim. Ela jurou à polícia não saber do paradeiro do marido.

Shirley chorou também. Ela segurava a minha mão. As mãos dela estavam muito frias. Ela quase desmaiou na hora da despedida final. Achei que ela estava realmente abalada. Talvez a maneira que ela tinha de sentir as coisas fosse daquela forma estranha mesmo, entre o riso e o choro, entre o comentário animado sobre a novela e o comentário triste, ao lembrar da irmã. 
Após o velório, eu estava descansando em meu quarto quando a campainha tocou. Shirley tinha ido para casa, dispensando a mim, Adílio e Laura, dizendo que preferia ficar sozinha.  Escutei mamãe abrir a porta, e vozes abafadas. Logo, mamãe estava à porta do meu quarto:

-Filha, há algumas meninas à porta querendo falar com você, quer que eu as mande embora?

-Quem são, mãe?

-Ninguém que eu conheça. Dizem que são da escola. 

Respirei fundo, e após alguns minutos me recompondo, fui atender. Fiquei surpresa ao reconhecer duas amigas de Diana, as esquisitas que haviam rido de mim e me perturbado em meu primeiro dia de aula. Fiquei parada, olhando para elas. Uma delas usava roupas totalmente pretas – não que estivesse de luto, pois na escola, ela sempre se vestia assim – e tinha um horrível piercing no nariz. A outra, de cabelos curtos e espetados, tinha um traço borrado de delineador preto em volta dos olhos. Usava uma minissaia muito curta e meias raladas. Tentei manter a voz firme:

-Pois não?

A de meias raladas falou primeiro:

-Oi, somos Drica e Susi, amigas de Diana.

-Eu sei. O que desejam?

Elas se entreolharam. Fiz sinal para que se sentassem, e ocupei a poltrona diante delas. 

-Soubemos que você e sua mãe estavam tentando ajudar Diana. 

Concordei com a cabeça, e respondi friamente:

-Pois é. Nós estávamos tentando. Coisa que vocês, que se dizem as melhores amigas dela, nunca fizeram. Mas o que vocês disseram que queriam mesmo?

Drica, a menina de preto, balbuciou:

-A gente não sabia. A Diana não falava muito de si mesma. Parecia ser tão forte e decidida...

-O que? Quer dizer que vocês não sabiam de nada? E... como ficaram sabendo? Quero dizer, a gente não contou a ninguém.

Susi respondeu:

-Shirley. Ela nos contou tudo após o velório. 

Achei aquele comentário um tanto estranho, já que Shirley tinha dito que voltaria para casa porque queria ficar sozinha. Mas preferi não comentar. Ao invés disso, perguntei:

-O que ela disse a vocês?

-Contou tudo... que Diana era abusada pelo pai. Que a mãe era drogada – disso a gente já sabia, pois de vez em quando Diana levava umas coisinhas pra gente usar depois da aula, e dizia que eram da mãe. Mas a gente não fazia ideia de que o pai abusava dela. Shirley disse que Diana tinha muita vergonha, e não contava a ninguém, e que tinha proibido que ela contasse à polícia ou a qualquer pessoa. 

Fiquei pasma, pois Shirley contara a elas apenas uma parte da história, omitindo a parte que falava dos abusos sofridos por ela mesma na infância. Mesmo assim, fiquei calada. Susi continuou:

-Viemos agradecer. E pedir desculpas pelo tratamento que demos a você no primeiro dia de aula. Você... é legal. Sua mãe também. São boas pessoas. 

Olhei para ela, balançando a cabeça. Fez-se um silêncio embaraçante, e pensei que tudo já tinha sido dito e a conversa tinha terminado, mas  Drica disse:

-A gente... bem... queríamos contar uma coisa. 

Senti que meus dedos se agarraram ao braço da poltrona com força. Por algum motivo, eu não tinha certeza se queria ouvir o que elas queriam me contar. 

(continua...)





terça-feira, 2 de maio de 2017

A MÃO E O LAÇO – CAPÍTULO V






No dia seguinte, fomos à casa de Diana. Shirley achou melhor não ir, pois não queria encontrar o pai, a quem não via há anos. Doralice, a mãe, mandou-nos entrar. Parecia constrangida, mas ao mesmo tempo, notei nos olhos dela o mesmo olhar desafiador que eu via nos olhos da filha. Ela aparentava ter quase cinquenta anos; era muito magra. Os cabelos eram de um castanho esbranquiçado e sem vida, muito escorridos, caído sobre ombros ossudos. Doralice também tinha olheiras profundas e os dentes amarelados devido ao fumo. Mesmo assim, dava para identificar traços da mesma beleza que eu via em Diana, se Doralice tivesse se cuidado melhor.

Ela fez sinal para que entrássemos; a casa era humilde, mas não foi isso que me chamou a atenção, e sim o descaso, o descuido, a negligência que imperavam ao redor. O assoalho sujo parecia ter sido varrido há muito tempo. Ao lado do sofá havia uma pilha de jornais, sendo que eram amarelecidos no fundo da pilha e mais novos por cima dela. O lugar cheirava a fumaça de cigarro e gordura. Engoli em seco quando ela nos perguntou se queríamos um café, e quase em uníssono, mamãe e eu agradecemos e recusamos.

Nós nos sentamos no sofá. Havia o som de um rádio fora da estação vindo da cozinha. Doralice explicou que Diana não estava. Não passara a noite em casa, e quando mamãe demonstrou preocupação, ela riu:

-Ela sempre faz isso. Raramente dorme em casa. 

-E... para onde ela vai?

Ela encolheu os ombros, dando uma longa tragada, enquanto sentava-se na cadeira à nossa frente, esticando-se para pegar um cinzeiro cheio que estava sobre a mesinha de centro empoeirada. 

-Fica na casa das amigas da escola... pelo menos, é o que ela diz.

Mamãe foi categórica:

-E você nunca se preocupou em verificar? 

Dei-lhe uma cotovelada, mas foi tarde demais. A mulher nos olhou com raiva:

-O que as madames pensam da vida? Acham que tenho tempo para ficar correndo atrás dela? Tenho a casa para cuidar. E ainda preciso terminar as encomendas...

Mamãe desculpou-se, perguntando:

-Você trabalha? Em que?

Ela demorou um pouquinho antes de responder:

-Eu sou costureira. Faço consertos para uma loja de consertos de roupas que fica na cidade. Eles me enviam serviço de vez em quando. Não dá para ganhar muito, mas paga as contas.

Pensei: “Paga as bebidas, o cigarro e sabe-se lá o que mais...” tive a impressão que minha mãe pensou o mesmo, mas nada dissemos. Mamãe disse:

-Bem... nós estamos aqui porque queremos ajudar Diana. A senhora sabe... sobre aquele assunto que falamos ao telefone...

Ela concordou com a cabeça. Apagou o cigarro, esmagando-o no cinzeiro, que colocou no chão ao lado da poltrona, mas não respondeu. Parecia muito desconfortável. Achei que pela primeira vez, ela estava enfrentando a verdade do que vinha acontecendo com sua filha, e não estava sendo fácil. Ela coçou a cabeça, e notei que seus olhos estavam marejados, mas Doralice cerrou os lábios e não chorou. Mamãe continuou:

-Eu quero ajudar você também, Doralice. Sei que é dependente de drogas, e ontem você concordou em ir para uma clínica de reabilitação. Mas você precisa se livrar do seu marido. Não pode permitir que ele continue fazendo o que vem fazendo com a sua filha! Isso é um absurdo!

Ela secou uma lágrima, e olhando mamãe nos olhos, perguntou:

-Você me surpreende... nunca ninguém ligou muito para mim, a não ser... a não ser o Pedro, meu marido. Ele me tirou da vida, das ruas. Me deu esta casa. Ele compra  a comida. Mal ou bem, ele cuida de Diana. Paga a escola, as roupas... ou seja, pagava. Desde que ficou sem emprego, a escola está vencida. Disseram que ela não vai poder renovar a matrícula no próximo ano. Ele não é tão ruim quanto dizem... mas o que me surpreende, é: por que você está fazendo isso?

Minha mãe se levantou do sofá, caminhando até a janela e ficando de costas para nós durante um tempo. Achei que ela estava chorando, mas quando ela se virou e começou a falar, sua voz era firme:

-Porque eu acho que as pessoas merecem uma segunda chance. Porque eu acho que toda vida deve ser valorizada, toda pessoa merece ter ajuda. Meu marido matou-se porque tinha vergonha de ter falhado. Matou-se por causa da falência da empresa. O que é uma empresa, diante de uma vida? Talvez se minha mãe não tivesse sido tão dura com ele... talvez se as outra pessoas não tivessem sido tão duras com vocês... quem sabe, a vida de Diana pode ser uma boa vida? E a sua também? Você me perguntou por que, e eu respondo:  Por que não?

Doralice respondeu:

-Não se preocupe com Pedro. Ele sumiu. Foi embora levando suas coisas. Acho que não volta mais. Eu... nós estamos sós. Eu fui abandonada.

-Não, não estão. Você não foi abandonada, Doralice. Foi um livramento.

Depois daquela visita e daquela conversa estranhas, Doralice foi com mamãe até a clínica e se internou. Eu fui para casa.

Telefonei para Shirley, já que não tinha ido à escola naquele dia, a fim de contar a ela o que tinha acontecido. Aproveitei para perguntar se ela sabia de Diana. Ela disse que não. 

No dia seguinte, na escola, Diana não apareceu para a aula. Procuramos por ela entre as amigas, mas ninguém sabia dizer onde ela estava ou onde ela poderia ter ido. Um medo começou a surgir: e se ela tivesse sido levada pelo pai? E se ela estivesse sendo mantida em algum lugar, à força? Shirley confirmou minhas suspeitas, dizendo que Pedro era bem capaz daquilo. 

No final da tarde, mamãe comunicou o desaparecimento de Pedro e Diana à polícia, e as buscas começaram. Enquanto isso, em casa, ela fez o cheque das mensalidades atrasadas de Diana na escola, dizendo que pagaria por elas no dia seguinte. Também conversou muito com Shirley. Ela chorou algumas vezes, ao lembrar-se de algumas coisas; mas havia algo estranho, e eu não conseguia decidir o que era. Ela parecia que não estava realmente sentindo o que tentava demonstrar, e às vezes deixava transparecer que na verdade, não se importava com o que quer que tivesse acontecido à irmã. Tive a impressão de que a preocupação dela era dissimulada, mas me neguei a acreditar que aquilo fosse verdade. 

Quando ela foi embora, minha mãe ficou em silêncio, sentada no sofá, pensativa. Sentei-me ao lado dela. Tinha sido um dia muito longo e difícil. Ela me olhou, dizendo:

-Ainda não gosto muito da sua amiga. Ela parece... estranha.

Tentei defender Shirley:

-Não... é que ela está passando por poucas e boas agora. Aliás, a vida toda. Ela é boa gente, mãe.

Ela continuou me olhando, e depois sorriu, mudando de assunto:

-Vou tomar um banho de banheira bem longo. Depois, vou para o quarto assistir a um filme para relaxar. Quer vir também?

-Mais tarde, mãe. Vou tomar uma ducha. 

Meu telefone tocou assim que liguei o chuveiro, e era Laura. Atendi, embora estivesse tão cansada, que preferiria não falar com mais ninguém. Não queria que ela pensasse que eu estava chateada com ela por causa de Adílio. Ela ligou para me contar que os dois estavam juntos, e eu fiquei sinceramente feliz. Finalmente, eles acertaram os ponteiros, e as coisas entre eles ficaram como deveriam ser. Senti alívio ao saber que poderia ficar amiga dele sem a preocupação de tê-lo no meu calcanhar, querendo ficar comigo. E sem ter medo de machucar Laura. 
Depois da ducha, juntei-me à mamãe no quarto dela, e ambas assistimos a um filme. Acabei caindo no sono por lá mesmo. 

Acordamos na manhã seguinte com o telefone tocando. Era da polícia. Tinham encontrado Diana. 



(continua...)






A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...