segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O ELEFANTE BRANCO - PARTE IV





Rubens começou a trabalhar na casa novamente, pois Alana ameaçou  mandá-lo embora, e daquela vez, a coisa foi realmente séria. A contragosto, ele assumiu o lugar de Iris com os pincéis e lixas de parede, e o trabalho começou a andar mais rápido. Também removeu as temíveis teias de aranha, o que fez com que Iris se sentisse bem mais confortável. 

Porém, como era de se esperar, a mudança de Rubens durou apenas uma semana.
Um dia, elas acordaram e ele não estava lá. Iris e Alana conversavam, enquanto lixavam as paredes da cozinha:

-Mãe, eu adoraria saber aonde ele vai quando some.

Alana não respondeu imediatamente, mas depois, disse:

-Ele desce o penhasco. 

-Como assim? Você o viu?

-Sim. Eu o segui. Ele desceu o penhasco, e depois eu o vi caminhando na praia. Mas ele desapareceu na curva. 

-E o que tem lá?

-Não sei... mas confesso que também fiquei curiosa.
Naquele momento, as duas ouviram o ruído de passos sobre o novo cascalho recém-assentado na entrada da casa, se aproximando e parando junto à porta. Iris e Alana largaram os pincéis e foram ver quem estava chegando.

O coração de Iris deu um pulo ao ver os dois irmãos – Caio e Mercedes – do lado de fora, sorrindo para ela. Imediatamente, toda a sua espontaneidade sumiu, e ela se sentiu diminuir cada vez mais. Era a sensação que tinha quando estava perto de Mercedes. 

A moça aproximou-se, e como se conhecesse Iris há muito tempo, abraçou-a e beijou-a no rosto duas vezes. Quando Caio fez a mesma coisa, Iris notou que ambos tinham o mesmo cheiro; era mais do que apenas duas pessoas que apenas usavam o mesmo perfume: eles tinham a mesma química no corpo. Iris sentiu que poderia vir a amar ou odiar aquelas pessoas, e aquilo foi estranho e forte. 
Alana sorriu:

-Então vocês são nossos vizinhos! Minha filha falou muito bem de vocês!

Os dois irmãos se entreolharam, e Iris, envergonhada, logo notou que eles não compraram a história de Alana, mas sorriram assim mesmo. Caio estendeu a mão polidamente, com simpatia, apresentando-se:

-Meu nome é Caio, e esta é minha irmã Mercedes. Muito prazer.

-Prazer! Fico feliz em conhecer vocês. 

Mercedes deu à Alana o mesmo tratamento que dera a Iris – um beijo barulhento no rosto, e Alana logo gostou da moça. 

-Não querem entrar e dar uma olhada na casa? Estamos reformando!

Caio disse:

-Na verdade, sim. Passei para ver como as coisas estão indo, e também para oferecer ajuda, se for preciso. 

-Ora, muito obrigada, mas... nós não podemos pagar.

Iris sentiu o rosto queimar; achou que a mãe não precisava ficar ando atestado de pobreza a estranhos daquela forma, embora o fato fosse óbvio: por que elas morariam naquele lugar, se tivessem um lugar melhor onde viver?

Caio disse:

-Não se preocupe. Venho quando puder, camaradagem entre vizinhos. Jamais cobraria alguma coisa de vocês. 

Alana ficou comovida, e agradecida ao mesmo tempo:

-Muito obrigada! Você não sabe o quanto é reconfortante ter novamente pessoas que se oferecem para ajudar, depois de tanto tempo...

Iris não deixou que ela continuasse, pois percebeu que  a mãe ia começar a fazer confissões sobre a vida particular delas; Alana era assim: aberta demais. Mudou 
de assunto;

-Vamos lá dentro? Acho que vai começar  a chover!

Espontaneamente, Mercedes abraçou-a pela cintura, e as duas foram entrando na frente, enquanto Alana e Caio caminhavam logo atrás. Iris sentia a pressão suave do braço de Mercedes em sua cintura, e os dedos que descansavam na altura de seus rins, pressionando-a suavemente. Aquilo era diferente e estranho, pois não era tocada por alguém há muito tempo. Não gostava de ser tocada. Sentia-se muito desconfortável quando alguém se aproximava demais ao conversar com ela. Mas com Mercedes, alguma coisa diferente acontecia; ela sentia o calor da nova amiga como algo positivo, algo bom. De repente, quis ficar a sós com ela, e levou-a para o quarto misterioso lá em cima. Caio e Alana ficaram conversando no andar inferior. 

Mercedes olhou em volta, dizendo:

-Isso me dá arrepios! Tudo negro... parece ...  sinistro!

-Ou talvez apenas triste. Acho que esse lugar guarda alguma história bem triste... você e Caio sempre moraram aqui. Sabem de alguma coisa sobre a casa?

Mercedes coçou a cabeça, levando a mão ao coque e soltando os cabelos, que caíram em suas costas como cascatas macias e escuras, o que fez com que Iris entreabrisse os lábios de tanta admiração. Ela era bonita, muito bonita, e parecia não perceber ou não se importar com isso, o que a deixava ainda mais bonita. 

-Só um pouco. Esse lugar é meio misterioso, e sua tia Bárbara era um tanto reclusa. E muito velha também. Dizem que ela morreu com quase noventa anos! Sei apenas o que eu escuto o pessoal contar desde que éramos crianças.
Mercedes sentou-se na beirada na cama, e Iris sentou-se ao lado dela. 

-Conte-me um pouco, por favor.

-Mercedes olhou-a nos olhos, e riu:

-Por que? Vai escrever um livro sobre a casa?

Iris contornou a ironia que viera à ponta da língua:

-Digamos que sim.

Mercedes riu novamente, concordando com a cabeça:

-Está bem. Bem... vamos começar pelo começo então. Mas muito do que vou lhe contar não é comprovável. São especulações, histórias antigas... e você sabe que quem conta uma história sempre acrescenta alguma coisa. 

-Meu pai dizia sempre que quem conta um conto, aumenta um ponto.
Mercedes notou a melancolia na voz dela ao falar do pai:

-Seu pai dizia?... ele... morreu?

Iris olhou para o chão, cruzando as mãos entre os joelhos. Fazia aquilo quando ficava nervosa. Ela sentiu o calor da mão de Mercedes sobre a dela:

-Desculpe... não tenho o direito de perguntar. Me perdoe, eu... não queria despertar lembranças tristes. Um dia você me conta, se quiser.

Íris agradeceu, e de repente, virou a palma da mão para cima, segurando a dela. Foi um toque rápido, mas ela pôde sentir como se existissem terminações elétricas entre suas mãos. Mercedes recolheu a própria mão, colocando-a sobre o joelho. Ambas pareciam um pouco desconfortáveis com o silêncio que se formou. Mercedes afastou os cabelos de Iris, e aproximando o rosto do dela, beijou-a novamente na face, mas daquela vez, demorando-se um pouco mais. Íris sentiu uma ternura enorme, como jamais sentira antes, e lembrou-se dos tempos em que, ainda criança, pedia aos pais que lhe dessem uma irmãzinha. Ela tinha que dizer alguma coisa antes que começasse a chorar, e então ela disse:

-Não vai me contar? A história...

-Claro. Sua tia não foi sempre cega; ela perdeu a visão ao rolar as escadas. 
Depois de uma surra que ela levou do marido. 

Íris sentiu o coração pular. Mercedes continuou:

-Ela estava na casa dos trinta quando aconteceu. Era jovem e bonita. O marido transformou-se em um monstro depois que eles perderam o filho em um acidente. O menino estava brincando no penhasco, e caiu lá embaixo. Minha mãe era bem criança ainda, mas ela se lembra. Ninguém esquece uma coisa assim, eu acho.

Enquanto Mercedes falava, Iris lembrava-se da história que tinha visto durante o sono, no dia em que se sentara na poltrona vermelha daquele mesmo quarto. Era como se as cenas que Mercedes narrava aparecessem para ela como um filme. 

-Dizem que ele era um homem bom, e que eles eram felizes antes; mas depois da morte do menino, ele começou a beber muito, e a jogar. Envolveu-se com gangsters em um cassino que fica numa cidade vizinha. Dizem que perdeu toda a fortuna da família no jogo. Só sobrou esta casa. 

-E como ele morreu?

-Cravejado de lindas balas calibre 45. Ele bem que mereceu. Até hoje, ninguém sabe quem o matou, mas há suspeitos. Sua tia e ele tinham por volta de cinquenta anos quando aconteceu. Depois disso... bem... ela passou a viver aqui sozinha.

-Ou melhor, com Rubens.

-É. O caseiro. Ninguém mais vinha aqui, ela não recebia ninguém. E ele era um cão de guarda eficiente.

De repente, um pensamento veio à cabeça de Iris:

-Você acha que... os dois...

Mercedes concordou:

-Dizem que sim. Dizem que ele e sua tia eram amantes há muitos anos, e que ele cuidava dela com muito mais que apenas dedicação servil. 

-Então... Rubens deve ser muito velho! Se minha tinha morreu aos noventa e tantos anos.

-Não. Ele é pelo menos quinze anos mais jovem do que ela.

-Mesmo assim, apaixonou-se por uma mulher cega, manca e amarga?

Mercedes pousou nela um par de olhos curiosos, encimados por sobrancelhas arqueadas de espanto:

-Como você sabia que ela era manca? Eu não contei nada sobre isso.

Iris riu, e achou melhor não contar a ela sobre o sonho (ou visão) que tivera. Pelo menos, ainda não. Precisava saber o que sentia por ela, no que aquele relacionamento se transformaria. Amor ou ódio?

-Sim, eu sei... Rubens nos disse. Mas ele nunca contou nada mais sobre ela. E mamãe nunca se importou em perguntar, então... ela e a tia não se conheciam, na verdade. 

Mercedes concordou, mas manteve os dois olhos verdes pregados no rosto de Iris, atentos a qualquer mudança de expressão. De alguma forma, Iris sentiu que ela sabia que ela tinha mentido, mas que achava melhor fingir que acreditava. 

-Respondendo a sua pergunta – sobre como um homem poderia apaixonar-se por uma mulher cega, manca e amarga – acho que essas coisas não tem explicação. A gente simplesmente sabe que vai amar alguém, assim que deita os olhos sobre a pessoa. 

Íris sentiu o coração dar um pulo. Para tentar escapar à tensão daquele momento e daquelas palavras, ela se levantou da cama, e tentou soar animada:

-Vamos lá para baixo? Preciso ter certeza de que minha mãe não está alugando seu irmão para contar a ele a miserável história de nossas vidas! Ela pode ser bem chata quando quer.

Mercedes ergueu-se, olhando para ela com a mesma intensidade:

-Sua mãe não é chata. E ela é uma linda mulher. 

Iris encarou-a por alguns minutos e concordou com a cabeça antes de virar-se e começar a sair para o corredor, tendo Mercedes bem atrás dela. 
Ao chegarem lá em baixo, depararam com os dois conversando e apontando para as paredes. Ao ver a filha, Alana explicou:

-Veja, Iris! Caio está me dizendo que, originalmente, havia uma pintura belíssima nesta parede. E que ele seria capaz de restaurá-la. Assim, poderíamos elevar o valor da casa!

-É verdade – disse Caio. – Li em um livro sobre as casas antigas aqui da região. Há muitas nesse estilo. 

-Mas... mesmo depois de termos pintado por cima das outras tintas que alguém pintou por cima? – perguntou Iris.

Caio explicou:

-Mesmo assim! Restauradores podem fazer esse tipo de trabalho, e eu... bem, eu sou um! Pode levar um pouco mais de tempo, mas ficará muito bom, e eu poderei exercitar minha arte, que anda parada desde que assumi a fazenda e o haras. 

Alana arregalou os olhos:

-Vocês tem um haras e uma fazenda? Que incrível! 

Mercedes disse:

-Sim! Nossos pais se aposentaram, compraram um barco e foram viajar pelo mundo. Não voltam tão cedo, e disseram que nós teríamos que trabalhar agora, para variar. 

Íris sentiu imediatamente o contraste entre as vidas daqueles irmãos e as vidas dela e de sua mãe. Eram ricos. Podiam ir aonde quisessem, podiam comprar o que desejassem, e no entanto, estavam ali, naquela casa miserável caindo aos pedaços conversando com duas fracassadas. Por que? Ao mesmo tempo, ao mencionar a viagem dos pais, Iris também notou uma certa tristeza no tom de voz de mercedes, que por instantes, também fez com que uma sombra escurecesse os olhos da bela menina. Por que alguém tão bonita, jovem e rica, que tinha tudo para ser feliz, pareceu-lhe tão triste de repente? E ela, que tinha todas as razões para sentir-se miserável, estava tentando sobreviver, passar por cima de acontecimentos tão terríveis...

Incomodada com os próprios pensamentos, pensou se aquela amargura que sentia não seria inveja. Enquanto pensava, notou o olhar atento de Mercedes sobre cada movimento do seu rosto e corpo. Sentiu-se envergonhada, achando que ela percebera seus pensamentos. Quando Mercedes falou, Iris teve ainda mais certeza sobre aquilo:

-Sabe, eu e meu irmão ficamos muito sozinhos depois que nossos pais viajaram. 

-Alana perguntou:

-Não tem amigos?

-Na verdade, não... ninguém quer ficar amigo dos dois “riquinhos metidos à besta.” É assim que a maioria das poucas pessoas mais jovens que restaram nessa cidade nos chama, sabem... tenho uma ou duas amigas, mas elas são tão ricas e metidas à besta quanto eu, então... não tem graça!

Todos riram. Alana olhou para Caio, e perguntou:

-Caio... quantos anos vocês tem?

Ele respondeu:

-Tenho vinte e seis, e minha irmã, dezenove. 

-Minha Iris tem dezoito. Quanto a mim... bem, não interessa. Mas achei muito bom que vocês tenham ficado amigos de Iris! 

Caio ficou sério, e respondeu:

-Só dela? E de você, não?

Alana riu:

-Claro que sim! Mas acho que vocês têm muito mais coisas em comum com ela, só isso...

Mercedes brincou:

-Ora, você fala como se tivesse cem anos! 

-Quase metade disso... mas vamos esquecer esta parte! Caio, quando começamos? Isso é, não quero atrapalhar seu trabalho!

-Amanhã mesmo. Trarei minhas tintas. Contratarei um capataz  para a fazenda, e posso administrar o haras na parte da manhã. 

Alana bateu palmas!

-Oh, que ótimo! Muito obrigada! 

-Eu é quem devo agradecer, Alana. Posso chama-la assim? Preciso exercitar minhas habilidades de restaurador. Será um enorme prazer ajudá-las. 

Iris sentiu novamente o rosto queimar quando Caio a penetrou com um par de olhos verdes quentes e doces. O olhar dele derramou-se sobre ela como lava quente – pelo menos, foi assim que ela sentiu o olhar corriqueiro e amigável que ele dirigiu a ela. Ao se despedirem, Mercedes novamente beijou-a no rosto, abraçando-a brevemente, e depois, Caio fez o mesmo. Ela fechou os olhos, e sentiu o toque dos lábios dele, pensando que, de olhos fechados, pareciam a mesma pessoa. 

Bem mais tarde, quando foi dormir, Iris revirou-se na cama durante muito tempo, pensando nos dois. 




segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

O ELEFANTE BRANCO – PARTE III







-Mãe, eu não entendo porque todo mundo fica boquiaberto quando dizemos que estamos morando nesta casa. 

Era final de tarde, e as duas estavam terminando de pintar a parede da sala. Usavam um galão de tinta branca que Alana mandara Iris trazer da lojinha de tintas da cidade. Decidiram que a casa seria toda pintada de branco – por dentro e por fora. 

-Filha, sabe como é... cidade pequena. Gente atrasada. 

Alana estava lavando um dos pincéis com removedor. Rubens havia simplesmente desaparecido naquele dia longo e exaustivo, deixando o trabalho todo para as duas mulheres. Ela já percebera que ele tinha o hábito de descer o penhasco e desaparecer durante horas. 

-Bem, nem todo mundo é atrasado. Ante-ontem conheci um casal de irmãos. Eles tem mais ou menos a minha idade. Os nomes deles são Mercedes e Caio.

-Mesmo? Que ótimo! Fico feliz que você esteja fazendo amigos.

Iris retraiu-se:

-Eu não disse que tínhamos ficado amigos. Só dei uma carona para ela porque estava chovendo. Não acho que temos coisas em comum. Além do mais, o irmão dela é um desses galãs metidos a besta. Só porque é bonito, se acha o rei da cocada. E ela... uma metidinha curiosa e intrometida. 

Alana respirou fundo, lamentando as palavras da filha. Os julgamentos de Iris sobre os outros tinham se tornado bastante cruéis ultimamente. 

-Dê a eles uma chance, Iris... quem sabe...

Iris largou o pincel sobre a lata de tinta, encarando a mãe:

-Eu não tive chance nenhuma, mãe. Por que acha que eu tenho que dar uma chance a todo mundo?

Alana ia responder, mas naquele momento, ambas ouviram ruídos vindo do andar superior da casa, onde Iris ainda não tinha ido, pois Rubens não limpara as enormes teias de aranha. O ruído se repetiu; pareciam passos. As duas se entreolharam, engolindo em seco. Iris olhou para as teias de aranha que ainda enfeitavam o corrimão, e levando a mão à garganta, disse:

-Bem, se aquelas teias não estivesse ali, eu não sei se subiria aquelas escadas... mas com elas ali, nem pensar!

Alana riu:

-Deve ser um pássaro, ou algum outro animal. Olhando lá de fora, percebi que há uma vidraça quebrada em uma das janelas do segundo andar. Nunca fomos lá, e talvez esta seja uma boa chance.

Dizendo aquilo, ela começou a subir os degraus, que estalavam, enquanto limpava as mãos sujas de tinta branca nos bolsos de trás da calça jeans surrada. Íris achou que não deveria deixar a mãe subir sozinha – afinal, qualquer coisa poderia ter produzido aqueles ruídos – e seguiu logo atrás dela. 

Ao chegarem ao patamar, pararam e olharam em volta; o estado da casa no segundo andar era ainda mais desanimador do que no primeiro. O corredor, longo e escuro, estava extremamente sujo, e ao longo dele, estendia-se uma fileira de portas fechadas. Alana deu um passo adiante, tendo Iris agarrada à ponta da sua blusa. Abriu a primeira porta à direita, e o que viu foi um quarto de dormir. Havia uma cama de ferro belíssima e antiga, móveis antigos que talvez precisassem apenas de limpeza e cortinas rasgadas e sujas. Entrou e abriu a janela, que por milagre, não estava emperrada. Iris observou a poeira indo em direção à luz fraca do sol. 

Foram para o outro quarto, segunda porta à direita; este estava completamente vazio, o que destacou a beleza do assoalho de tábuas corridas, mesmo estando sujo. Elas fecharam a porta e foram para a terceira porta à esquerda; era um banheiro grande, de pé direito alto. Os azulejos exibiam pinturas feitas à mão, de uma paisagem que lembrava os penhascos da cidade. Iris teve que admitir que aquele era o banheiro mais lindo que ela já vira. Teve que se conter para não dar um “Oh!” de admiração ao deparar com a banheira de mármore no centro do cômodo, com seus pés de ferro que imitavam patas de leão. 

Procederam para a quarta porta, a da janela quebrada; não tinha venezianas – parecia terem sido arrancadas ou então tinham caído de tão velhas. A luz da tarde entrava e iluminava um cenário parecido com o do primeiro quarto, mas ao invés da cama de casal, havia duas camas de ferro de solteiro. Alana começou a pensar que realmente gostava da casa e dos objetos que tinha acabado de encontrar. Iris pensava a mesma coisa, mas não daria o braço a torcer, pois temia que se admitisse, a mãe decidisse não vender a casa e ela teria que ficar enterrada naquele lugarejo para o resto da vida.

Foram para a quinta e última porta; Alana girou a maçaneta, mas esta não abriu. Estava trancada. Ainda conseguiram escutar um ruído farfalhante por trás da porta, mas não conseguiram abri-la nem mesmo forçando-a. concluíram que algum animal deveria ter feito seu ninho ali dentro.
Alana desceu as escadas e foi até a edícula pegar seu molho de chaves. Alguma delas deveria abrir aquela porta. Voltou correndo para a casa grande, onde Iris a esperava sentada nos degraus da varanda. Ela não ficaria sozinha dentro daquela casa de jeito nenhum... as duas voltaram a subir as escadas, e Alana experimentou todas as chaves que tinha, mas nenhuma delas abriu a porta. 

Finalmente, ela disse:

-Bem, Rubens deve ter a chave. Quem sabe... amanhã falaremos com ele.

-Isso é, se ele voltar... já reparou que ele às vezes passa a noite fora?

-Bem, isso não é da nossa conta, mocinha. Ele é um homem, com certeza deve ter alguém...

-Talvez alguém tão cego quanto sua tia Bárbara. Quem teria coragem de beijar aquela cara apavorante, com aquela cicatriz enorme?

Alana riu alto, e as duas caminharam de volta para a edícula, fechando a porta do casarão à chave. Mais tarde, enquanto jantavam, deu um pequeno sermão na filha sobre não comentar a aparência das pessoas. 

E íris provou estar certa, pois Rubens não voltou para casa naquela noite. 
Por volta das quatro da manhã, as duas acordaram ao mesmo tempo ao ouvirem um estrondo. Assustadas, ambas correram em direção aos quartos uma da outra, se encontrando no pequeno corredor:

-Mãe, você ouviu aquilo?

-Sim, filha... 

Alana não sabia o que dizer, ou o que fazer. Não queria assustar a filha mais do que ela já estava assustada, e tinha que se controlar. Tentou soar informal:

-Deve ter sido um balão...

-Não; acho que foi um tiro. E de espingarda, ou alguma arma bem grande. Dessas de matar elefantes. Será que aconteceu alguma coisa com alguém?

Alana sentiu calafrios subindo pela espinha. 

-Não há nenhuma casa por perto. Acho que deve ter sido outra coisa, quem sabe, uma onda batendo na praia lá em baixo...

-Mãe, você sabe que ondas não fazem esse barulho. Está tão assustada quanto eu, mas ainda teima em achar que eu sou uma criança!

Alana foi até a cozinha, e colocou uma chaleira de água no fogo. O barulho tirara-lhes o sono, de qualquer forma, e resolveu que uma boa xícara de chá poderia acalmá-las. Íris apareceu minutos depois, enrolada em seu robe felpudo. Aceitou a xícara de chá que a mãe serviu-lhe, pegando-a com as duas mãos, tentando aquecê-las com o calor da xícara. 

-Mãe, não acha melhor a gente ir dar uma olhada na casa grande?

Só de pensar em abrir a porta e mergulhar na escuridão da noite, Alana sentiu-se mais que desconfortável.

-Está muito frio lá fora. E escuro também. 

-Se vamos mesmo morar aqui, precisamos aprender a não temer esse lugar. Precisamos mostrar quem manda aqui. 

Alana tentou sorrir:

-Temer este lugar? Como assim? Do que você está falando, filha?

-Eu me sinto desconfortável aqui. Acordo toda noite à mesma hora, por volta das 3 da manhã, e só consigo voltar a dormir quando começa a amanhecer. Eu sinto uma coisa esquisita quando estamos naquela casa, mãe... um medo sem razão de ser. Como se, a qualquer momento, alguma coisa fosse surgir do nada e me pegar. E tenho tido alguns pesadelos estranhos com a praia abaixo do penhasco...

Alana tentou ser paciente; afinal, elas estavam passando por muitas mudanças, e a maioria delas, não era muito agradável. Colocou-se por trás de Iris, acariciando seus cabelos:

-Minha pobre querida... esse lugar também me dá arrepios, às vezes... mas infelizmente, é o que eu tenho no momento. Prometo que assim que a nossa pequena reforma ficar pronta e conseguirmos vender este lugar, nós vamos voltar para casa. Ou então iremos para onde você quiser. Quanto aos sonhos e as esquisitices, não dê importância, elas são apenas consequências da imaginação fértil de uma adolescente muito criativa e inteligente. 

De repente, ela se lembrou dos novos amigos que a filha tinha feito:

-Por que você não tenta se enturmar, por enquanto? Essa moça que você conheceu... quem sabe, ela pode ser legal? E o irmão dela, tente olhar para ele com outros olhos. Talvez surja até uma paquera, quem sabe...

Iris corou, e indo até a pia, começou a lavar as xícaras. Pensou nas palavras da mãe, e concluiu que se elas estavam ali, e se teriam que ficar ali por enquanto, então era mesmo melhor tirar proveito da situação.

-Você está certa, mãe. Vou tentar me enturmar com eles. Quem sabe, posso convidar Mercedes para vir aqui um dia desses?

-Claro! É assim que se fala!

Mais tarde, na cama, Alana pensava na filha. Sentia-se muito culpada por tudo o que estava acontecendo. Fizera sempre e apenas o melhor que podia, mas tinha a impressão de que nunca era o suficiente. 

E em seu coração, o medo de que a filha descobrisse que ela e Mario não estavam muito bem antes do sumiço dele, e que ela pensava em pedir o divórcio. Se Iris soubesse daquilo, acabaria culpando-a pelo desaparecimento do pai. Mas como ela poderia descobrir? Ninguém mais sabia daquilo, além dela mesma. 
E não havia ninguém culpando-a pelo desaparecimento do marido, a não ser ela mesma. Alana culpava-se, e mortificava-se. No fundo, ainda amava Mario, e achava que sempre o amaria, de alguma forma. Muitas vezes ela se perguntou o que os tinha afastado daquela maneira, mas nunca encontrou a resposta. Nem mesmo quando foi busca-la nos braços de outro homem. O caso durou pouco tempo, pois ela logo caiu em si e sentiu o vazio daquele relacionamento. Ela não conseguiria amar a ninguém mais, a não ser ao marido. Mario nunca ficara sabendo- ela tinha sido cuidadosa. Mesmo assim, às vezes pensava se o relacionamento que tivera fora do casamento não teria sido a causa do desaparecimento repentino dele.

Enquanto isso, Iris pensava que jamais convidaria Mercedes e Caio para aquela casa caindo aos pedaços. 

Na manhã seguinte, quando as duas foram em direção à casa grande a fim de terminar a pintura da sala, encontraram a porta da frente escancarada. 

Enquanto elas permaneciam paradas em frente a entrada da casa, sem coragem para entrar, Alana sentiu um enorme pavor; tinha certeza de que deixara a porta da frente trancada na noite anterior. Estavam totalmente sozinhas naquele lugar. Ninguém se daria ao trabalho de escancarar aquela porta a fim de assustar duas mulheres sozinhas. Só havia uma explicação: Rubens fizera aquilo.
Iris segurou a mão da mãe, e Alana percebeu que a mão da filha estava gelada. Sempre que sentia medo, desde muito pequena, as mãos de Iris ficavam frias. Alana tentou concentrar-se e decidir o que fazer. Nunca tinha se visto em situação semelhante, mas sempre ouvira dizer que em casos como aquele, a melhor coisa era não entrar em casa. 

Às vezes, as casas velhas guardam histórias que ninguém mais está aqui para contar; porém, quem for sensível e caminhar por elas, poderá ouvir o que elas tem a dizer através dos retratos nas paredes, móveis quebrados, restos de cores, ecos que os pés produzem ao tocarem o chão e principalmente, dos silêncios que elas guardam. Iris era uma destas pessoas: ela conseguia escutar o que os lugares diziam. Ela ouvia as vozes dos que há muito já haviam se calado. Ela apenas ainda não sabia disso, até aquela manhã. 

Enquanto as duas ficavam de pé em frente a porta de entrada, de mãos dadas, pensando no que deveriam fazer em seguida, Rubens aproximou-se delas por trás, sem que elas o vissem, dando-lhes um grande susto, que fez com que as duas começassem a rir alto ao verem que era ele, que era apenas Rubens. Mãe e filha se entreolharam e até sentiram alívio ao verem a cara feia do velho caseiro olhando-as por cima da grande cicatriz que lhe cortava a face. 
Rubens demorou-se um pouco antes de perguntar, com seu habitual mau humor:

-Qual é a graça?

Alana respondeu:

-Bom dia pra você também, Rubens. Então... você chegou cedo e abriu a casa? 
Vai recomeçar o trabalho?

-Não sei do que você está falando, moça. Acabo de chegar aqui.

O sorriso sarcástico de Alana morreu:

-Como assim? Tenho certeza absoluta de que deixamos a casa trancada ontem, quando saímos no final da tarde! Com certeza, você tem as chaves!

Ele grunhiu:

-Não, não tenho. Eu as entreguei a você: uma cópia para cada uma. São as donas agora, não são?

-E você não ficou com uma cópia?

-Não, não fiquei.

E os dois ficaram conversando, sem perceber que Iris adentrara a casa. 
Lá dentro, os grãos de poeira dirigiam-se para a luz do sol que vinha das janelas como se fosse uma multidão em procissão. Iris deu alguns passou e respirou fundo antes de começar a subir as escadas. Ela o fez devagar, desviando o máximo que podia das malditas teias de aranha – que naquele momento, era o que ela menos temia. De alguma forma, ela sentia que havia alguma coisa a mais naquela casa. Ao chegar no topo das escadas, o longo corredor escuro quase a fez parar. Iris sentiu um arrepio tenebroso correndo pela espinha, e engoliu em seco. Mas ela foi em frente. Tentava manter-se lúcida, dizendo a si mesma que era só uma casa como as outras, repetindo aquele mantra que ela mesma sabia que era absurdo, enquanto se dirigia para a porta trancada ao final do corredor, a mesma que ela e a mãe não tinham conseguido abrir no dia anterior. 

Íris parou diante dela e encostou o ouvido, tentando escutar algum ruído. Instintivamente, levou a mão à porta – mesmo sabendo que ela estaria trancada – mas ao tocá-la e girar a fechadura, ela simplesmente se abriu. Surpresa, ela sentiu o coração bater na garganta e teve que se segurar para não sair correndo dali; lembrava de uma cena em um filme de terror que ela assistira, um filme que sua mãe criticara, dizendo-lhe que não fazia bem ficar assistindo aquelas coisas, e ela agora se arrependia por tê-lo assistido, porque ele lhe dera aquela memória aterrorizante com a qual comparar seu presente momento. 

Íris empurrou a porta, que se abriu vagarosamente, rangendo. Piscou os olhos várias vezes a fim de acostumar-se com a escuridão do quarto. Quando conseguiu, percebeu que ele era o maior quarto da casa, realmente espaçoso. Havia no centro uma cama de ferro parecida com as outras camas que tinham encontrado nos outros quartos, só que esta estava coberta por uma colcha preta com rendas e bordados  cor de mel. A colcha era esquisita; parecia ser muito antiga, mas estava quase perfeita, a não ser por um pouco de poeira, e Iris percebeu que aquele quarto estava estranhamente mais limpo do que os outros. A cama tinha um dossel cujas cortinas negras estavam abertas.

Em um dos cantos, havia uma cômoda grande e pesada, de madeira escura, com muitas gavetas. Ela abriu a primeira gaveta, e deu com artigos de langerie muito velhos, mas cuidadosamente dobrados. Íris pegou um deles, sentindo a maciez da seda e a delicadeza das rendas. Na segunda gaveta, havia camisolas – todas elas, pretas e rendadas. Na terceira gaveta, camisas de cetim femininas e blusas rendadas, anáguas de seda, e meias-calças – todas na cor negra. Íris percebeu que tudo estava em ótimo estado, e gostou das roupas, pensando que poderia usá-las. 
A quinta e última gaveta revelou frascos de perfume. Frascos muito antigos. Alguns estavam vazios. Todos eles eram muito belos, e pareciam muito caros. Ela leu os nomes e viu que a maioria eram franceses, mas havia alguns com letras diferentes que ela não conseguiu ler, talvez de países que ela achou que fossem remotos demais. 

Íris fechou as gavetas cuidadosamente; voltaria mais tarde para escolher o que ela queria levar. Olhou em volta, e não viu nada muito interessante, a não ser uma poltrona de veludo vermelho e uma cadeira estofada com o mesmo veludo da poltrona. De repente, ela sentiu o ímpeto de sentar-se naquela poltrona. Ela parecia convidá-la. E assim o fez. 
Mas quando ela recostou a cabeça no encosto alto, foi tomada por um sono incontrolável, e Iris deixou-se levar por ele.

De repente, ela estava caminhando pela casa, mas agora, tudo estava diferente: as paredes e móveis estavam limpos, as cortinas e tapetes eram novos e ela podia ouvir vozes de pessoas que riam e conversavam pela casa. Iris não conseguia ver a si mesma, e foi caminhando pelo corredor, surpresa pela aparência diferente da casa, quando de repente viu uma moça ruiva de cabelos longos, usando roupas antigas, vindo na sua direção. Ela ria alto, perseguida por um menino que deveria ter entre cinco e sete anos. Os dois brincavam. Íris sentiu-se tensa ao vê-los se aproximando, pois não poderia explicar como ela tinha ido parar ali, mas os dois passaram por ela – ou através dela – sem vê-la. 

Iris seguiu-os até o quarto, que estava muito diferente, decorado em cores claras e alegres, e viu quando a moça sentou-se na cama e o menino abraçou-a, chamando-a de mãe. Ela também sentiu em si mesma a intensidade do amor que unia aquelas duas criaturas, e de repente, teve vontade de chorar ao adivinhar o futuro que os separaria. 

Íris sentiu como se estivesse sendo puxada para trás. O vácuo fez com que ela tivesse a sensação de estar sendo esvaziada, de tão rápido que tudo aconteceu; era como naqueles sonhos em que as pessoas tem a sensação de estar caindo em um precipício. Ela estava no mesmo quarto – desta vez, o lugar parecia diferente; tudo estava negro: cortinas, colchas, tapetes e as roupas da moça, que agora parecia alguns anos mais velha, e bem mais triste. Ela chorava, sentada na poltrona de veludo vermelho. Segurava um lenço branco bordado, e Iris adivinhou que ela mesma o bordara. Assim que se perguntou o que acontecera ao menino, Iris soube: ele estava morto; caíra do penhasco sobre as pedras lá em baixo, junto ao mar, enquanto brincava. Ela olhou para baixo e viu seu corpo inerte sendo lavado pelas ondas, cujas espumas ficavam vermelhas. Ela escutou e ouviu o grito que saiu da garganta dos pais do menino quando, ao procurá-lo, depararam com a cena. 

E ela também soube que ele a culpava; alegava que ela não tinha tomado conta da criança como deveria. Ele passou a beber muito. Ele deixou de trabalhar, e tornou-se taciturno e violento. 

Mais um puxão, e íris viu quando ele pegou a moça pelo braço, jogando-a no chão. Ela bateu a perna direita com força contra o degrau da lareira, quebrando-a. depois daquilo, tornou-se manca. Íris viu toda a beleza do seu rosto desaparecer e transformar-se em amargura. A moça virou uma mulher triste, enraivecida e encurvada, menos pelas tantas surras que o marido dava nela, e mais porque ter perdido a única pessoa que amara. 

Mas ela encontrou alguém. Alguém que a enxergou, e viu a beleza que ainda restava nela. Alguém que lhe deu a mão e a amou. 

Mais um forte puxão, e Iris despertou com as vozes da mãe e de Rubens, que conversavam no corredor. Assustada, ela olhou em volta, ainda emocionada, como se tivesse assistido a um filme muito triste. Naquele momento, Alana entrou no cômodo:

-Iris! Você abriu a porta! Como conseguiu?

-Ela esfregou os olhos, bocejando:

-Não sei. Ela só estava aberta, e eu entrei. Mãe... tive o mais estranho dos sonhos.

Mas Alana já estava no corredor, ralhando com Rubens, e não a escutou.

(continua...)





quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O ELEFANTE BRANCO- PARTE II






Volta Azul era uma pequena cidade fria, onde o céu era, quase sempre, cinzento.  Chovia bastante por ali, o que fazia com que o rio estivesse sempre caudaloso. A natureza era rica e abundante, e as árvores predominantes, eram as coníferas – pinheiros e araucárias. Também havia muitos eucaliptos; tantos, que o cheiro ativo de pinho era sentido por qualquer pessoa que chegasse à cidade. Com o tempo, acostumavam-se com ele, e não o sentiam mais.
Mar e montanha conviviam pacificamente, integrando-se em lindas paisagens. 

A parte mais bonita, eram as colinas e seus precipícios, que mostravam o mar azul lá embaixo. Algumas pessoas atreviam-se a descer pelas trilhas escorregadias dos penhascos, e após alguns minutos de tensão, eram recompensados com belíssimas extensões de praias desertas, de areias brancas e águas revoltas e profundas. As praias eram mais frequentadas por surfistas e aventureiros. Íris tinha pavor de altura, e achou que jamais desceria até uma delas. Só de olhar lá para baixo, ela sentia vertigens.

O centro era uma pequena aglomeração de lojinhas, pequenos mercados, dois cinemas, um shopping center com 150 lojas que Iris achou absurdamente pequeno, em comparação aos que ela estava acostumada a frequentar, uma igreja católica e algumas protestantes. Também havia lanchonetes e restaurantes, todos bonitinhos e aconchegantes, e todo mundo parecia conhecer todo mundo. Para alívio de Iris, também havia WI-FI. 

Não tinham uma universidade que ela pudesse sonhar em frequentar. Os jovens de Volta Azul iam estudar fora, ou ficavam por ali mesmo, ajudando os pais a administrarem seus pequenos negócios ou trabalhando na fábrica de desinfetantes ou envolvidos com a pesca. Alguns deles iam embora e nunca mais voltavam. E Iris parecia estar entendo muito bem porquê. Não havia muito o que fazer na cidade. Pelo menos, não para uma recém-chegada de dezoito anos como ela. 

Depois que Rubens consertara o Jipe, Alana dera a ela autorização para usá-lo quando quisesse. E foi o que ela fez na primeira semana: saía cedo, embrenhava-se em cada estradinha de terra que encontrava, e descobriu que quase todas elas iam dar na beira dos penhascos – como se a cidade fosse um lugar alternativo no mundo, longe de tudo, onde ninguém poderia chegar e de onde ninguém poderia sair. Depois, chegava em casa por volta das dez da manhã e ia ajudar a mãe e Rubens (que não fora embora, afinal) a limpar o casarão velho. Aquela era a sua vida agora, e não havia nada que ela pudesse fazer para muda-la no momento.
Certa manhã, ela dirigia por uma das estradinhas de terra quando começou uma chuva forte. Iris mal conseguia ver a estrada adiante, e resolveu estacionar até que a chuvarada passasse. Desligou o motor e colocou os fones de ouvido. Ouvir música era uma das poucas atividades de lazer da qual ela dispunha naquele lugar esquecido por Deus. 

Iris sonhava, como toda adolescente; queria estudar e ter uma profissão que a deixasse financeiramente independente. Queria viajar e conhecer pessoas, fazer novos amigos. Queria encontrar um namorado. Mas desde que seu pai desaparecera, deixando-as sozinhas, parecia que seus sonhos tinham se tornado uma promessa distante e falsa que a vida lhe fizera. Teve que abandonar a cidade onde nascera e crescera, e todos os amigos. Teve que esquecer a vida tranquila que conhecia e lidar, pela primeira vez, com a luta para sobreviver a cada dia. 

Logo que o pai desapareceu, a firma imobiliária onde a mãe trabalhava fechou, e Iris teve que lidar com o desemprego da mãe, a falta de dinheiro e de perspectivas. A polícia continuava procurando por Mário, mas parecia que ele não deixara qualquer sinal de vida. Dois anos após o desaparecimento do pai, a indenização que Alana recebera da firma acabou, e ela continuava sem emprego, apesar das tentativas para encontrar um. Iris teve que lidar com a depressão da mãe, cuidando dela, administrando-lhes os remédios que ela precisava tomar e aprendendo a ser forte. Aos dezessete anos, ela tinha amadurecido cedo demais. Finalmente, o dinheiro acabou e elas tiveram que vender a casa onde moravam a fim de pagar dívidas, comprar coisas básicas, como comida e roupas, e quitar a escola de Iris, ou seu diploma ficaria preso. 

E foi quando tudo parecia irremediavelmente perdido, que elas receberam a carta do advogado de tia Bárbara. 

Alana ainda tentou colocar a velha casa à venda com a ajuda do advogado, mesmo sem tê-la visitado, mas houve poucos interessados.  Ela baixou o preço, mas nem assim conseguiu vende-la, e então, algumas semanas após receber a herança, decidiu mudar-se para a casa da falecida tia e tentar recomeçar a vida em um novo lugar. Achou que estar por perto da casa ajudaria a fazer com que pudesse vende-la, e então poderia comprar um pequeno apartamento. Tudo o que sabia sobre a casa então, era o que vira em uma fotografia que o advogado lhe mostrara, onde aparecia uma linda casa branca cercada por um belo jardim. 

Íris aguardava a chuva passar, o jipe encostado na beirada da estrada de terra. Mal conseguia ver o que estava do lado de fora devido às janelas embaçadas. Era como se ela fosse a única pessoa viva no mundo todo. Iris, embalada pelo ritmo da música que tocava em seus fones de ouvido, deu um pulo de susto quando escutou batidas na janela do carona, que fizeram com que seu coração desse um salto de pavor. Ela olhou para fora, através do vidro embaçado e das gotas de chuva, apertando os olhos para ver melhor. Instintivamente, acionou as trancas das portas. A pessoa bateu novamente, desta vez com mais força. Iris conseguiu ver o rosto de uma moça que estava ensopada da cabeça aos pés, os cabelos pretos escorridos encharcados, as palmas das mãos apoiadas nos vidros. Com medo, Iris olhou em volta, e respirando fundo, disse a si mesma: “Bem, Iris, é só uma garota.”  E abriu a porta do carro.

A moça entrou junto com uma lufada de ar frio e cheiro de chuva, agradecendo:
Iris notou o quanto ela era bonita, mesmo estando tão molhada e desarrumada. A pele era muito clara e contrastava com o cabelo escuro; as maçãs do rosto eram rosadas e os olhos, de um verde-garrafa que ela nunca tinha visto igual. Era alta e magra, o sonho de toda adolescente. Iris sentiu-se feia perto dela. A moça cumprimentou-a:

-Obrigada por me deixar entrar. Meu nome é Mercedes. Você deve ser a nova moradora da casa de Bárbara, acertei?

Iris encolheu-se no banco, enquanto a outra menina espremia os longos cabelos no chão do carro sem a menor cerimônia. Quando terminou, torceu-os na nuca, em um coque improvisado que deixou-a ainda mais encantadora. Iris respondeu entre os dentes.

-Sou eu sim. Meu nome é Iris. Eu... moro na casa velha.

A moça riu, arregalando os olhos:

-Você só pode estar brincando... você mora mesmo na casa velha? Quero dizer, não na casa menor?

Iris franziu as sobrancelhas:

-Não, não... na verdade, eu e minha mãe vivemos na edícula. A casa está em péssimo estado. Mas estamos tentando melhorá-la um pouco...

-Sozinhas? Ninguém as ajuda?

Iris começou a sentir-se perturbada com tantas perguntas. Concluiu que Mercedes era mesmo uma garota curiosa e expansiva – tudo que ela não era. Respirou fundo, e tentou explicar melhor, tentando soar um pouco irônica. Íris era assim: quando não podia lidar com alguém, recorria à ironia a fim de parecer mais forte do que era.

-Bem, temos a ajuda de Rubens, o caseiro. Você com certeza o conhece também, estou certa? Acho que sabe das histórias de todo mundo por aqui, não é?

Mercedes ergueu novamente as sobrancelhas, pegando no ar a intenção de sua nova conhecida; resolveu entrar no jogo, usando o mesmo tom de voz.

-Com certeza. Nasci e fui criada aqui, conheço todo mundo. Não sou uma forasteira. Como você. mas... então Rubens voltou! Achei que ele tinha ido embora. Pelo menos, ele sumiu depois do enterro de Bárbara. Coo você pode ver, não sei de tudo... mas pelo que vejo, você parece que não está gostando muito daqui. Acertei?

Iris sentiu-se ultrajada:

-Não pretendo esquentar lugar aqui nesse fim de mundo. Minhas ambições são outras. Não suportaria viver nesse lugar onde ninguém tem ambição.

Mercedes provocou:

-Hum... e quais são as suas ambições?

-Você não acha que pergunta demais? Nem nos conhecemos.

Mercedes olhou para fora, desembaçando o vidro com as costas da mão e mudando de assunto bruscamente:

-A chuva diminuiu bem... mas ainda não passou. Será que você poderia me dar uma carona até em casa?

Iris bufou, concordando com a cabeça e dando partida no carro:

-Bem, você vai ter que me mostrar o caminho. Esse jipe não tem GPS. 

E assim, ela dirigiu durante quinze minutos, guiada na direção que a outra apontava. Chegaram em frente a um chalé de madeira pintado de branco, muito gracioso. O terreno era cercado por uma cerca de madeira branca, baixa, e Iris podia ver os canteiros cheios de margaridas e bocas-de-leão. Também conseguiu identificar dálias, roseiras carregadas e algumas árvores frutíferas. Adorou o lugar, mas não daria o braço a torcer. Não disse nada, quando Mercedes agradeceu:

-Obrigada pela carona! Quando quiser, é só aparecer. Será bem tratada por essa habitante selvagem do interior. 

Iris tentou sorrir. A porta do chalé abriu, e ela pôde ver um dos rapazes mais bonitos sobre quem já tinha posto os olhos. Ele era alto, tinha cabelos pretos cacheados, queixo quadrado, maxilares bem desenhados. Era forte e musculoso na medida certa, não como os garotos que faziam academia e exageravam nos exercícios. Ela quase podia adivinhar que aqueles músculos eram fruto de trabalho ao ar livre. Os olhos eram do mesmo verde dos olhos de Mercedes, e ela se perguntou se eles seriam irmãos. Ele aparentava ser alguns anos mais velho, o que a deixou ainda mais interessada. 

O rapaz olhou para ela insistentemente, e Iris corou, sentindo-se uma tola. Logo, Mercedes seguiu a direção do olhar dela, e ao ver o jovem parado à porta de casa, acenou para ele, dizendo:

-Vou te apresentar meu irmão.

Iris teve vontade de fugir, mas Mercedes estava metade dentro do carro, e ela não podia ir embora. O jovem se aproximou, e a cada passo que ele dava, Iris desejava que a terra se abrisse para que ela pudesse se esconder. Nunca se sentira daquela forma antes. Talvez porque ele fosse bonito demais. Ela se sentia um patinho feio entre aqueles dois lindos irmãos. 

Quando ele chegou perto, Mercedes disse, abrindo um sorriso:

-Caio, esta é nossa nova vizinha, a Iris. Ela e a mãe estão morando na casa de Bárbara. Não na casa, mas na edícula.

O rapaz sorriu, e Iris sentiu que suas pernas ficavam moles:

-Prazer, Iris. Gostando da nova casa?

Ela se perguntou se ele não estaria sendo irônico, mas ao olhar para ele, viu em seus olhos apenas gentileza e curiosidade amigável. Ele só estava tentando ser educado e gentil. Ela respondeu:

-“Nova casa” não é bem a descrição certa... mas no momento, é o que temos. Eu... preciso ir agora. Minha mãe está me esperando. 

Mercedes estava de pé ao lado do irmão, e Iris teve a impressão de que ela ia dizer alguma coisa, mas antes que isso acontecesse, deu partida no jipe e saiu dirigindo rapidamente. Mais rápido do que seria necessário. Pelo espelho retrovisor, ela pode ver os dois ainda de pé, olhando o carro partir. Alguns metros adiante, ela encostou o jipe e tentou se acalmar: sua respiração estava ofegante. Ela não conseguia entender o que estava acontecendo com ela. Só sabia que aqueles dois seres encantadores – que mais pareciam coisas do outro mundo, de tão bonitos – tinham-na deixado daquele jeito.

(continua...)








domingo, 15 de janeiro de 2017

O ELEFANTE BRANCO – PARTE I








Quando o táxi parou em frente ao endereço que Alana tinha entregado ao motorista, ela respirou fundo ao olhar pela janela, antes de sair. O que ela viu, foi uma casa de dois andares que algum dia fora branca, e que agora estava velha e decrépita, ao fundo de um terreno coberto de mato que chegava à altura da cintura de uma pessoa alta. Uma das venezianas da janela da frente estava dependurada, como um olho defeituoso em um rosto. 

Entretanto, o terreno era bem grande, e se bem cuidado, poderia transformar-se em um belo jardim. Alana não se atreveu a olhar para o rosto de Iris, pois ouvira a profunda bufada de insatisfação que a filha dera antes mesmo de ambas saírem do taxi e do motorista abrir o porta-malas, retirando suas bagagens. E logo que foi pago, o homenzinho se foi sem se despedir ou agradecer, uma guimba de cigarro apagada no canto da boca, deixando mãe e filha paradas na calçada em frente à casa.

Iris olhou em volta: estavam em uma estrada deserta, de paralelepípedos, ornada de árvores altas em ambos os lados. Não havia outras casas por perto, pelo menos, até aonde a vista pudesse alcançar. Alana tentava conter seu desapontamento, assumindo um ar falso de animação, escondendo sua decepção e seu medo por trás de um sorriso forçado. Ela pegou uma das malas, e passando um braço em volta do ombro da filha, disse, o tom de voz tentando soar animado:

-Chegamos, finalmente! Após quase cinco horas de voo, acho que valeu a pena! Vamos entrar.

Mas Iris permaneceu com os pés grudados na calçada, olhando para dentro, onde avistou um homem velho, de pé, olhando para elas com cara de poucos amigos. Alana seguiu seu olhar, e após pensar por alguns segundos, tranquilizou-a:
-Deve ser Rubens, o caseiro. O advogado tinha me falado sobre ele. Mora aqui há muitos anos. 

Dizendo aquilo, ela puxou a filha pela mão, e ambas chegaram até o portão, carregando suas malas. O homem velho coçou a longa barba grisalha, e aproximou-se, olhando as duas dos pés às cabeças. 

-O que querem?

Apesar do tom nada amigável, Alana tentou sorrir:

-Sou Alana. Esta é minha filha Iris. Eu... eu sou, ou melhor, era, sobrinha da falecida Bárbara.

Ele não se moveu, e passou a olhar para Iris com o mesmo olhar desconfiado. Finalmente, após segundos tensos, como se estivesse deliberando sobre o que fazer, ele puxou um grande molho de chaves do bolso da calça e abriu o portão. Alana ia dizer que ela tinha seu próprio molho de chaves, mas calou-se. Achou que ele as ajudaria com as malas, mas ele virou-se de costas e começou a andar em direção à casa, seguido de perto pelas duas mulheres apreensivas, cada uma carregando duas malas pesadas. Alana tentou soar amigável:

-Você deve ser Rubens, o caseiro.

Ele não respondeu, até que chegaram à porta, atravessando o matagal que deixava Iris insegura – ela morria de medo de aranhas. Ao chegarem à porta, o homem velho virou-se para elas, e Alana percebeu que ele tinha uma longa e profunda cicatriz na face esquerda, que começava na testa e passava por dentro da barba espessa, indo morrer bem no meio do pescoço. Sua aparência era séria, sisuda e muito, mas muito hostil. 

-Então vocês herdaram a casa da velha... bem, entrem e façam bom uso dela!
Aquelas palavras desrespeitosas irritaram as duas, que se entreolharam boquiabertas; Alana reagiu:

-Você não vai abrir a porta para nós? Não vai nos ajudar com as malas?

A contragosto, e após um longo suspiro de impaciência, ele se voltou, e sem olhar para elas, pegou as chaves novamente, escolhendo uma delas, e abrindo a porta, que rangeu alto após ele empurrá-la. 

A casa estava às escuras, pois as janelas estavam cerradas. Alana entrou, aspirando o cheiro de mofo e de coisas velhas. Tateou a parede em busca do interruptor, e ao acha-lo e fazê-lo clicar duas ou três vezes, compreendeu que não havia eletricidade. Rubens entrou atrás delas, colocando as malas no chão. Iris andou até uma das janelas, e após soca-la um pouco, conseguiu abri-la. Virando-se para o caseiro, Iris ironizou:

-Se nós pudermos ajudar o senhor em alguma coisa, é só falar. 

Ele ergueu as sobrancelhas, e cruzou os braços, concordando com a cabeça ao pegar a ironia de Iris no ar. Alana abriu mais uma janela, e depois bateu as palmas das mãos, a fim de limpá-las da poeira:

-Minha tia faleceu há apenas um mês e meio, e a casa já está neste estado?
Rubens concordou, resmungando:

-Ela sempre esteve assim. 

Desolada, Alana olhou em volta; o que viu foi ainda mais desanimador: havia um carpete velho, sujo e rasgado bem no meio da sala, que era enorme e quase sem mobílias. As únicas peças de mobília disponíveis – uma mesa com seis cadeiras desbotadas, um sofá cujo estofamento saía pelas almofadas e duas poltronas em estado lastimável – provavelmente não poderiam ser utilizadas. O lustre de cristal que pendia do teto de pé direito alto, juntamente com camadas de tinta branca e azul, estava opaco e faltando peças. Tudo estava coberto por grossas camadas de poeira, folhas secas e muita sujeira. 

Iris encaminhou-se para os fundos da casa, onde encontrou uma cozinha grande, de azulejos em estilo português, muito sujos. A pia antiga era profunda e enorme, e a torneira estava enferrujada. Os armários sem portas deixavam-na ver algumas louças e copos empilhados, que pareciam ter vivido seus tempos de glória, mas que agora encontravam-se imundas. O piso, de cimento queimado, parecia estar em bom estado – pelo menos, alguma coisa estava inteira naquela casa, ela pensou – mas a porta que provavelmente dava para o quintal dos fundos, estava empenada. 

Cortinas pendiam das grandes janelas, as bainhas rasgadas, os tecidos desbotados e poeirentos. As escadas de madeira, cujo corrimão trabalhado e muito bonito parecia estar inteiro, embora cheio de teias de aranha que deram arrepios em Iris, eram acarpetadas por uma coisa suja, vermelha e puída, e as mulheres não estavam nem um pouco ansiosas para conhecerem o andar de cima. 
Alana olhou para trás, e viu que Rubens ainda estava plantado junto à porta da casa. Perguntou-lhe:

-A eletricidade está desligada, ou a lâmpada queimou?

-A luz foi cortada há alguns anos. Sabe como é, medidas de economia. Mas os impostos foram pagos.

-Eu sei, o advogado de minha tia disse que estão pagos por cinco anos. Bem, amanhã terei que ir até a cidade para pagar a conta de luz... você tem um carro?

Ele concordou com a cabeça.

-Sim, há um jipe na casa, que pertencia ao seu tio. Não sei se vai funcionar...

Alana estava ficando aborrecida com a falta de cooperação vinda de Rubens, mas conteve-se; ao invés de perder a paciência, disse:

-Você poderia checar, por favor? Entende alguma coisa de mecânica?

Ele resmungou:

-Não; eu sou caseiro.

Alana finalmente perdeu a paciência:

-Escute aqui, Rubens, não sei por que minha tia manteve você aqui cuidando dela todos esses anos, pois pelo que eu estou vendo, você não cuidou de nada. Quem sabe, dependendo de seu comportamento, você não possa se transformar rapidamente em um ex-caseiro? Eu não sou tão paciente quanto ela.

Ele ficou olhando para Alana durante algum tempo, antes de dar uma gargalhada zombeteira que fez a mulher corar até a raiz dos cabelos: 

-Sua tia estava cega, “senhora!” Não enxergava um palmo diante do nariz. E foi por isso que eu continuei trabalhando aqui durante todos esses anos. E não se preocupe, agora que ela se foi, eu vou me aposentar e dar o fora dessa casa maldita o mais cedo possível. Talvez amanhã mesmo. E sinto muito dizer-lhes isso, mas não vai ser nada fácil para as madames encontrarem alguém por aqui que aceite o meu lugar. Essa casa é amaldiçoada. As pessoas da vila nunca vem aqui. 

Iris teve um calafrio:

-Mãe, nós vamos morar aqui sozinhas? Não podemos simplesmente voltar?
Impaciente, Alana disse, ironizando a fim de controlar a impaciência:

-É claro, Iris. Esta é a única casa que nós temos no momento! A não ser que você tenha alguma ideia melhor.

Iris começou a chorar, e correu para a varanda. Rubens, pela primeira vez, pareceu ter algum sentimento humano, ao dizer a Alana, mostrando um mínimo de arrependimento pela sua grosseria:

-Por que não dormem na edícula? Pelo menos, está limpa. Foi lá que sua tia viveu seus últimos anos. 

-Há uma edícula?

-Sim. No quintal dos fundos. Não é visível da rua. O único problema, é que eu ocupo o quarto junto à cozinha.

-Não tem problema. Pode continuar lá se quiser.

Rubens ajudou-as a levar as malas para a edícula.

 A casa era velha, mas estava limpa, inteira e bem cuidada. Tinha dois quartos pequenos, uma saleta e uma cozinha grande. Alana concluiu que as casas antigas tinham cozinhas grandes. O banheiro era antigo, mas tinha uma banheira limpa e com água quente, e também havia eletricidade. Rubens explicou que Bárbara, por questão de economia, mudara-se para a edícula após a morte do marido.

-E como foi que meu tio morreu?

Rubens, que mostrava-se um pouco mais acessível, respondeu;

-Ele foi assassinado. Apareceu cheio de balas no sopé daquela escadaria, dentro de casa. Dizem que foram credores... seu tio estava envolvido em algumas atividades... digamos... nada ortodoxas.

Alana teve um arrepio.

Iris observou:

-Você fala bonito para um caseiro!

Rubens encarou-a:

-Sua tia me obrigava a ler alguns livros para ela em voz alta, e quando havia palavras que eu não compreendia, ela me explicava os significados. Bem, precisam de mim para mais alguma coisa?

E quando elas disseram que não, Rubens foi para o seu quarto, que ficava junto à cozinha da edícula. Quando ele fechou a porta, Iris murmurou:

-Eu não gosto dele, mãe. Não gosto de nada nessa casa, ou nesse lugar.

-Nem eu, filha, mas isso não ajuda. Felizmente, você terminou a escola, e poderá tirar um ano sabático até as coisas se ajeitarem. 

Durante a noite, com as luzes apagadas, não se via absolutamente nada do lado de fora. Tudo era um breu imenso e tenebroso. Apenas a luz do luar mostrava os contornos do casarão e dos galhos secos das árvores. Alana pensou, ao deitar-se para dormir, que teriam que vender a casa rápido, mas não via como encontrar um comprador para uma casa naquele estado lastimável. Poderiam começar com uma boa limpeza. Poderiam começar varrendo, espanando e tirando as teias de aranha, e livrando-se daqueles móveis quebrados. Talvez pudessem dar uma pintura de limpeza para melhorar a aparência.

Teriam que começar de alguma forma.

Alana deu boa noite à filha e foi para o seu próprio quarto – um cômodo pequeno e feio, onde a pintura estava desbotada e as cobertas, sujas e puídas. Antes de deitar-se, ela trocou os lençóis e varreu o cômodo a procura de insetos peçonhentos que pudessem estar escondidos por ali.  Deixou que a filha ficasse com o quarto maior, que pertencera à tia Bárbara, e que ainda estava limpo. 
Alana deitou-se na cama estranha e no quarto estranho, sentindo-se vazia de perspectivas. Tentava esconder seu medo de Iris, mas nem sempre era fácil, pois a menina era muito sensível.  Desde que o pai desaparecera sem nunca mais dar notícias, Iris tornou-se uma menina calada e triste. Elas sempre tinham esperanças de que a polícia traria alguma notícia, mas meses depois do desaparecimento de Mário, Alana achou que era hora de sacudir a poeira e cuidar da vida. 

Alana fechou os olhos, tentando fingir que estava tudo bem.  Antes de dormir, ela ainda viu o rosto sorridente de Mário, e escutou sua voz, dizendo: “Volto já.” Era assim todas as noites, antes de adormecer.

Do seu pequeno quarto, Iris pensou nos amigos que deixara em sua cidade. Pensou na escola, na universidade que talvez nunca conseguisse cursar. Pensou nos seus sonhos abortados. Pensou no pai, e no que elas podiam ter feito de errado para que ele sumisse daquela forma. Iris pensou na vida que tinha antes, perfeita e feliz, e na que tinha então.  E chorou baixinho até dormir.



(continua...)






A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...