segunda-feira, 22 de junho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE III





A PRAIA DOS SONHOS – PARTE III

Abrir os olhos após dormir quase doze horas seguidas pode deixar as pessoas um pouco confusas. E foi exatamente assim que Anita se sentiu ao abrir os olhos e deparar com as paredes caiadas do quarto simples, as cortinas rendadas que balançavam com a brisa do mar e o gosto rançoso da cerveja da última noite ainda entre os dentes. Olhou para o lado: estava só. Com certeza, Fernando já tinha saído e estava na praia, estirado ao sol feito um lagarto. Ela levantou-se e ficou deslumbrada com a vista da janela: lá embaixo, ela via um mar imenso e verde, areias tão brancas que faziam doer os olhos e um azul dominante. Três faixas de cor: azul por cima, verde-esmeralda no meio e branco embaixo. E dois pontinhos de cor na areia: um menino estava sentado ao lado de seu marido. Ela apertou os olhos para ver melhor. Depois, bocejou e saiu. No corredor, sentiu cheiro de café. Ao chegar à recepção, encontrou Leo preparando uma bandeja de café da manhã: café, leite, pão com manteiga, um mamão e um copinho de suco de laranja. Nada mais. Nada parecido com o café da manhã farto e luxuoso do hotel, mas ela adorou o carinho da flor sobre a bandeja quando Leo a colocou na mesinha e convidou-a a sentar-se. Enquanto tomava seu café, Anita foi logo perguntando:

-Quem é o menino na praia? Seu filho?

Ele riu:

-Não, é meu irmão mais novo. O nome dele é Jorge. Jorginho.
-Ah, sim... e vocês moram aqui sozinhos, Leo?

Ela notou que ele baixou os olhos rapidamente, e uma ligeira sombra escureceu seu sorriso, mas ele logo a mandou embora:

-Não, moramos com nossos pais, mas eles estão viajando no momento, sabe, para comprar algumas coisas para a pousada. Estamos expandindo. Aliás... tive que colocá-los na minha suíte máster. É um pouquinho mais caro do que tínhamos combinado, mas é que a outra está ocupada, e a terceira está sendo pintada... mas dá direito ao café da manhã. Está bom?

Ela concordou com a cabeça, enquanto engolia um pedaço de mamão:

-Está ótimo. 

Anita lembrou-se de que quando tinham chegado, na noite anterior, havia uma plaquinha pintada à mão na outra cabana, onde se lia: “suíte máster.” Ela podia dizer que tinha certeza absoluta que a outra cabana estava desocupada... Mas como a tal plaquinha tinha ido parar na porta do seu quarto? 

Afinal, qual era a verdadeira ‘suíte máster?’  

-Eu pensei que a outra cabana estivesse vazia. Estava escura e silenciosa quando chegamos.

Ele coçou o queixo, dizendo:

-Ah, eles dormem e acordam cedo. Estavam dormindo quando chegamos, e saíram antes de vocês acordarem. Às vezes, passam dias sem aparecer. Vão acampar por aí. São um casal de americanos, acho. A gente se comunica quase que por gestos, eles falam pouco português e eu não falo quase nenhum inglês.

Ela podia jurar que ele estava mentindo, tal o excesso de detalhes, a fala rápida e os olhos que não encontravam os seus... mas Anita resolveu deixar aqueles detalhes de lado, levando em conta apenas a simpatia de seu anfitrião,  e terminando o café da manhã, foi até a praia, onde encontrou o marido e o menino. 

Foram apresentados, e Jorginho estendeu uma mão pequena e hesitante em direção a ela. Quando a apertou, Anita percebeu que ele era frágil como um passarinho machucado. Nunca vira tanta tristeza nos olhos de uma criança, apesar do leve sorriso forçado. A mãozinha do menino era fria, apesar do sol, e a pele muito branca, apesar de morarem praticamente na areia de uma linda praia. Ela achou estranho, mas não perguntou nada. Sabia que aqueles olhos escondiam uma história que não seria contada a alguém como ela. Mesmo assim, gostou imediatamente de Jorginho.
-Jorginho estava me dizendo que gosta muito de pescar, Anita. 

Ela riu:

-Bom pra você. Podem ir pescar juntos! Sabe, Jorginho, Fernando vive procurando companhia para suas pescarias. Agora encontrou uma: você.

Jorginho riu, balançando a cabeça afirmativamente, apontando para um barquinho ali perto que estava amarrado em uma estaca, sobre a areia.

-Se meu irmão deixar, podemos ir no barco dele. Tem motor!

Fernando perguntou:

-E você sabe guiar o barco?

Ele levantou-se, limpando a areia da bermuda, e balançando a cabeça afirmativamente mais uma vez.

-Eu sei sim. Meu pai me ensinou.

Naquela hora, uma máscara de tristeza tomou conta do rosto do menino. Anita perguntou:
-Quantos anos você tem?
-Tenho onze.
-E onde estão seus pais, Jorginho?

Fernando olhou para ela sem entender, já que Leo já tinha dito que eles estavam longe, em viagem de compras para a pousada. Já ia interferir, quando ela olhou para ele e ele imediatamente compreendeu a mensagem: “Deixe o menino responder!”

Mas Jorginho encolheu os ombros, e nada disse. Afastou-se caminhando sozinho pela praia, deixando o casal sozinho. Anita sentou-se ao lado do marido, olhando o mar. Fernando perguntou:

-O que foi aquilo?

-Ora, vai me dizer que você não percebeu que Leo mentiu sobre os pais, assim como mentiu sobre a tal “suíte máster?”  Não existe suíte máster nenhuma, ele só colocou a plaquinha na porta para poder cobrar mais caro. Assim como também não existem outros hóspedes na pousada, além de nós.

Fernando riu, após um momento de confusão.

-Mas você é perspicaz mesmo, hein, Anita? Mas sinceramente? Eu não me importo de pagar um pouco mais, pois percebi que Leo se esforça para cuidar de tudo, e eles precisam muito do dinheiro. Estive conversando com Jorginho, e ele me disse que às vezes, a polícia vem e toma parte do que eles ganham.

Anita arregalou os olhos:

-Mas como?! E ninguém faz nada? E por que a polícia levaria parte do dinheiro deles?
-Segundo Jorginho, eles não tem licença para funcionar. Mas senti que há mais alguma coisa que ele não quis me contar... é difícil falar com ele, a gente tem que arrancar as palavras se quiser obter alguma resposta.

Eles ficaram em silêncio. Um vento morno começou a soprar, deixando o céu totalmente azul, e Anita sentiu o calor do sol queimando-lhe os ombros nus. Vestiu a saída de praia após espalhar mais um pouco de filtro solar. Quando terminou, começou a espalhar o creme sobre o rosto e as costas do marido. Fernando disse:

-Notou o quanto esse menino é triste?

-Notei sim... o que será que aconteceu?

-Não faço ideia, mas para mim, é alguma coisa relacionada aos pais. Acho que eles estão mortos.

-Por que você acha isso?

-Porque ele evita falar neles, e quando fala e eu pergunto alguma coisa a mais, ou ele se cala ou muda de assunto.

-Estranho... bem, mas cuidemos dos nossos próprios problemas, não é? Afinal, estamos aqui de férias.

Fernando lamentou a frieza de Anita. Ela nunca se interessava por crianças. Mostrava-se entediada quando os sobrinhos dele os visitavam, embora fizesse de tudo para disfarçar. Dizia sempre, quando alguém lhes perguntava por que não tinham filhos: "Crianças são um tédio. Não tenho paciência nem instinto maternal, embora eu as ache muito lindas em filmes,  fotografias e calendários. Não é que eu não goste delas; só não quero cuidar de uma."

Durante muitos anos, Fernando compartilhou daquelas ideias, mas conforme o tempo ia passando, ele sentia um vazio por dentro, às vezes... um vazio que ele tentava fingir que não existia, mas que estava lá. Quando via seus sobrinhos ou os filhos de seus amigos, tornava-se criança novamente, brincando com eles. Sentia-se melancólico quando eles partiam, ao contrário de Anita, que aliviada, arrumava a bagunça deixada na casa, cantarolando.

Ela servia os lanches, e quando eles ficavam para passar a noite, arrumava as camas, mas era só: não gostava de interagir com as crianças, preferindo ficar sozinha no jardim, lendo um livro. Era sempre gentil, e as crianças gostavam dela, pois sentiam-se bem tratadas, mas também entendiam que Anita preferia ser deixada em paz. 

Mas Fernando não sabia que Anita ficara muito impressionada com Jorginho e Leo, e que embora tentasse disfarçar, ela não sabia explicar o porquê daquela pequena brecha que começava a abrir-se em seu coração.


(continua...)




segunda-feira, 8 de junho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE II





Do outro lado da cidade, um casal de turistas tenta aproveitar o calor do sol em uma praia movimentada. Em volta deles, vendedores ambulantes gritam seus pregões, e um alto-falante berra uma música de axé com uma letra irritante. Uma criança passa correndo e gritando no meio das esteiras onde os dois descansam, jogando-lhes areia. Um cão a segue. Uma mulher arma sua barraca bem junto a deles, tapando o sol. Os dois se entreolham enquanto ela começa a espalhar seus pertences na areia: ela começa a armar suas cadeiras de praia, enquanto o marido deposita um enorme isopor sob a barraca. Duas crianças ranhetas começam a brigar. A mulher grita com elas, e uma delas começa a chorar alto.

O casal se entreolha mais uma vez, e sem nada dizer, começam a recolher suas coisas. Hora de voltar para o hotel. Na recepção lotada, precisam esperar dez minutos até que o recepcionista lhes estenda a chave do quarto. Depois, aguardam ainda mais pela sua vez de entrar no elevador cheio. Ao abrirem a porta do quarto, uma lufada de ar gelado quase os congela. A mulher exclama:

-Nossa! Eu já tinha pedido para não ligarem o ar condicionado tão alto desse jeito!

O marido, ao chegar no banheiro, diz:

-E não trocaram as toalhas de novo. Eu pedi hoje de manhã. 

Um carro de som tocando música de má qualidade passa berrando na avenida lá embaixo. A mulher olha as ruas lotadas de carros, vendedores ambulantes e turistas. Os dois tiram as roupas suadas e cheias de areia, e enquanto a banheira enche, sentam-se lado a lado na cama. Mais uma vez, chegam a um acordo silencioso: precisam dar o fora dali, daquelas férias infernais. É Anita, a esposa, quem fala primeiro:

-Vamos alugar um carro, ouvi dizer que existem ainda algumas praias desertas lá para o norte. Quem sabe, encontramos o nosso pedacinho de paraíso para finalmente começarmos a celebrar nossos vinte e cinco anos de casados?

-Você está certa. Vou fazer isso agora mesmo, assim que dormir um pouquinho...
-Agora mesmo ou assim que dormir um pouquinho, Fernando? Eu não vou aguentar ficar aqui mais um dia.

-Vamos tomar um banho juntos primeiro – ele sugere, com olhar malicioso.

Horas depois, os dois estão colocando as malas em um carro alugado e rumando para o norte. Sem destino certo, sem saber onde se hospedarão, ou aonde chegarão. Alguém sugeriu um lugar chamado Praia dos Sonhos, mas disse que ficava muito longe do centro, cerca de três horas de viagem, e que só havia um único hotel ruinzinho e duas pousadas, que deveriam estar com seus poucos quartos alugados no mês de janeiro. Mas garantiram que haveria poucos turistas naquela área, devido à falta de infraestrutura. Anita e Fernando adoraram aquele comentário sobre a falta de infraestrutura, e decidiram partir imediatamente. 

Após dirigir por uma hora, Fernando viu que a estrada asfaltada deu lugar a uma de terra batida, que ficava cada vez mais esburacada e difícil. Teve que parar o carro uma vez para livrar-se de um galho de árvore no meio do caminho, e Anita ficou morrendo de medo, achando que fosse uma tentativa de assalto, mas nem mesmo ladrões andavam por ali. Mato de um lado e de outro. Buracos e solavancos sob um sol infernal... graças a Deus, o carro tinha ar condicionado. Mas de repente, a estrada estreita começa a alargar-se e os dois percebem que o mato começa a rarear, e a paisagem se abre. Eles deparam com um mar verde-esmeralda após uma enorme faixa de areia fina e branca.

Anita e Fernando saem do carro, sentindo o vento morno cheirando a maresia, e ficam por alguns instantes contemplando a beleza da paisagem. A praia deserta e maravilhosamente silenciosa os atrai para um mergulho. Antes de entrar na água, enquanto se despe, Anita olha em volta e de repente tira toda a roupa - inclusive o biquini - antes de jogar-se nas águas verde-esmeralda. Mas o sol já se despedia, e eles sabem que precisam encontrar um lugar para passarem a noite, e assim, entram no carro novamente. Após mais ou menos trinta minutos, Fernando dirige entre um corredor de pequenas casas pintadas com cores suaves, e centão  chega a uma pequena vila.

Percebem um pequeno movimento de pessoas - na maioria, turistas estrangeiros. Saem do carro, e de mãos dadas, caminham entre diferentes sotaques, até chegarem em frente a um aconchegante restaurante cujo telhado é feito de palha. A noite apenas começara, mas atraídos pela música e pela suavidade das luzes dos pequenos lampiões sobre as mesas rústicas, o casal decide entrar para comer alguma coisa. 

Logo são atendidos por um simpático rapaz (Anita logo nota sua pouca idade e a beleza do seu rosto de menino). Ele vai logo se apresentando, enquanto estende um cardápio para o casal:

-Bem-vindos ao nosso restaurante! Meu nome é Leo, e vou servi-los esta noite.

Anita e Fernando se entreolham, e Fernando diz, após olhar o cardápio com Anita durante algum tempo:

-Obrigada, Leo. Acho que vamos pedir duas cervejas por enquanto, e também... uma porção destes bolinhos de peixe... são bons?

Leo sorri, iluminando a noite:

-Bons? são os melhores que vocês já comeram. Mais alguma coisa?

Anita sorri. Fernando sente uma empatia imediata com o rapaz, e acaba se apresentando:

-Não, é só por enquanto. Desculpe, esquecemos de nos apresentar, Leo. Meu nome é Fernando, e esta é Anita, minha esposa.

-Tudo bem com vocês? Estão vindo de onde?

É Anita quem responde:

-Nós estávamos na cidade, mas tem muito movimento por lá. Queríamos um lugar mais tranquilo. Acabamos de chegar.

Os olhos de Leo brilham:

-Então já tem onde ficar?

Fernando respira fundo:

-Na verdade, ainda não... tem algum hotel por aqui?

-Bem, aqui na vila só temos um hotel e uma pousada, mas já estão cheios. Mas eu tenho uma pequena pousada, a meia hora daqui. Ainda tenho um quarto livre. Se quiserem eu digo como chegar lá. Ou então vocês me esperam sair, e eu os levarei até lá. Costumo sair às onze da noite.

Anita sorri:

-Obrigada! Acho que vamos querer sim.

Fernando a olha com censura, pois acabavam de chegar em um local desconhecido e ela já estava aceitando convites de estranhos. Às vezes, ele se irritava com a falta de cuidado da esposa e sua facilidade exagerada em confiar nas pessoas e em fazer amigos. Ele diz:

-Bem, na verdade, Leo, agradecemos sua atenção, mas vamos pensar. 

O sorriso do rapaz apaga-se por um instante, mas mesmo assim, ele concorda com a cabeça, sorri novamente pedindo licença, e vai providenciar o pedido. 

O dono do restaurante, "seu" Manuel, que escutara a conversa toda, aproxima-se da mesa:

-Boa noite. Meu nome é Manoel, e sou o dono do restaurante. Podem confiar em Leo, ele é um rapaz excelente. Mora na cidade há alguns anos, todos o conhecem por aqui. É boa pessoa!

Anita sorri, e ela cutuca a perna de Fernando sob a mesa. Ele ainda tenta argumentar:

-Mas... não tem nenhuma vaga por aqui mesmo, na vila?

-Com certeza não. O hotel é bem pequeno, e a pousada, idem. O lugar que Leo ofereceu é sua única opção. É bem simples, humilde mesmo. Mas tem água limpa, chuveiro, uma boa cama e um teto sobre a cabeça.

Fernando responde dizendo que vai pensar melhor, e "seu" Manuel se afasta. O casal discute em voz baixa, e acabam concordando em ficar na pousada de Leo. 

(continua...)




quarta-feira, 3 de junho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE I







Mais uma vez, Leo levou seu barquinho a motor para o mar. Cortou com ele a oposição das ondas, ouvindo o protesto destas quando batiam com força no casco do barco, jogando-o para cima. Às vezes ele pensava que a madeira não resistiria, mas o barco era antigo e forte. Era o barco de seu pai. O mesmo que ele cuidou com carinho durante todos os anos em que Leo vivia. Gaivotas seguiam-no de longe, gritando sobre sua cabeça e projetando a sombra das asas em seu rosto. Leo olhava para elas, agitando os braços e gritando: “Não tenho nada para vocês, amigas. Vão procurar os barcos dos pescadores.” Mesmo assim, elas o seguiam, como se zelassem por ele.

E quando ele chegava naquela parte além das ondas e via a praia lá longe, desligava o motor. Olhava as quatro casinhas no alto da colina, que tinham vista para o mar verde lá em baixo: a que ele morava com Jorginho, seu irmão mais novo, e as outras três; duas estavam terminadas, e a última ainda não tinha portas, janelas ou qualquer acabamento. Leo sonhava em um dia termina-la, e também às outras que ficaram apenas no território dos sonhos dos pais. O terreno onde seriam construídas, uma ao lado da outra, fora riscado bem fundo com uma concha do mar, mas o vento apagara a maioria daquelas marcas, enchendo-as com as areias do esquecimento. Mas tinha coisas que nem o vento podia apagar.
Leo deitou-se no fundo do barco, e enquanto olhava os raios de sol formando arco-íris entre seus cílios, ficou imaginando que a vida era boa, e que seus pais o esperavam lá na praia, e que Jorginho brincava feliz e inocente com seus carrinhos. Tentou, mais uma vez, fazer o tempo voltar àquela noite do acidente, e fazer com que nada daquilo tivesse acontecido. Já tinha pensado em ir embora; mas ir para onde? Tinha apenas 22 anos de idade e precisava tomar conta de um irmão de onze anos. Não tinha emprego, nem muita instrução; terminara o segundo grau, e passou raspando. Nunca pensou em fazer faculdade, pois em sua mente, seria dono de um grande hotel na Praia dos Sonhos.

Praia dos Sonhos. Melhor seria Praia dos Pesadelos!

O paraíso podia ser um lugar triste. O paraíso podia ser um lugar onde os sonhos morriam cedo, antes de amadurecerem, e onde garotos ficavam sem os pais enquanto ainda precisavam tanto deles. Quando Jorginho falava em ir embora, Leo não queria nem ouvir. Dizia que não queria sair da Praia dos Sonhos, pois o pai e a mãe estavam ali, enterrados naquele pequeno cemitério, e ainda tinha a Tia Cora, que vinha uma vez por semana limpar a casa, lavar e costurar as roupas e cozinhar para eles. Mas ela não podia recebe-los em sua própria casa, pois o marido vivia repetindo que “Aquele tal Leo é um sonhador, nunca será nada de bom e pode ser uma má influência para nossos filhos... e eu não quero responsabilidade com os filhos dos outros; bastam os nossos dois.”  Portanto, contato com os primos, eles não tinham. Nem sabiam direito qual era a aparência deles. Viviam isolados naquelas casinhas, que distavam meia hora de carro da vila. 

Leo levava Jorginho à escola de manhã, buscando-o na hora do almoço. Usava uma velha motocicleta que trocara pelo que sobrara do jipe após o acidente que matara seus pais. Jorginho tinha poucos colegas na escola, pois quase todos riam dele por causa de suas roupas puídas e dos seus pés sempre calçados com sandálias havaianas. Troçavam dos seus cabelos um pouco  longos e repicados, cortados em casa, as raízes castanhas e as pontas alouradas com parafina, como fazem os surfistas. Apesar de morarem junto à praia, Jorginho evitava o sol. Tinha a pele branca e as bochechas pálidas. Se fosse até a praia, colocava camiseta e chapéu, e besuntava o resto do corpo com filtro solar. Não queria que pensassem que ele passava o dia todo na praia e não estudava ou trabalhava, pois ele ajudava o irmão quando tinham hóspedes. Nem mesmo durante as férias, como era o caso, ele gostava de ficar ao sol.

Não havia muitos empregos para jovens como eles naquela cidadezinha. Aliás, não havia muitos empregos para ninguém, e a cidade dormia a maior parte do ano, despertando apenas no verão, quando chegavam os turistas. Leo trabalhava de garçom nas noites de quinta e sexta. Era o único emprego que conseguira por lá, em um restaurante típico da vila que servia frutos do mar. Manoel, o dono do restaurante, tinha sido amigo de seu pai, e dera-lhe aquele emprego apenas para ajudar os meninos, pois não precisava de mais um garçom; não pagava um salário, mas deixava que Leo ficasse com vinte por cento das mesas que servia, e as gorjetas ficavam todas para ele. Recebia pouco, mas era o que ajudava quando o dinheiro da pensão acabava, sempre antes do final do mês. 
Leo às vezes conseguia um hóspede no final de semana, mas as instalações das casinhas não eram nada boas... os lençóis eram velhos e tinham alguns furos que tia Cora remendava. As paredes precisavam de tinta, e a água para o banho era salobra. Também precisava de móveis novos, pois os que tinham eram velhos e gastos. Ele fazia de tudo para acomodar os poucos hóspedes: varria bem o chão, e lavava os lençóis com sabão perfumado e enxaguava com água de anil, para que ficassem bem branquinhos. Colocava flores que ele mesmo colhia sobre as mesinhas, tirava o pó todos os dias, e às vezes, colocava alguns bombons sobre a cama com um cartãozinho escrito “Sejam bem vindos.” Contava sempre a mesma história, que apesar de não ser verdadeira, encantava os turistas: a pousada estava em construção, mas segundo o projeto dos arquitetos e do engenheiro, ainda demoraria um ou dois anos para que tudo ficasse pronto, mas seria um prazer tê-los como hóspedes assim mesmo. E ele faria um preço especial pela “suíte master,”  já que o quarto comum estava em reformas. E ele levava os hóspedes para um pequeno tour no seu terreno junto à praia, mostrando a pilha de tijolos e a pilha de areia, os caibros e as louças. Mantinha o terreno sempre capinado e limpo para que não desse a impressão de que a obra estava abandonada. Quando alguém perguntava pelos seus pais, ele sorria e dizia que os dois estavam viajando, buscando coisas bonitas para colocar no hotel: “Móveis, enfeites, roupas de cama e mesa, você sabe, esse tipo de coisa.”
Se acreditavam nele, eu não sei; mas não havia ninguém que não ficasse encantado pela sua simpatia e alegria. Quando os hóspedes iam embora, Leo distribuía alguns cartões de visita e pedia que eles o recomendassem aos amigos e parentes. 

Naquele final de semana não tinham conseguido nenhum hóspede ainda, mas Leo ainda tinha algum dinheiro da semana anterior, quando um grupo de gringos pousara ali por quatro dias. O fato de não possuírem restaurante ou serviço de quarto também não contribuía para que conseguissem muitos hóspedes. Se alguém sentisse fome no meio da noite, precisava pegar o carro e dirigir meia hora até a vila, ou três horas até a cidade.

Leo economizava o mais que podia, mas às vezes, perdia quase tudo o que ganhava. Quando ia para a cidade, tinha que tomar muito cuidado para não dar de cara com a dupla de policiais, pois quando isso acontecia, eles o surravam e tomavam-lhe o dinheiro. Deixavam apenas um pouco para a comida, dizendo que o garoto menor não tinha culpa de nada, e que só não matavam Leo  por causa de Jorginho. E Leo voltava para casa machucado, tentando sem sucesso esconder os hematomas do irmão. Jamais reagia às surras, pois no fundo, ele achava que as merecia por usar maconha e ser um péssimo exemplo para o irmão mais novo. Mas apesar das tentativas de não deixar que o irmão percebesse seu estado, às vezes as surras eram mais exageradas, e ele chegava com um olho roxo, sangue na camisa, ou cortes pelo corpo ou então mancando, e Jorginho chorava enquanto tentava, com um pedaço de algodão e água boricada, fazer-lhe curativos. Ele sorria, dizendo: “Deixa disso, 
Jorginho, eu estou bem, já disse. Só caí da moto outra vez.”

Mas Jorginho sabia muito bem da verdade, embora não discutisse com o irmão.
Os dois sempre tinham sido muito unidos, e mais ainda após a morte dos pais, há cerca de um ano e meio. Jorginho, que tinha sido sempre uma criança alegre e cheia de vida, tornara-se muito triste. Dava a impressão de que uma sombra estava sempre pairando sobre seu semblante, mesmo nas poucas vezes em que ele sorria. Perder os pais tinha sido muito traumático, assim como descobrir que sua tia Cora, que era também madrinha dele e do irmão, não os levaria para sua casa por causa do marido. Foi um choque muito grande para Jorginho descobrir que ele não tinha mais ninguém adulto no mundo, a não ser Leo, que parecia recusar-se a crescer. Ele tomou para si a silenciosa responsabilidade de cuidar do irmão, e a levava muito à sério.  As pessoas da vila comentavam que o menino mais novo parecia ser mais maduro que o mais velho, que gostava de andar por aí em sua motocicleta nas noites de sábado e domingo, deixando o irmão menor sozinho em casa. Mas aqueles comentários em nada afetavam a amizade dos dois irmãos. Jorginho compreendia que um rapaz na idade de Leo precisava de namoradas. Garotas. Festas. Sabia que ele andava lá para as bandas da parte vermelha da cidade, onde estavam os bares de reputação duvidosa que vendiam drogas, as garotas fáceis, os garotos das motocicletas. Mas sabia que seu irmão era bom. Sabia que ele jamais o abandonaria, só queria se divertir um pouco, e aquela era a única diversão daquele lugar. 

(CONTINUA...)



A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...