quinta-feira, 11 de agosto de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - parte 12 FINAL


 



PARTE 12


Joana – a essa altura não consigo mais chamá-la de minha avó – está à porta quando a abro. Ela parece constrangida, carregando uma bandeja com café e croissants como se fosse a empregada da casa. Saio do caminho, e ela deposita a bandeja sobre a cama, mas eu não estou com fome, e me sento à penteadeira, fingindo observar alguma coisa invisível na minha pele. Tenho consciência dos meus pijamas surrados, humilhados diante da roupa impecável que ela está usando às quase dez horas da manhã: blusa de seda rosa- pálida e saias plissadas cor de creme, que caem sem nenhuma protuberância sobre suas pernas, a barra da saia criando uma roda esvoaçante em volta dela quando ela se mexe. Ela diz:

- Quero que você saiba que para mim não mudou nada. Você continua sendo minha neta. E quero manter esse laço com você, agora que nada mais nos impede.

Eu respiro fundo, me virando para ela:

- Para mim mudou tudo, Joana. Descobri que minha mãe nunca foi minha mãe, e que todo mundo mentiu para mim desde a primeira vez que colocaram os olhos sobre a minha cara. E quem poderia ter desfeito essa mentira, apenas a sustentou. Imagine só descobrir que você não é você!

-Não é assim, Valentina. É certo que algumas verdades importantes foram escondidas, e eu jamais compactuei com isso. Paguei o preço por querer dizer a verdade, e o preço foi não poder estar mais próxima a você. Porém, sua mãe... ela fez o que pensou ser melhor para você. E seu pai... bem, não creio que ele tinha realmente muita consciência do que fazia. Sempre foi um egoísta... 

Ela percebe que está indo longe demais:

-Me desculpe, eu não queria falar mal dele.

-Pode falar, já não faz mais diferença nenhuma para mim.

Eu estou quebrada, magoada e  me sentindo um peixe fora d’água dentro da minha própria vida. Meu futuro é uma incógnita. Digo isso em voz alta.

-Meu futuro é uma incógnita, e não vejo nenhuma possibilidade de...

Não consigo completar a frase, pois um nó se forma na minha garganta. E ele dói com força. Ela então me diz algo que me faz despertar de uma forma que eu nunca tinha despertado antes.

-Valentina, não saber o que fazer do futuro tem um lado bom: você pode fazer qualquer coisa, você tem toda a sua vida para escolher o que fazer. Você tem todas – absolutamente todas – as possibilidades diante e você, e se você deixar, eu vou estar por perto para garantir que você possa fazer o que quiser. Terá todo o meu suporte financeiro, apoio emocional, amizade e... amor.

Uma luz se acende em mim. Ela tem toda razão, e percebo que tenho duas escolhas diante de mim: viver sendo amarga o resto da vida, presa ao passado e ao que as pessoas me fizeram, ou então me abrir para a vida, aceitando o apoio e o amor que ela me oferecia. Olho para aquela mulher bela e estranha que tem os olhos marejados e de repente sinto uma fome enorme, e me sento diante da bandeja do café da manhã de pernas cruzadas:

-Em primeiro lugar, vou começar comendo tudo isso aqui. Depois, se você puder, gostaria de conhecer Paris.

Ela sorri, e concordando com a  cabeça, me deixa sozinha.

E nós duas passamos o dia todo juntas, após nos despedirmos de meu avô, que fica muito feliz ao nos ver tão unidas. Ele parece melhor naquela manhã, e passamos algum tempo juntos, conversando e rindo. Descubro que meu avô é uma pessoa doce, acessível e também bondoso. Nada do que meu pai costumava dizer que ele era. Eu sei que o tempo de vida dele está terminando, e me sinto com sorte por conhecê-lo antes disso.

Eu e minha avó entramos em todas as lojinhas e butiques da Monstparnasse, e nos sentamos para almoçar na mesinha de um restaurante que fica na calçada. O motorista coloca as nossas compras no carro. Minha avó me diz que meus primos estão vindo para me conhecer. Logo estaremos todos juntos.

No final da tarde, ao chegar em casa cansada e feliz, verdadeiramente feliz pela primeira vez na vida, resolvo checar as mensagens do meu celular, que andou tocando o dia todo.  

Há duas mensagens de meus tios, as quais decido ignorar. Visualizo e não respondo, pois quero que eles saibam o quanto estou furiosa com eles. Percebo que, na verdade, eu sequer gosto muito deles. Sempre tive aquela tolerância velada em relação à minha tia, e uma certa indiferença beirando à antipatia em relação ao meu tio. E também sentia a mesma coisa vindo deles, talvez uma certa obrigação de tomar conta de mim. Existem pessoas nas nossas vidas que, apesar de as amarmos, não gostamos delas. 

E há uma mensagem gravada  de Jonathan.

“Oi, Valentina, espero que esteja tudo bem por aí. Então... a Pri infelizmente teve um aborto espontâneo, mas ela está bem. No fundo, achou que foi melhor assim, e eu... também... Desculpa estar te contando isso assim, mas... achei que você deveria saber. A gente vai sair do apartamento assim que conseguirmos um outro lugar. (aqui há uma longa pausa). Eu queria que você soubesse que eu sinto sua falta. Não amo mais a Pri. E nem quero ficar com ela. Nós dois concordamos nisso, o lance entre a gente acabou. E eu queria muito recomeçar a nossa história. (outra pausa). Ela está te mandando lembranças e agradecendo por tudo. Mas sabemos que não tem nada a ver ficarmos morando aqui. Bem, a gente ainda vai morar junto, mas só para dividir as despesas. Eu estou com saudades da gente, Valentina. Por favor, responda essa mensagem.”

Escuto a mensagem mais algumas vezes. Também sinto saudades de Jonathan, mas percebo de repente que alguma coisa importante que estava para nascer entre nós também foi abortada pela notícia da gravidez de Pri, e agora tinha sido enterrada. Ainda gosto dele, mas não da forma que eu pensava que poderia vir a gostar. Me sinto indecisa. Fico pensando se deveria voltar ao Brasil e nos dar uma nova chance. Mas acho que não. Como disse Joana – minha avó – eu tinha muita vida pela frente, e os caminhos todos abertos para tomar as decisões que eu quisesse, na hora que eu quisesse. Sem pressa, sem mentiras, sem pressões.

Meus primos chegam hoje à noite. Vou conhecer os filhos de minha prima. Vou saber, pela primeira vez, o que é ter uma família de verdade. Sem mentiras, sem subterfúgios. Acho que eu mereço essa chance de ser feliz e de mudar a minha vida.



FIM










segunda-feira, 1 de agosto de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 11


 PARTE 11


Estou diante da cama onde meu avô descansa. Ele se ajeita ao me ver, estendendo os braços para mim. Caminho hesitante na direção dele, e me sento na cama, deixando que ele segure as minhas mãos. Vejo bondade no seu rosto macilento e consumido pela doença. Olho os vidros de remédios na mesa de cabeceira, e a enfermeira que deixa o quarto discretamente a um sinal de Joanna. As duas cochicham no corredor, e quando minha avó entra no quarto, ela parece ter envelhecido alguns anos. 

Ele não fala nada sobre o meu passado, só me trata e me recebe como sua neta verdadeira. Não fala nada sobre meus pais, não me pergunta sobre nada, a não ser sobre o futuro, se eu preciso de alguma coisa, se eu sou feliz, se eu já decidi o que vou estudar, se eu vou continuar em Paris, morando com eles, ou se eu gostaria de ter meu próprio  apartamento. Tantas perguntas me deixam zonza, e prefiro tentar sorrir e me esgueirar delas. Dez minutos após a minha chegada, a enfermeira entra no quarto, administra mais medicamentos e ele adormece. Este é o contato face a face que tenho com aquele que pensei ser o  meu avô, após muitos anos. 

Na sala de estar, Joanna me deixa sozinha alguns momentos. Eu estou sentada em um sofá confortável, estilo bem antigo. O apartamento nem é tão grande quanto eu imaginava, mas é elegante e muito aconchegante. Há muitos objetos que parecem ser valiosos espalhados sobre os móveis. No centro de uma mesa de jacarandá, um vaso em estilo indiano que parece ser antigo muito caro. As sanefas sobre a s janelas são de  brocado e as cortinas têm tecidos esvoaçantes cor de creme. Há flores, flores naturais espalhadas pelo cômodo. De vez em quando, a enfermeira passa atrás de mim sem fazer barulho, a não ser pelas solas emborrachadas dos seus sapatos rangendo de leve. Existem três sacadas que dão para a rua na sala. Fico curiosa para ver a vista, mas não consigo me mover, de tão pouco à vontade que eu me sinto. Estou com fome. Uma senhora começa a por a mesa para o almoço. Mesa para dois. A enfermeira passa atrás de mim novamente e eu me viro para vê-la carregando um carrinho com um prato de sopa e um pouco de água em um copo alto. 

Joanna entra na sala, e murmura algo em francês. Depois me convida para ir até a mesa e me sentar, enquanto a criada nos serve fatias de pão, água, uma salada verde e vinho. Fico pensando se aquele seria o almoço. Comemos em silêncio, e assim que terminamos, nossos pratos são retirados e substituídos por outros, onde há um pequeno pedaço de carne assada perfumada, arroz e batatas cozidas. Eles comem muito pouco por aqui. Minha enorme fome, antes da doença de meu pai,  estava acostumada a pratos imensos de massas. Faço um esforço para não devorar tudo com apenas duas garfadas. Finalmente, somos servidas de frutas cortadas, queijo e um pudim que mais parece um mini pudim de casa de boneca. Meu estômago ronca alto, esperando pelo prato principal quando já estamos na sobremesa. Entendo o porquê de eles serem tão magros, mas me lembro que eu também sou. Também me lembro que no meu caso, a magreza não é hereditária, que desde a morte de meu pai, eu tinha perdido vários quilos. Joanna me observa, e sinto carinho no seu olhar. Ela às vezes me sorri, e falamos um pouco sobre a comida.

- Gostou da refeição? Está satisfeita?

Minto. Ainda poderia comer aquilo mais três vezes. Não comia nada desde que entrara no avião, na noite anterior, e já passavam de duas da tarde. Mesmo assim, eu sorrio e respondo:

-Sim. Obrigada.

Joanna sugere que eu vá para o “meu quarto” descansar um pouco após o almoço. Sinto que ela quer um pouco de privacidade, então me deixo conduzir até um pequeno e agradável  quarto, todo pitado de azul claro, onde as roupas de cama e as cortinas são cor de creme. Ao lado da cama, sobre o chão de madeira fosca, um criado mudo antigo onde descansa um pequeno abajur também antigo de cúpula de vidro. Sobre a colcha creme, algumas almofadas em tons pastel. Ao lado da cama, vejo a minha mala. Bem na frente do estreito corredor que divide a cama e a penteadeira, por cima desta, um espelho no qual me assusto com minhas olheiras cinzentas. De repente, todo o cansaço do mundo se abate sobre meus ombros, e eu sinto um enorme sono. Há um pequeno banheiro no quarto, com uma ducha. Tomo uma chuveirada quente e rápida antes de me deitar sob as cobertas e apagar completamente.

Não se foi devido ao efeito dos comprimidos que engoli para segurar a ansiedade (tomei mais um antes de deitar), só volto a despertar na manhã seguinte, com batidas à minha porta. 


(continua...)



Em breve, a parte 12. Estou sem tempo...














A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...