quarta-feira, 3 de junho de 2015

A PRAIA DOS SONHOS - PARTE I







Mais uma vez, Leo levou seu barquinho a motor para o mar. Cortou com ele a oposição das ondas, ouvindo o protesto destas quando batiam com força no casco do barco, jogando-o para cima. Às vezes ele pensava que a madeira não resistiria, mas o barco era antigo e forte. Era o barco de seu pai. O mesmo que ele cuidou com carinho durante todos os anos em que Leo vivia. Gaivotas seguiam-no de longe, gritando sobre sua cabeça e projetando a sombra das asas em seu rosto. Leo olhava para elas, agitando os braços e gritando: “Não tenho nada para vocês, amigas. Vão procurar os barcos dos pescadores.” Mesmo assim, elas o seguiam, como se zelassem por ele.

E quando ele chegava naquela parte além das ondas e via a praia lá longe, desligava o motor. Olhava as quatro casinhas no alto da colina, que tinham vista para o mar verde lá em baixo: a que ele morava com Jorginho, seu irmão mais novo, e as outras três; duas estavam terminadas, e a última ainda não tinha portas, janelas ou qualquer acabamento. Leo sonhava em um dia termina-la, e também às outras que ficaram apenas no território dos sonhos dos pais. O terreno onde seriam construídas, uma ao lado da outra, fora riscado bem fundo com uma concha do mar, mas o vento apagara a maioria daquelas marcas, enchendo-as com as areias do esquecimento. Mas tinha coisas que nem o vento podia apagar.
Leo deitou-se no fundo do barco, e enquanto olhava os raios de sol formando arco-íris entre seus cílios, ficou imaginando que a vida era boa, e que seus pais o esperavam lá na praia, e que Jorginho brincava feliz e inocente com seus carrinhos. Tentou, mais uma vez, fazer o tempo voltar àquela noite do acidente, e fazer com que nada daquilo tivesse acontecido. Já tinha pensado em ir embora; mas ir para onde? Tinha apenas 22 anos de idade e precisava tomar conta de um irmão de onze anos. Não tinha emprego, nem muita instrução; terminara o segundo grau, e passou raspando. Nunca pensou em fazer faculdade, pois em sua mente, seria dono de um grande hotel na Praia dos Sonhos.

Praia dos Sonhos. Melhor seria Praia dos Pesadelos!

O paraíso podia ser um lugar triste. O paraíso podia ser um lugar onde os sonhos morriam cedo, antes de amadurecerem, e onde garotos ficavam sem os pais enquanto ainda precisavam tanto deles. Quando Jorginho falava em ir embora, Leo não queria nem ouvir. Dizia que não queria sair da Praia dos Sonhos, pois o pai e a mãe estavam ali, enterrados naquele pequeno cemitério, e ainda tinha a Tia Cora, que vinha uma vez por semana limpar a casa, lavar e costurar as roupas e cozinhar para eles. Mas ela não podia recebe-los em sua própria casa, pois o marido vivia repetindo que “Aquele tal Leo é um sonhador, nunca será nada de bom e pode ser uma má influência para nossos filhos... e eu não quero responsabilidade com os filhos dos outros; bastam os nossos dois.”  Portanto, contato com os primos, eles não tinham. Nem sabiam direito qual era a aparência deles. Viviam isolados naquelas casinhas, que distavam meia hora de carro da vila. 

Leo levava Jorginho à escola de manhã, buscando-o na hora do almoço. Usava uma velha motocicleta que trocara pelo que sobrara do jipe após o acidente que matara seus pais. Jorginho tinha poucos colegas na escola, pois quase todos riam dele por causa de suas roupas puídas e dos seus pés sempre calçados com sandálias havaianas. Troçavam dos seus cabelos um pouco  longos e repicados, cortados em casa, as raízes castanhas e as pontas alouradas com parafina, como fazem os surfistas. Apesar de morarem junto à praia, Jorginho evitava o sol. Tinha a pele branca e as bochechas pálidas. Se fosse até a praia, colocava camiseta e chapéu, e besuntava o resto do corpo com filtro solar. Não queria que pensassem que ele passava o dia todo na praia e não estudava ou trabalhava, pois ele ajudava o irmão quando tinham hóspedes. Nem mesmo durante as férias, como era o caso, ele gostava de ficar ao sol.

Não havia muitos empregos para jovens como eles naquela cidadezinha. Aliás, não havia muitos empregos para ninguém, e a cidade dormia a maior parte do ano, despertando apenas no verão, quando chegavam os turistas. Leo trabalhava de garçom nas noites de quinta e sexta. Era o único emprego que conseguira por lá, em um restaurante típico da vila que servia frutos do mar. Manoel, o dono do restaurante, tinha sido amigo de seu pai, e dera-lhe aquele emprego apenas para ajudar os meninos, pois não precisava de mais um garçom; não pagava um salário, mas deixava que Leo ficasse com vinte por cento das mesas que servia, e as gorjetas ficavam todas para ele. Recebia pouco, mas era o que ajudava quando o dinheiro da pensão acabava, sempre antes do final do mês. 
Leo às vezes conseguia um hóspede no final de semana, mas as instalações das casinhas não eram nada boas... os lençóis eram velhos e tinham alguns furos que tia Cora remendava. As paredes precisavam de tinta, e a água para o banho era salobra. Também precisava de móveis novos, pois os que tinham eram velhos e gastos. Ele fazia de tudo para acomodar os poucos hóspedes: varria bem o chão, e lavava os lençóis com sabão perfumado e enxaguava com água de anil, para que ficassem bem branquinhos. Colocava flores que ele mesmo colhia sobre as mesinhas, tirava o pó todos os dias, e às vezes, colocava alguns bombons sobre a cama com um cartãozinho escrito “Sejam bem vindos.” Contava sempre a mesma história, que apesar de não ser verdadeira, encantava os turistas: a pousada estava em construção, mas segundo o projeto dos arquitetos e do engenheiro, ainda demoraria um ou dois anos para que tudo ficasse pronto, mas seria um prazer tê-los como hóspedes assim mesmo. E ele faria um preço especial pela “suíte master,”  já que o quarto comum estava em reformas. E ele levava os hóspedes para um pequeno tour no seu terreno junto à praia, mostrando a pilha de tijolos e a pilha de areia, os caibros e as louças. Mantinha o terreno sempre capinado e limpo para que não desse a impressão de que a obra estava abandonada. Quando alguém perguntava pelos seus pais, ele sorria e dizia que os dois estavam viajando, buscando coisas bonitas para colocar no hotel: “Móveis, enfeites, roupas de cama e mesa, você sabe, esse tipo de coisa.”
Se acreditavam nele, eu não sei; mas não havia ninguém que não ficasse encantado pela sua simpatia e alegria. Quando os hóspedes iam embora, Leo distribuía alguns cartões de visita e pedia que eles o recomendassem aos amigos e parentes. 

Naquele final de semana não tinham conseguido nenhum hóspede ainda, mas Leo ainda tinha algum dinheiro da semana anterior, quando um grupo de gringos pousara ali por quatro dias. O fato de não possuírem restaurante ou serviço de quarto também não contribuía para que conseguissem muitos hóspedes. Se alguém sentisse fome no meio da noite, precisava pegar o carro e dirigir meia hora até a vila, ou três horas até a cidade.

Leo economizava o mais que podia, mas às vezes, perdia quase tudo o que ganhava. Quando ia para a cidade, tinha que tomar muito cuidado para não dar de cara com a dupla de policiais, pois quando isso acontecia, eles o surravam e tomavam-lhe o dinheiro. Deixavam apenas um pouco para a comida, dizendo que o garoto menor não tinha culpa de nada, e que só não matavam Leo  por causa de Jorginho. E Leo voltava para casa machucado, tentando sem sucesso esconder os hematomas do irmão. Jamais reagia às surras, pois no fundo, ele achava que as merecia por usar maconha e ser um péssimo exemplo para o irmão mais novo. Mas apesar das tentativas de não deixar que o irmão percebesse seu estado, às vezes as surras eram mais exageradas, e ele chegava com um olho roxo, sangue na camisa, ou cortes pelo corpo ou então mancando, e Jorginho chorava enquanto tentava, com um pedaço de algodão e água boricada, fazer-lhe curativos. Ele sorria, dizendo: “Deixa disso, 
Jorginho, eu estou bem, já disse. Só caí da moto outra vez.”

Mas Jorginho sabia muito bem da verdade, embora não discutisse com o irmão.
Os dois sempre tinham sido muito unidos, e mais ainda após a morte dos pais, há cerca de um ano e meio. Jorginho, que tinha sido sempre uma criança alegre e cheia de vida, tornara-se muito triste. Dava a impressão de que uma sombra estava sempre pairando sobre seu semblante, mesmo nas poucas vezes em que ele sorria. Perder os pais tinha sido muito traumático, assim como descobrir que sua tia Cora, que era também madrinha dele e do irmão, não os levaria para sua casa por causa do marido. Foi um choque muito grande para Jorginho descobrir que ele não tinha mais ninguém adulto no mundo, a não ser Leo, que parecia recusar-se a crescer. Ele tomou para si a silenciosa responsabilidade de cuidar do irmão, e a levava muito à sério.  As pessoas da vila comentavam que o menino mais novo parecia ser mais maduro que o mais velho, que gostava de andar por aí em sua motocicleta nas noites de sábado e domingo, deixando o irmão menor sozinho em casa. Mas aqueles comentários em nada afetavam a amizade dos dois irmãos. Jorginho compreendia que um rapaz na idade de Leo precisava de namoradas. Garotas. Festas. Sabia que ele andava lá para as bandas da parte vermelha da cidade, onde estavam os bares de reputação duvidosa que vendiam drogas, as garotas fáceis, os garotos das motocicletas. Mas sabia que seu irmão era bom. Sabia que ele jamais o abandonaria, só queria se divertir um pouco, e aquela era a única diversão daquele lugar. 

(CONTINUA...)



2 comentários:

  1. Uma narrativa que prendeu-me a atenção, Estou sedenta em ler a continuação. Parabéns, Ana!

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  2. É sempre bom ler e apreciar textos como o seu, pois de alguma forma torna-se um aprendizado e é por isso que vim aqui, aprender um pouco mais e me contentar com que tão bem escreve

    Beijos
    Rafael

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