segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O ELEFANTE BRANCO - PARTE IV





Rubens começou a trabalhar na casa novamente, pois Alana ameaçou  mandá-lo embora, e daquela vez, a coisa foi realmente séria. A contragosto, ele assumiu o lugar de Iris com os pincéis e lixas de parede, e o trabalho começou a andar mais rápido. Também removeu as temíveis teias de aranha, o que fez com que Iris se sentisse bem mais confortável. 

Porém, como era de se esperar, a mudança de Rubens durou apenas uma semana.
Um dia, elas acordaram e ele não estava lá. Iris e Alana conversavam, enquanto lixavam as paredes da cozinha:

-Mãe, eu adoraria saber aonde ele vai quando some.

Alana não respondeu imediatamente, mas depois, disse:

-Ele desce o penhasco. 

-Como assim? Você o viu?

-Sim. Eu o segui. Ele desceu o penhasco, e depois eu o vi caminhando na praia. Mas ele desapareceu na curva. 

-E o que tem lá?

-Não sei... mas confesso que também fiquei curiosa.
Naquele momento, as duas ouviram o ruído de passos sobre o novo cascalho recém-assentado na entrada da casa, se aproximando e parando junto à porta. Iris e Alana largaram os pincéis e foram ver quem estava chegando.

O coração de Iris deu um pulo ao ver os dois irmãos – Caio e Mercedes – do lado de fora, sorrindo para ela. Imediatamente, toda a sua espontaneidade sumiu, e ela se sentiu diminuir cada vez mais. Era a sensação que tinha quando estava perto de Mercedes. 

A moça aproximou-se, e como se conhecesse Iris há muito tempo, abraçou-a e beijou-a no rosto duas vezes. Quando Caio fez a mesma coisa, Iris notou que ambos tinham o mesmo cheiro; era mais do que apenas duas pessoas que apenas usavam o mesmo perfume: eles tinham a mesma química no corpo. Iris sentiu que poderia vir a amar ou odiar aquelas pessoas, e aquilo foi estranho e forte. 
Alana sorriu:

-Então vocês são nossos vizinhos! Minha filha falou muito bem de vocês!

Os dois irmãos se entreolharam, e Iris, envergonhada, logo notou que eles não compraram a história de Alana, mas sorriram assim mesmo. Caio estendeu a mão polidamente, com simpatia, apresentando-se:

-Meu nome é Caio, e esta é minha irmã Mercedes. Muito prazer.

-Prazer! Fico feliz em conhecer vocês. 

Mercedes deu à Alana o mesmo tratamento que dera a Iris – um beijo barulhento no rosto, e Alana logo gostou da moça. 

-Não querem entrar e dar uma olhada na casa? Estamos reformando!

Caio disse:

-Na verdade, sim. Passei para ver como as coisas estão indo, e também para oferecer ajuda, se for preciso. 

-Ora, muito obrigada, mas... nós não podemos pagar.

Iris sentiu o rosto queimar; achou que a mãe não precisava ficar ando atestado de pobreza a estranhos daquela forma, embora o fato fosse óbvio: por que elas morariam naquele lugar, se tivessem um lugar melhor onde viver?

Caio disse:

-Não se preocupe. Venho quando puder, camaradagem entre vizinhos. Jamais cobraria alguma coisa de vocês. 

Alana ficou comovida, e agradecida ao mesmo tempo:

-Muito obrigada! Você não sabe o quanto é reconfortante ter novamente pessoas que se oferecem para ajudar, depois de tanto tempo...

Iris não deixou que ela continuasse, pois percebeu que  a mãe ia começar a fazer confissões sobre a vida particular delas; Alana era assim: aberta demais. Mudou 
de assunto;

-Vamos lá dentro? Acho que vai começar  a chover!

Espontaneamente, Mercedes abraçou-a pela cintura, e as duas foram entrando na frente, enquanto Alana e Caio caminhavam logo atrás. Iris sentia a pressão suave do braço de Mercedes em sua cintura, e os dedos que descansavam na altura de seus rins, pressionando-a suavemente. Aquilo era diferente e estranho, pois não era tocada por alguém há muito tempo. Não gostava de ser tocada. Sentia-se muito desconfortável quando alguém se aproximava demais ao conversar com ela. Mas com Mercedes, alguma coisa diferente acontecia; ela sentia o calor da nova amiga como algo positivo, algo bom. De repente, quis ficar a sós com ela, e levou-a para o quarto misterioso lá em cima. Caio e Alana ficaram conversando no andar inferior. 

Mercedes olhou em volta, dizendo:

-Isso me dá arrepios! Tudo negro... parece ...  sinistro!

-Ou talvez apenas triste. Acho que esse lugar guarda alguma história bem triste... você e Caio sempre moraram aqui. Sabem de alguma coisa sobre a casa?

Mercedes coçou a cabeça, levando a mão ao coque e soltando os cabelos, que caíram em suas costas como cascatas macias e escuras, o que fez com que Iris entreabrisse os lábios de tanta admiração. Ela era bonita, muito bonita, e parecia não perceber ou não se importar com isso, o que a deixava ainda mais bonita. 

-Só um pouco. Esse lugar é meio misterioso, e sua tia Bárbara era um tanto reclusa. E muito velha também. Dizem que ela morreu com quase noventa anos! Sei apenas o que eu escuto o pessoal contar desde que éramos crianças.
Mercedes sentou-se na beirada na cama, e Iris sentou-se ao lado dela. 

-Conte-me um pouco, por favor.

-Mercedes olhou-a nos olhos, e riu:

-Por que? Vai escrever um livro sobre a casa?

Iris contornou a ironia que viera à ponta da língua:

-Digamos que sim.

Mercedes riu novamente, concordando com a cabeça:

-Está bem. Bem... vamos começar pelo começo então. Mas muito do que vou lhe contar não é comprovável. São especulações, histórias antigas... e você sabe que quem conta uma história sempre acrescenta alguma coisa. 

-Meu pai dizia sempre que quem conta um conto, aumenta um ponto.
Mercedes notou a melancolia na voz dela ao falar do pai:

-Seu pai dizia?... ele... morreu?

Iris olhou para o chão, cruzando as mãos entre os joelhos. Fazia aquilo quando ficava nervosa. Ela sentiu o calor da mão de Mercedes sobre a dela:

-Desculpe... não tenho o direito de perguntar. Me perdoe, eu... não queria despertar lembranças tristes. Um dia você me conta, se quiser.

Íris agradeceu, e de repente, virou a palma da mão para cima, segurando a dela. Foi um toque rápido, mas ela pôde sentir como se existissem terminações elétricas entre suas mãos. Mercedes recolheu a própria mão, colocando-a sobre o joelho. Ambas pareciam um pouco desconfortáveis com o silêncio que se formou. Mercedes afastou os cabelos de Iris, e aproximando o rosto do dela, beijou-a novamente na face, mas daquela vez, demorando-se um pouco mais. Íris sentiu uma ternura enorme, como jamais sentira antes, e lembrou-se dos tempos em que, ainda criança, pedia aos pais que lhe dessem uma irmãzinha. Ela tinha que dizer alguma coisa antes que começasse a chorar, e então ela disse:

-Não vai me contar? A história...

-Claro. Sua tia não foi sempre cega; ela perdeu a visão ao rolar as escadas. 
Depois de uma surra que ela levou do marido. 

Íris sentiu o coração pular. Mercedes continuou:

-Ela estava na casa dos trinta quando aconteceu. Era jovem e bonita. O marido transformou-se em um monstro depois que eles perderam o filho em um acidente. O menino estava brincando no penhasco, e caiu lá embaixo. Minha mãe era bem criança ainda, mas ela se lembra. Ninguém esquece uma coisa assim, eu acho.

Enquanto Mercedes falava, Iris lembrava-se da história que tinha visto durante o sono, no dia em que se sentara na poltrona vermelha daquele mesmo quarto. Era como se as cenas que Mercedes narrava aparecessem para ela como um filme. 

-Dizem que ele era um homem bom, e que eles eram felizes antes; mas depois da morte do menino, ele começou a beber muito, e a jogar. Envolveu-se com gangsters em um cassino que fica numa cidade vizinha. Dizem que perdeu toda a fortuna da família no jogo. Só sobrou esta casa. 

-E como ele morreu?

-Cravejado de lindas balas calibre 45. Ele bem que mereceu. Até hoje, ninguém sabe quem o matou, mas há suspeitos. Sua tia e ele tinham por volta de cinquenta anos quando aconteceu. Depois disso... bem... ela passou a viver aqui sozinha.

-Ou melhor, com Rubens.

-É. O caseiro. Ninguém mais vinha aqui, ela não recebia ninguém. E ele era um cão de guarda eficiente.

De repente, um pensamento veio à cabeça de Iris:

-Você acha que... os dois...

Mercedes concordou:

-Dizem que sim. Dizem que ele e sua tia eram amantes há muitos anos, e que ele cuidava dela com muito mais que apenas dedicação servil. 

-Então... Rubens deve ser muito velho! Se minha tinha morreu aos noventa e tantos anos.

-Não. Ele é pelo menos quinze anos mais jovem do que ela.

-Mesmo assim, apaixonou-se por uma mulher cega, manca e amarga?

Mercedes pousou nela um par de olhos curiosos, encimados por sobrancelhas arqueadas de espanto:

-Como você sabia que ela era manca? Eu não contei nada sobre isso.

Iris riu, e achou melhor não contar a ela sobre o sonho (ou visão) que tivera. Pelo menos, ainda não. Precisava saber o que sentia por ela, no que aquele relacionamento se transformaria. Amor ou ódio?

-Sim, eu sei... Rubens nos disse. Mas ele nunca contou nada mais sobre ela. E mamãe nunca se importou em perguntar, então... ela e a tia não se conheciam, na verdade. 

Mercedes concordou, mas manteve os dois olhos verdes pregados no rosto de Iris, atentos a qualquer mudança de expressão. De alguma forma, Iris sentiu que ela sabia que ela tinha mentido, mas que achava melhor fingir que acreditava. 

-Respondendo a sua pergunta – sobre como um homem poderia apaixonar-se por uma mulher cega, manca e amarga – acho que essas coisas não tem explicação. A gente simplesmente sabe que vai amar alguém, assim que deita os olhos sobre a pessoa. 

Íris sentiu o coração dar um pulo. Para tentar escapar à tensão daquele momento e daquelas palavras, ela se levantou da cama, e tentou soar animada:

-Vamos lá para baixo? Preciso ter certeza de que minha mãe não está alugando seu irmão para contar a ele a miserável história de nossas vidas! Ela pode ser bem chata quando quer.

Mercedes ergueu-se, olhando para ela com a mesma intensidade:

-Sua mãe não é chata. E ela é uma linda mulher. 

Iris encarou-a por alguns minutos e concordou com a cabeça antes de virar-se e começar a sair para o corredor, tendo Mercedes bem atrás dela. 
Ao chegarem lá em baixo, depararam com os dois conversando e apontando para as paredes. Ao ver a filha, Alana explicou:

-Veja, Iris! Caio está me dizendo que, originalmente, havia uma pintura belíssima nesta parede. E que ele seria capaz de restaurá-la. Assim, poderíamos elevar o valor da casa!

-É verdade – disse Caio. – Li em um livro sobre as casas antigas aqui da região. Há muitas nesse estilo. 

-Mas... mesmo depois de termos pintado por cima das outras tintas que alguém pintou por cima? – perguntou Iris.

Caio explicou:

-Mesmo assim! Restauradores podem fazer esse tipo de trabalho, e eu... bem, eu sou um! Pode levar um pouco mais de tempo, mas ficará muito bom, e eu poderei exercitar minha arte, que anda parada desde que assumi a fazenda e o haras. 

Alana arregalou os olhos:

-Vocês tem um haras e uma fazenda? Que incrível! 

Mercedes disse:

-Sim! Nossos pais se aposentaram, compraram um barco e foram viajar pelo mundo. Não voltam tão cedo, e disseram que nós teríamos que trabalhar agora, para variar. 

Íris sentiu imediatamente o contraste entre as vidas daqueles irmãos e as vidas dela e de sua mãe. Eram ricos. Podiam ir aonde quisessem, podiam comprar o que desejassem, e no entanto, estavam ali, naquela casa miserável caindo aos pedaços conversando com duas fracassadas. Por que? Ao mesmo tempo, ao mencionar a viagem dos pais, Iris também notou uma certa tristeza no tom de voz de mercedes, que por instantes, também fez com que uma sombra escurecesse os olhos da bela menina. Por que alguém tão bonita, jovem e rica, que tinha tudo para ser feliz, pareceu-lhe tão triste de repente? E ela, que tinha todas as razões para sentir-se miserável, estava tentando sobreviver, passar por cima de acontecimentos tão terríveis...

Incomodada com os próprios pensamentos, pensou se aquela amargura que sentia não seria inveja. Enquanto pensava, notou o olhar atento de Mercedes sobre cada movimento do seu rosto e corpo. Sentiu-se envergonhada, achando que ela percebera seus pensamentos. Quando Mercedes falou, Iris teve ainda mais certeza sobre aquilo:

-Sabe, eu e meu irmão ficamos muito sozinhos depois que nossos pais viajaram. 

-Alana perguntou:

-Não tem amigos?

-Na verdade, não... ninguém quer ficar amigo dos dois “riquinhos metidos à besta.” É assim que a maioria das poucas pessoas mais jovens que restaram nessa cidade nos chama, sabem... tenho uma ou duas amigas, mas elas são tão ricas e metidas à besta quanto eu, então... não tem graça!

Todos riram. Alana olhou para Caio, e perguntou:

-Caio... quantos anos vocês tem?

Ele respondeu:

-Tenho vinte e seis, e minha irmã, dezenove. 

-Minha Iris tem dezoito. Quanto a mim... bem, não interessa. Mas achei muito bom que vocês tenham ficado amigos de Iris! 

Caio ficou sério, e respondeu:

-Só dela? E de você, não?

Alana riu:

-Claro que sim! Mas acho que vocês têm muito mais coisas em comum com ela, só isso...

Mercedes brincou:

-Ora, você fala como se tivesse cem anos! 

-Quase metade disso... mas vamos esquecer esta parte! Caio, quando começamos? Isso é, não quero atrapalhar seu trabalho!

-Amanhã mesmo. Trarei minhas tintas. Contratarei um capataz  para a fazenda, e posso administrar o haras na parte da manhã. 

Alana bateu palmas!

-Oh, que ótimo! Muito obrigada! 

-Eu é quem devo agradecer, Alana. Posso chama-la assim? Preciso exercitar minhas habilidades de restaurador. Será um enorme prazer ajudá-las. 

Iris sentiu novamente o rosto queimar quando Caio a penetrou com um par de olhos verdes quentes e doces. O olhar dele derramou-se sobre ela como lava quente – pelo menos, foi assim que ela sentiu o olhar corriqueiro e amigável que ele dirigiu a ela. Ao se despedirem, Mercedes novamente beijou-a no rosto, abraçando-a brevemente, e depois, Caio fez o mesmo. Ela fechou os olhos, e sentiu o toque dos lábios dele, pensando que, de olhos fechados, pareciam a mesma pessoa. 

Bem mais tarde, quando foi dormir, Iris revirou-se na cama durante muito tempo, pensando nos dois. 




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