sexta-feira, 22 de maio de 2020

AS CASAS VELHAS E AS VIDAS ABANDONADAS - Parte 3




Ao ler a última carta de Leonardo, Bob percebeu que o dia já ia longe. O céu tingira-se de vermelho, e ele ainda não tinha sequer começado a fotografar a velha casa. Ainda tomado pela forte emoção do que acabara de vivenciar, ele dobrou as cartas, colocando-as de volta na caixa, mas ao fazê-lo, percebeu que a mesma tinha um fundo falso. Devagar, com a ponta da faca, ele ergueu o fundo e encontrou um saquinho de veludo azul. Ao abri-lo, deparou com as pedras preciosas mencionadas na carta!

Boquiaberto, Bob entornou o conteúdo do saquinho no chão da escada, e elas brilharam. Deveriam valer uma fortuna! Eram diamantes, esmeraldas e pequenos rubis. Sem saber porque, Bob se viu tomado de grande emoção. Recolheu as pedras, colocou dentro da caixa e levou tudo para dentro. Comeu o sanduíche que sobrou, bebeu o restante do refrigerante e preparou-se para dormir. 

 O casarão estava escuro e silencioso. Ruídos leves da noite entravam pelas vidraças quebradas: pássaros noturnos, zumbidos de insetos, grilos. Mas minutos depois de cair no sono, Bob despertou com o toque sutil de uma mão em seu ombro. Abriu os olhos, e deparou com a sombra de um rosto que o fitava, alguém ajoelhado no chão ao lado dele. Pensou que estivesse sonhando e esfregou os olhos, mas ao abri-los novamente, a pessoa ainda estava lá; era uma mulher. Bob Sentou-se, assustado, mas a voz dela, doce e tranquila, o acalmou:

-Não tenha medo! Não consegue me reconhecer?

Ela estalou o dedo, e a sala se iluminou como em um toque de mágica. Mas ao invés de detritos e ruínas, Bob encontrou uma sala muito bonita, bem conservada  e arrumada. Pensou que estava sonhando novamente. Mas era tudo tão real! Olhou para a mulher e reconheceu nela a mesma jovem das fotografias que estavam dentro das caixas. Ao mesmo tempo, percebeu que as roupas que ambos vestiam eram de uma outra época. Bob se levantou do tapete, ficando de pé, e ao olhar para o lado, deparou com um rosto no espelho que não era o seu, mas... ele levou as mãos ao próprio rosto, e seu ato foi refletido pelo espelho. Bob era Leonardo! Eram a mesma pessoa! A moça na sua frente era Bernadete!

Ele disse, confuso:

-Não entendo... estou morto? Estou sonhando? O que aconteceu?

Ela sorriu:

-Não, não está morto nem sonhando. Isso é real!

Dizendo aquilo, ela pegou o saquinho de jóias e colocou nas mãos dele, fechando-as sob as suas:

-Quero que fique com isso! Elas são o preço que pagaram pelo meu coração, pela minha vida. Não achei justo que ficassem com um homem que me vendeu  a alguém que eu nunca amei. Se alguém merece ficar com isso, esse alguém é você.

Bob - ou Leonardo - sentiu o calor das mãos dela sobre as dele, e todo o amor que os unia voltou com força total. Eles se abraçaram com força, e mataram a fome e a sede de uma paixão que estava adormecida há quase um século. Mais tarde, quando estavam juntos na grande cama de abóboda do quarto, Ele perguntou:

-Eu... estou tão feliz de encontrar de novo, Bernadete! Mas... por que não fez isso quando ainda estávamos juntos e vivos? Por que esperou tanto tempo? Nós poderíamos ter pego essas pedras e fugido juntos, poderíamos ter vivido o nosso amor!

-Eles nos encontrariam! Eles fariam de tudo para nos separar, e eles conseguiriam, pois eram poderosos! Logo, seguiriam nossos rastros e nos separariam. Eu preferi esperar, Leonardo! Esperar a hora certa, até que pudéssemos estar juntos novamente sem qualquer interferência!

-Mas... que lugar é esse?

-Aqui é um universo paralelo. As pessoas podem vir para cá e recriarem suas vidas e sonhos após morrerem. Isso é, se elas quiserem.

Ele a tomou em seus braços, com medo de que de repente ele acordasse e ambos se separassem outra vez. Ela murmurou:

-Você quer ficar aqui comigo, Leonardo?

Nenhuma dúvida o confundia quando respondeu:

-Sim! Para sempre! Nunca mais eu quero deixar você!

Ela ergueu a cabeça, deitando-se de bruços e acariciando os cabelos dele de leve:

-Mas isso não poderá acontecer agora. Você precisa voltar antes. Viver toda a sua vida. Só então poderemos nos reencontrar e ficar juntos para sempre! Poderemos também, mais tarde, renascer juntos!

A ideia de deixá-la e viver o resto da sua vida sem ela deixou Bob muito triste. 

-Mas... se eu estou aqui agora, por que preciso voltar? Por que precisamos nos separar de novo, Bernadete?

-Porque existem as leis do tempo. Elas não podem ser burladas. Escute... quero que você volte e converta essas pedras em dinheiro. Quero que restaure a casa. Procure nos cartórios e verá que é um herdeiro natural dela. Mas ela foi abandonada há muitos anos pela sua família, depois que Leonardo... digo, que você se suicidou ao saber da minha morte. 

Conforme ela falava, cenas dos acontecimentos de uma outra vida vinham à memória de Bob. Ele lembrou-se da arma com a qual atirou na própria cabeça ao receber a notícia de que Bernadete e o filho ao qual ela dava à luz morreram durante o parto. Depois, houve um período de escuridão... e ele renasceu. Sempre fora alguém solitário. Perdera os pais muito cedo, não tinha irmãos, nem amigos íntimos. Seu único passatempo era seu canal, onde publicava vídeos sobre casas abandonadas. Agora ele descobrira o motivo de sua fascinação por elas! Era sempre alguém melancólico, com a sensação de um vazio que nada nem ninguém podia preencher. E agora ele sabia o motivo.

O destino fez com que ele fosse levado de volta àquela casa, a fim de reviver seu amor. 

Bob (ou Leonardo) e Bernadete fizeram suas juras finais, e quando o dia finalmente nasceu, Bob despertou sozinho no chão da casa em ruínas. Mas desta vez, ele tinha um motivo para viver, uma inspiração. Fotografou a casa e colocou-a no seu canal, contando toda a experiência que vivera nela. O vídeo teve mais de cinco milhões de acessos em poucas semanas!

Ele usou o dinheiro das pedras para restaurar a casa, exatamente como Bernadete sugerira. Passou a viver nela e a cobrar por visitações. As cartas foram colocadas à vista sob vidros, em um cômodo que ele reformou para tornar-se um museu.  As pessoas de corações partidos, os que tinham perdido seus amores para a morte, iam ali para encontrar um pouco de esperança.

Ele morreu aos 86 anos, sozinho na casa. 

Ninguém sabe se ele reencontrou Bernadete. Mas eu acho que sim.


FIM



terça-feira, 12 de maio de 2020

AS CASAS VELHAS E AS VIDAS ABANDONADAS - CAPÍTULO 2





Bob teve um sonho estranho naquela noite: sonhou que era uma criança, um menino que usava roupas antigas e corria alegremente pela casa. Viu pessoas que pareciam muito familiares a ele no sonho, mas que não conhecia na vida real. Todas elas usavam roupas do começo do século passado. Havia uma mulher loira de cabelos cacheados presos em um coque mal-feito, muito jovem e bonita, a quem ele chamava de mãe. Ele podia sentir seu espírito livre e alegre, pela maneira como ela andava pela casa arranjando vasos de flores, seu riso fácil e pouco condizente com os costumes da época, a mania de andar descalça pelos cômodos da casa e até pelo jardim. Ela conseguia arrancar sorrisos de seu pai carrancudo, embora ele sempre tentasse resistir, mas logo se rendia a ela e aos seus encantos. 

 Já seu pai era um homem sisudo que aparentava ser bem mais velho que a delicada jovem que acolhia o filho de braços abertos enquanto brincava com ele descalça, no lindo jardim gramado. 

Sentado em uma cadeira de balanço na varanda da casa, seu pai os observava por cima do jornal que fingia ler. A moça acenava para ele, chamando-o para que se juntasse a eles no gramado, mas ele apenas sacudia o jornal e continuava a ler, fingindo impaciência. Mas no fundo, Bob sabia que ele era um homem bom, e sentia-se amado por ele. 

Havia também uma menina de uma casa vizinha que vinha brincar com ele. Eram da mesma idade - cerca de onze anos - e ela era esguia, de longos cabelos negros e olhos coloridos, como dois pedaços de vidro azul-cobalto brilhantes. Bob sabia que ela se chamava Bernadete. Os dois corriam pelo jardim, rindo e brincando de pique-esconde. Em um determinado momento, deram a volta por trás da casa e Bernadete ajoelhou-se no chão, junto à porta que dava para o porão, e cavando com um pedaço de madeira, desenterrou uma pequena caixa. Bob olhou para a caixa que ela abrira, e visualizou coisas como pedras coloridas e brilhantes  que estavam guardadas em um saco de veludo azul-marinho, papéis de carta dobrados em envelopes amassados e algumas fotografias. Ela olhou para ele e fez sinal de silêncio, enterrando novamente a caixa.

Quando Bob despertou, sentiu um peso no coração ao abrir os olhos na casa vazia e suja. Podia sentir que toda a vida que ali existira há muito estava ausente, e que as pessoas que moraram na casa a tinham deixado contra a vontade. Como ele sabia daquilo? Bob não tinha  menor ideia!

Ele se levantou, guardando o saco de dormir e foi para a cozinha preparar um café com alguns utensílios que encontrou por lá. O bule e a chaleira estavam fechados em um armário. Ele usou a água que trouxera com ele para lavá-los e preparar o café em um fogareiro que montou sobre a pia após limpá-la um pouco. Mas enquanto tomava o café, Bob começou a lembrar-se de elementos do sonho, e também da caixa que Bernadete enterrara junto à entrada de um porão que ele nem sabia se existia.

Ainda mastigando os últimos pedaços de pão, ele foi até a parte de trás da casa e encontrou um ambiente exatamente igual ao do sonho, embora coberto pelo mato. Não precisou muito para que identificasse o local onde Bernadete havia enterrado  a caixa em seu sonho! Ele afastou o mato com o facão, e jogando-se no chão de joelhos, começou a cavar o chão com a ponta da lâmina do facão. Não demorou muito para esbarrar em algo duro. Com o coração aos pulos, Bob terminou de desenterrar a caixa de madeira com as próprias mãos.

Era uma caixa pequena, e havia restos de alguma pintura feita na tampa, provavelmente por uma criança. Era fechada por um pequeno cadeado que Bob conseguiu abrir facilmente após usar a ponta de um canivete. O coração de Bob dava saltos dentro do peito: o que haveria na caixa? 

Agarrado a ela, Bob foi até os degraus da varanda da casa, onde o sol da manhã brilhava. Reparou que havia muitos pássaros cantando nas árvores, e por instantes, sentiu que já tinha vivido uma experiência parecida com aquela. Ao abrir a caixa, deparou com os envelopes e com o saquinho de veludo marinho. Abriu um dos envelopes: era uma carta de amor onde uma letra infantil confessava seu amor por um menino chamado Leonardo. De repente, Bob sentiu-se aquele menino! Não ficou surpreso ao ver a assinatura: Bernadete. Encontrou outras cartas dela para Leonardo - ou para ele, e também as respostas que ele escrevera para ela. As letras nas cartas iam amadurecendo conforme o tempo passava, e Bob percebeu que elas tinham sido escritas em um período de oito anos. 

Nas fotografias amarelecidas, Bob identificou Leonardo e Bernadete em diferentes fases de suas vidas. As cartas falavam em um amor que começou cedo, aos onze anos de idade, mas que por interferência da família dela, foi interrompido. Aos dezenove anos, Bernadete menciona um noivo escolhido para ela por seus pais, e do dote em pedras preciosas que ele, seu pai,  receberia por ela após o casamento. A família estava em sérias dificuldades financeiras, e não havia outra saída a não ser o casamento. Mas Bernadete, profundamente infeliz, acabou encontrando as pedras preciosas dadas ao seu pai e as escondendo na caixa que enterrara no jardim da casa de Leonardo. Se ela fosse obrigada a se casar com alguém que não amava, não admitiria que seu pai lucrasse através daquilo! 

Ao dar pelo sumiço das pedras, o pai de Bernadete esbravejou, demitiu empregados, culpou Leonardo e sua família pelo desaparecimento, acionou investigadores policiais para investigar o caso, sem sucesso, e até surrou Bernardete... mas ela não confessou a ele o seu crime, ou onde estavam as pedras. No fim, ele acabou desistindo de encontrar as pedras preciosas, e a família do noivo fez uma nova doação, já que eram muito ricos.

Assim, o casamento aconteceu. Os dois namorados não mais podiam se ver, embora vivessem tão próximos um do outro, mas continuaram se correspondendo secretamente. As cartas iam todas sendo colocadas na caixa de madeira que ficava enterrada nos fundos do jardim de Leonardo. Bernadete as escrevia, ele as respondia e depois ela  remetia as respostas de volta para ele, junto com uma nova carta. Havia uma jovem  empregada da casa de Leonardo que servia de pombo correio ao jovem casal: ela esperava que o marido de Bernadete saísse para o trabalho e então ia até lá, entregar as novas cartas de Leonardo e recolher as respostas de Bernadete e as cartas já lidas por ela. 

 Mas Leonardo escrevia também cartas a si mesmo, nas quais falava sobre como se sentia mortificado e infeliz pela ausência física de sua amada. Enquanto lia tais cartas. Bob experienciava as emoções de Leonardo com todo o realismo, como se as emoções fossem suas, e a dor de Leonardo era ressuscitada e revivida através dele. 

(continua...)







sexta-feira, 8 de maio de 2020

AS CASAS VELHAS E AS VIDAS ABANDONADAS - Capítulo 1









Bob tinha uma página no YouTube na qual ele postava vídeos sobre velhas casas abandonadas - e seus fantasmas, caso eles existissem. O nome do canal era VIDAS ABANDONADAS. A atividade o levava a viajar muito nos finais de semana, assim que ficava sabendo de uma nova velha casa - e quase sempre, os próprios seguidores do canal o alertavam sobre elas. Quando Bob tirava férias do trabalho, ele geralmente viajava para locais mais distantes, onde passava todo o tempo visitando velhas casas e fazendo vídeos sobre elas. Era sua atividade preferida.

Mas tal atividade fez dele uma pessoa bastante solitária. Solteiro aos 33 anos, embora fosse considerado um homem atraente, Bob decidira que, como as freiras que se casavam com Jesus Cristo, ele se casaria com suas casas velhas. E dentro dele, a cada visita, ele ia acrescentando-as à memória uma a uma. Seu interior era cheio de velhas casas abandonadas, nas quais ele morava. Muitas vezes, Bob as revisitava e fazia novas postagens sobre elas; "afinal, é preciso rever os velhos amigos", ele dizia. E a cada vez que revisitava uma de "suas" casas, Bob encontrava-a mais  vazia, pois as pessoas as invadiam e depredavam. Ele não: sempre deixava-as intactas após as suas visitas e filmagens, e jamais revelava os endereços das casas, exatamente para não encorajar os vândalos.

Um dia, ele ficou sabendo sobre uma casa dentro de uma floresta, que estava abandonada há mais de trinta anos, sem que ninguém a tivesse habitado ou visitado naquele período de tempo. A pessoa que o informou sobre a casa não se identificou: deu-lhe apenas as coordenadas para que Bob encontrasse a tal casa. Naquele mesmo final de semana, Bob entrou no seu carro com o equipamento de filmagem e os habituais suprimentos, como velas, baterias, comida, um cobertor (caso precisasse passar a noite) e uma garrafa de vinho tinto. Dirigiu durante horas. Passou a entrada duas vezes, tendo que voltar quilômetros, mas finalmente, encontrou a estradinha de terra que levava floresta adentro, em direção à casa. O caminho era difícil, e o jipe chacoalhou durante quase uma hora. Bob já estava pensando em desistir quando finalmente avistou um imponente portão de ferro no meio de uma clareira. Estava trancado à cadeado. Bob desceu do carro e forçou-o, e o cadeado, devido à ferrujem, caiu no chão. Ele olhou para dentro do portão e avistou um terreno muito grande e um caminho tomado pelo matagal. Seria difícil entrar alí. Mas ele voltou ao carro, pegou um facão de cortar mato que levava em suas empreitadas e começou o trabalho de desbravar o caminho, até que após meia hora de trabalho, um Bob suado avistou finalmente a casa.

Entrou no jipe e dirigiu até a porta. Era uma casa em estilo vitoriano, de dois andares, a varanda suportada por duas grossas colunas gregas. No andar inferior havia uma porta de madeira, e de cada lado desta porta, três janelas envidraçadas abertas, de venezianas - todos os vidros estavam intactos. A parede ainda era branca, embora suja e tomada por ervas que se arrastavam sobre ela e entravam pelas telhas. No segundo an dar havia quatro janelas iguais às do piso inferior, também com as venezianas abertas e os vidros intactos.

Fascinado, Bob fez sua primeira tomada de vídeo. Descreveu a casa e a emoção ao encontrá-la ainda tão conservada após tantos anos de abandono. Depois, colocou luvas e a máscara cirúrgica para proteger-se de poeira tóxica e mofo e subiu os degraus da varanda.

Bob forçou a porta: estava trancada. A madeira, apesar de velha, era muito sólida e forte. Tentou a brir uma das janelas, e foi experimentando-as até que encontrou uma que não estava trancada. Ele passou o equipamento de filmagem pela janela, e também pegou no carro as suas provisões, pois já tinha decidido passar a noite ali.

Antes de filmar o interior da casa, que apesar de empoeirado, estava totalmente conservado, com móveis, fotografias, copos, talheres e demais utensílios, Bob decidiu dar uma olhada no local. O teto mofado desabava aqui e ali, mas de um modo geral, a casa estava firme. Ele passou pelos sofás de brocado que ficavam sobre um tapete empoeirado e úmido, olhou os armários cheios de copos de cristal, bibelôs antigos e louças maravilhosas, as cadeiras cuidadosamente arranjadas em volta da mesa de jantar de madeira, ainda arrumada para uma refeição que não acontecera, e subindo as escadas curvas de madeira , Bob  percorreu os seis quartos do segundo andar, todos ainda mobiliados , as camas arrumadas como se as pessoas ainda fossem dormir ali. Abriu os armários e encontrou roupas muito antigas dependuradas nos cabides. Em um dos quartos, as roupas eram de uma criança. Um menino.

Em uma das gavetas da cômoda, encontrou documentos que datavam  dos anos trinta aos anos cinquenta, e também muitas fotografias. O coração de Bob dava saltos: aquele seria o seu melhor vídeo! Nunca tinha encontrado uma casa tão bem conservada e com todos os objetos dentro, ainda intactos, como se a família tivesse apenas viajado! 

Como já estivesse começando a escurecer, Bob decidiu deixar as filmagens para a manhã seguinte. Escolheu um dos quartos, pelo qual passou uma vassoura que encontrou na cozinha, e arrumando seu saco de dormir no chão, preparou-se para a noite.

(continua...)

quinta-feira, 7 de maio de 2020

MADRE - Final







MADRE – Capítulo 13 - FINAL

Minha mãe era filha de pais muito rígidos e religiosos, que, ao saberem que ela tinha engravidado do namorado, a expulsaram de casa e viraram as costas para ela. Sozinha, ela foi ter suas bebês no mesmo hospital onde a minha mãe adotiva tinha ido para ter a sua filha. As duas se conheceram e conversaram longamente, e minha mãe adotiva ficou sabendo das dificuldades que minha mãe natural – com apenas quinze anos de idade – teria para criar sozinha duas meninas. Meu pai tinha fugido das responsabilidades da paternidade por ser muito jovem, e minha mãe natural não queria força-lo a nada, pois nem estava apaixonada por ele. 

Ao ter sua bebê, minha mãe adotiva, ao visita-la no berçário, percebeu que ela estava morta. Desesperada, trocou a sua bebê morta por uma das bebês vivas de minha mãe – eu. A cor dos cabelos era a mesma e as bebês eram até parecidas. Minha mãe natural percebeu a troca, mas decidiu ficar quieta a respeito pois achou que seria mais fácil criar apenas uma menina; além disso, sabia que minha mãe adotiva seria uma boa mãe. 
Realmente, fui muito amada e bem criada por meus pais adotivos (sem saber da minha verdadeira história); a única coisa que me incomodava, eram as mudanças repentinas para lugares distantes, que não me deixavam criar raízes ou fazer amizades duradouras. Isso tudo me causou síndrome do pânico e ansiedade, e desde cedo, precisei de medicação para lidar com isso. Meus pais diziam que as mudanças eram devido às mudanças exigidas pelo trabalho do meu pai. Também me incomodava o fato de eu jamais poder ter redes sociais usando a minha verdadeira identidade ou fotografias. 

Minha mãe natural continuou levando sua vida longe de mim, criando minha irmã gêmea a quem chamou de Georgina. Mas ela conheceu um homem muito rico e bem mais velho que ela, que lhe deu suporte e escutou sua história sem julgá-la. 
Minha mãe casou-se com ele e ficou muito rica. Herdeira do ex-marido, um empresário do ramo imobiliário que morrera de uma doença no coração. Bem mais velho do que ela, apaixonaram-se quando ele foi até uma loja aonde ela trabalhava para comprar um presente para sua então namorada. Ele não apenas aceitou sua filha (minha irmã) de dois anos de idade, como criou-a como se fosse sua e amou-a como a uma filha natural.

Anos após o casamento, ao saber que minha mãe tivera outra filha, decidiu ajudá-la a encontrar a menina (eu), respeitando o pedido de minha mãe de não querer a polícia envolvida na história.  Para ele, também seria melhor se nenhuma propaganda negativa interferisse em seus negócios e expusesse o nome da sua empresa.  Ele contratou um detetive particular que conseguiu encontrar meus pais adotivos. Mas ao saberem da intenção que minha mãe tinha de retomar sua filha, meus pais adotivos simplesmente fugiram, e continuaram a fugir durante anos. 

Enquanto isso, o marido de minha verdadeira mãe deu a ela o suporte que ela precisava para criar minha irmã e a continuar a procurar por mim. Fez por minha mãe tudo o que uma mulher poderia desejar, e ao morrer, deixou-a muito rica, pois não tinha herdeiros. 
Quando meus pais adotivos morreram em um acidente, fiquei sabendo da história toda e decidi ir a procura de minha verdadeira história. 

Encontrei minha mãe verdadeira com a ajuda de minha avó adotiva, conheci uma pessoa que foi muito importante para me ajudar a tomar a decisão certa (meu amigo Mateus) e agora estou aqui, morando na casa de Mayara. A história que ela me contou bateu com a que minha mãe adotiva deixou escrita para mim em uma carta. Mas Mayara me disse que não tinha parentes vivos, e agora aparece minha tia Mércia, irmã gêmea de minha mãe verdadeira, e vira tudo de cabeça para baixo. Logo agora, que minha vida estava começando a tomar um ritmo normal. Logo agora que pela primeira vez, eu estava começando a me sentir em paz. 

Este foi um dos motivos pelo qual eu não fui ao encontro que marquei com minha tia Mércia. Haveria a festa no dia seguinte, onde eu conheceria o mundo de minha mãe – seus amigos – e tentaria fazer parte daquele mundo. Eu queria estar feliz. O vestido que eu e Mayara escolhêramos era simplesmente lindo, e a expectativa da festa estava me deixando muito excitada e feliz. 
O outro motivo, foi que minha mãe e eu tivemos uma conversa na manhã seguinte àquela do shopping center, onde eu conhecera minha tia Mércia. Foi à mesa do café, logo após a noite na qual a síndrome do pânico tinha me atacado de novo. A manhã estava um tanto pesada, o céu coberto por nuvens cinzentas. 

Ela me disse:

-Aisha, você não imagina o quanto estou feliz porque você quis me conhecer! Sou grata porque você me perdoou por não tê-la procurado com mais afinco, e por ter entendido meus motivos. O que eu quero dizer é que... bem, nós... todos temos um passado e fazemos algumas coisas das quais não nos orgulhamos muito. Gostaria que você não se tornasse uma menina amarga, que não culpasse seus pais adotivos pelo que aconteceu, e nem a mim. 

-Eu já perdoei meus pais. E a você também. 

Ela respirou fundo, tomando um gole de café e erguendo as sobrancelhas. 

-Não é isso. O que eu queria que você entendesse, é que não existe nada a ser perdoado. Um dia, quando for adulta, você cometerá erros também. Faz parte de sermos humanos. Ninguém precisa perdoar ninguém, Aisha! Basta que aceitemos uns aos outros como somos, sem julgamentos. Algumas pessoas se julgam nobres ao dizerem que perdoam alguém, mas na verdade, ao dizerem isso, só estão demonstrando o quanto são (ela desenhou aspas no ar com as mãos) “nobres e bondosas, superiores e espiritualizadas.” Na verdade, são apenas hipócritas, pois elas também não são perfeitas! 

Eu fiquei calada, mas meu rosto revelou a minha confusão a respeito do que ela dizia, e Mayara acrescentou:

-Eu só queria pedir a você que seguíssemos em frente e deixássemos para trás tudo o que aconteceu, todo o passado. É a única maneira de sermos felizes. 

Concordei com a cabeça, meu cérebro dando voltas. Retruquei:

-Mas isso significa que eu não posso mais ver a minha vó? E Tina?

Ela riu:

-Não, não! Você pode visita-las se quiser, pode trazê-las aqui, não importa! Elas fazem parte da sua vida. Também pode visitar seus pais no cemitério, mandar rezar missas por eles, enfim... é a sua vida e eu não vou interferir. Só queria que ficasse morando aqui comigo, porque já ficamos tempo demais separadas. Quero conhecer você, e quero que você me conheça. E temos a vida toda para isso.

Eu senti uma paz enorme tomando conta de mim. Olhei para o céu à janela, atrás dela, e vi que uma enorme nuvem cinza se afastava, dando lugar a um céu tão azul, que chegava a deixar a gente sem ar. Havia uma cerejeira cheia de flores no jardim, e Ronaldo, o jardineiro, ajeitava uma pequena cerca sob ela. Eu decidi que queria ter aquela vida para mim. Olhei para minha mãe, e ela tentava conter a emoção. 

-Ok, eu vou ficar morando aqui com você... mãe!

Naquele mesmo dia, bloqueei o número do telefone de minha tia Mércia. Nunca mais a vi ou soube dela, nem perguntei à minha mãe sobre ela. Também apaguei minhas redes sociais, pois deixar o passado para trás também significava começar tudo de novo. TUDO. Não queria mais me lembrar daquela festa de quinze anos que nunca aconteceu, nem ter que virar a esquisita da turma, a menina que chega e é olhada por todos, que começam a murmurar sobre ela e a fofocar sobre sua vida. Já estava cansada das perguntas indiscretas dos meus velhos amigos, que, descobri, nem valiam tanto a pena assim. 

A festa de Dalva, amiga de minha mãe, foi maravilhosa! Fiquei conhecendo seus amigos e eles me trataram muito bem. Ninguém me fez perguntas desagradáveis ou indiscretas. Todos se preocuparam em me mimar e me deixar à vontade para ser eu mesma. Na mesma noite, eu e Ian, filho de Dalva, nos conhecemos e começamos a namorar. 

A vida foi se encaixando; minha avó Beatriz e Tina nos visitavam às vezes, e costumavam passar as festas de fim de ano na nossa casa. Eu também viajava para visita-las sempre que podia, até que minha avó faleceu quando eu fiz vinte e dois anos. Logo depois, Tina também se foi. 

Eu e Ian nos casamos e tivemos três lindos filhos, aos quais demos os nomes de Beatriz, Fernanda e Jairo (os nomes de minha avó e de meus pais adotivos). Nunca escondi dele a minha verdadeira história. Tive uma vida muito feliz e muito plena. Eu, Dalva, Ian e mamãe viajamos o mundo todo, ficamos em hotéis maravilhosos e mais tarde, meus filhos juntaram-se a nós nas nossas viagens. 

Minha mãe – Mayara – morreu quando eu tinha cinquenta anos de idade, e ela, sessenta e cinco. Nunca tivemos uma discussão sequer, nenhuma briga ou desentendimento, por menor que fosse. Éramos verdadeiras almas gêmeas. Me senti grata por poder cuidar dela até o final de sua doença, e por estar perto dela segurando a sua mão quando ela deu seu último suspiro, entre sorrisos, deixando como sua última palavra, um “obrigada.”

Após o sepultamento, todos foram embora, mas eu quis ficar um pouco mais junto ao túmulo de minha mãe. Precisava me despedir dela de verdade, agora sem o medo de perde-la, que me acordou durante os cinco anos após ela descobrir sua doença, sem o cansaço das noites em claro que eu tinha passado com ela nos seus últimos dois meses de vida, e sem as visitas que entravam e saiam de nossa casa o dia todo, pois todos adoravam Mayara. Eu queria ficar um pouco sozinha com ela, sabendo que ela não estava sorrindo para que eu não notasse que estava sentindo dor; que ela não tentava parecer que estava bem, só para que nós não nos preocupássemos tanto com ela. 

Eu queria dizer adeus à minha mãe sabendo que ela agora estaria tranquila para me ouvir. E através do meu pensamento, eu disse a ela tudo o que eu queria, e chorei todas as lágrimas que me restavam, e ri muito também, me lembrando dos nossos muitos momentos de felicidade juntas. Respirei fundo e estava pronta para ir embora, quando ergui os olhos e vi uma mulher se aproximando. Uma mulher muito parecida com minha mãe, mas não macilenta devido à doença; uma mulher que já fora bonita, e que agora estava envelhecida e amargurada demais para sua idade. Quando ela chegou mais perto, percebi as rugas profundas em volta da boca – rugas de anos de tristeza.  Ela caminhou na minha direção, e seu andar claudicante e lento  parecia carregar o peso de anos de ressentimentos. Eu percebi que ela estava ali por um motivo: destruir as memórias felizes que eu tinha de minha mãe; arruinar sua memória, matá-la uma segunda vez dentro do coração da pessoa que ela mais tinha amado e que mais a amara.

Levantei-me do banco de madeira, ajeitando a saia, agarrando com as duas mãos a bolsa preta, como se sentisse medo do que ela ia tentar roubar de mim. Ela me olhou nos olhos, e vi que sua raiva e inveja eram gritantes. Eu queria me mover, mas alguma coisa me mantinha presa ao chão, como se minha tia Mércia possuísse poderes mágicos e malignos. Ela chegou bem perto de mim e parou a menos de um metro do meu rosto, me olhando da cabeça aos pés. Notei que suas roupas eram antigas e estavam muito usadas, a saia preta plissada e desbotada, a camisa branca desgastada na gola. Eram roupas de uma mulher que não se importava consigo. Que não se importava com nada nem ninguém. 

Ela abriu a boca, e percebi que dali não sairia nada de bom ou de útil. Eu tinha certeza de que Mércia ia despejar sobre mim segredos do passado de minha mãe cuja intenção seria a de macular sua memória. Percebi também que eu não estava interessada em sabe-los agora, assim como não tinha desejado sabe-los no passado. Também notei que aquela mulher tinha sofrido muito devido a tais segredos, e se transformado em uma bruxa amarga, solitária, precocemente envelhecida e incapaz de amar. Ela não tinha seguido adiante; sua vida tinha estacionado no exato momento em que aquela antiga mágoa tinha sido perpetrada. E agora ela queria despejar tudo aquilo em cima de mim, apenas por vingança. 

Minha tia Mércia abriu a boca, e seus olhos emitiram um brilho de maldade. Mas antes que ela pudesse dizer uma única sílaba sequer, eu ergui a mão, a palma virada para o seu rosto, calando-a. Mércia hesitou, balbuciou, e eu, dando a volta por trás dela, me afastei dali a passos rápidos, de modo que ela não conseguisse me alcançar. Depois, passei a correr, e entrando no carro, bati a porta e liguei o motor, dirigindo para bem longe dela. Ainda pude ver sua imagem congelada no retrovisor do carro, me olhando, a boca entreaberta. 


FIM






A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...