terça-feira, 21 de agosto de 2018

O Lar De Ofélia - parte X






Depois que o corpo foi removido, Bruno se ofereceu para ficar um pouco com Ofélia, mas ela disse que precisava descansar; sentia um enorme cansaço físico e estava emocionalmente esgotada. Os vizinhos das casas abaixo da sua formavam pequenos grupos na calçada junto ao portão, apontando para casa e encolhendo os ombros. Ofélia os viu pela janela, quando Bruno saiu. Viu também quando ele parou e conversou com eles, provavelmente contando-lhes o que tinha acontecido na casa. Aos poucos, todos foram indo embora para suas casas.

À noite, Ofélia cerrou as cortinas e apagou as luzes da casa toda, exceto as do quarto que escolhera para dormir - e que agora ela podia, finalmente, após a morte do pai, chamar de seu quarto. Tomou um banho demorado de banheira, com direito a sais espumantes. 

Pensou nos acontecimentos daquele dia, e duvidou seriamente da sua própria sanidade. De repente, Anselmo e Vivian não passavam de um sonho, uma alucinação causada pela sua imaginação criativa. Passara muito tempo observando aquele quadro... mas... e quanto às coisas estranhas que aconteciam na casa? E quanto aos cômodos que eram magicamente reformados, assim que ela pingava sangue no chão? Quem poderia explicar aquilo? Ofélia achou que deveria buscar ajuda de um exorcista ou de um padre. 

Apesar de não gostar nada de Sarah, a namorada com quem seu pai se encontrava mesmo antes de sua mãe morrer, Ofélia não queria que nada daquilo tivesse acontecido a ela. Vê-la estatelada no piso da sua sala de estar foi uma cena chocante e desagradável, ainda mais quando ela fez questão de, antes de morrer, dizer a Bruno que ela - Ofélia- não era culpada de nada... mas será que não era mesmo? Afinal, fora ela quem trouxera Sarah até à casa! Fora ela quem seguira as ordens de Anselmo quanto a conversar com Sarah no alto das escadas; será que, inconscientemente, ela não tinha mesmo nenhuma ideia do que estava para acontecer? E se não tinha, porque sentira-se tão nervosa? 

Ofélia não era, e jamais seria uma assassina; pelo menos, era o que ela afirmava para si mesma. Mas ela também afirmara a Anselmo que faria tudo o que fosse preciso para que eles pudessem ficar juntos. E se isso incluísse matar pessoas inocentes? Até aonde ela seria capaz de ir para rever seu marido e filha? A saudade que sentia deles chegava a doer, de tão forte. A partir do momento que estivera na presença deles, reconhecera que sua vida não tinha sido nada antes daquele momento, e que toda a sua existência de antes era apenas um tempo no qual ela aguardara por aquele reencontro. 

A água tépida, o perfume suave dos sais de banho e a luz das velas fez com que ela adormecesse. 

Ao abrir os olhos minutos mais tarde, Anselmo estava sentado na beirada da banheira, olhando para ela. Seu semblante estava tenso e fechado, mas desanuviou-se aos poucos quando ela abriu os olhos. Ofélia estendeu a mão molhada e tocou a dele. Com os olhos, perguntou-lhe a razão de tudo aquilo que acontecer na casa naquele dia, e que faria com que ela tivesse que ir a uma delegacia na manhã seguinte, acompanhada de Bruno, para prestar depoimento. Sarah não tinha família, e ela pagaria pelas despesas com o funeral. Era o mínimo que podia fazer.

O cansaço de todo aquele dia morreu diante do leve sorriso de Anselmo. Ele virou a palma de sua mão para cima, segurando a mão dela, e ela sentiu-lhe o calor. De repente, tudo pareceu certo, e ela ficou tranquila, vendo suas preocupações se dissolvendo. 

Anselmo balbuciou:

-Foi preciso, Ofélia. Se quisermos ficar juntos, terá que ser assim.

O coração dela quase parou, falhando uma batida. Ofélia ergueu-se da banheira, pegando a toalha branca felpuda e enrolando-se nela. Anselmo ficou atrás dela, e afastou seus cabelos, cujas pontas úmidas escorriam água. Beijou-lhe o pescoço. E o coração dela quase parou novamente, mas por outro motivo. 

Nos dias que se passaram, Ofélia anunciou que tiraria férias do escritório, o que todos interpretaram como uma necessidade, depois de tudo o que ela estava passando - a morte recente do pai e de Sarah. Sérgio, o sócio de Rony, pensou em questioná-la sobre a casa, pois Rony e ele haviam concordado que ela precisava ser reformada e vendida o mais rapidamente possível, mas achou melhor deixar para uma outra hora; talvez pudessem conversar dali a trinta dias, quando ela disse que voltaria de suas férias. Ofélia pediu a Magda que comprasse passagens para o Chile e fizesse reservas para ela em um hotel agradável por lá, no qual ela e os pais costumavam ir quando tudo ainda estava bem. Ofélia achava melhor que todos pensassem que ela estava viajando. 

Mas ela ficaria na casa, disposta a desvendar todo aquele mistério.

(continua...)




sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE IX









O LAR DE OFÉLIA - PARTE IX


Dois dias depois, Sarah chegava à mansão. Ao escutar a campainha, Ofélia recapitulava a conversa que tinha tido com Anselmo, para que não se esquecesse de nenhum detalhe. Ele lhe dissera que mostrasse a casa para Sarah, e que ficasse algum tempo conversando com ela no topo das escadas que ligavam os dois andares. Ela perguntou a Anselmo o que precisava ser feito, mas com medo da resposta, porém ele assegurou-lhe que ela não precisava fazer nada, a não ser mostrar a casa. 

Ofélia foi receber Sarah. Sentia-se desconfortável. Um pequeno sentimento de medo apertava suas entranhas, mas ela precisava confiar em Anselmo. Ao entrarem na casa, Sarah começou a caminhar, parando diante de obras de arte que achava que podiam valer um bom dinheiro, e dizendo que ficaria com todas elas - ou não haveria acordo. Ofélia concordava com todas as suas condições, ou fingia que concordava. Admirou a casa, achando-a muito bonita, e pensou no quanto poderia lucrar com ela após a venda. 

-Mas vou deixando logo claro que vou procurar por outra firma de corretagem. Não quero ser roubada pela firma de vocês. 

Ofélia ignorou a ofensa. 


-Gostaria de ver o andar superior?

Sarah pegou a bolsa que tinha deixado sobre a poltrona, dizendo:

-Não. Na verdade, o que eu vi já foi o suficiente. Fico com ela. Mas não será tudo. Quero também o apartamento na praia e a casa que pertenceu ao seu pai. E o carro, é claro.

Ofélia sentiu o sangue esquentar, e o rosto ficar vermelho. Engoliu em seco, o que fez com que Sarah a olhasse com ainda mais mordacidade no olhar ao ver que conseguira seu intuito: irritar Ofélia. Mas Ofélia respirou fundo e engoliu a raiva; não podia estragar o plano.

-Insisto para que você veja o andar superior. Afinal, não quero que diga depois que eu a enganei. Quero que veja com seus próprios olhos que a casa está em ótimas condições. 

Após considerar o que a outra dissera, Sarah concordou:

-Ok, então vamos até lá. Você vai na frente. 

As duas subiram os degraus, e Sarah pode ver mais de perto o maravilhoso lustre de cristal que pendia do teto da sala de estar. Achou tudo maravilhoso, e até considerou ficar vivendo na casa por algum tempo, mas sabia que não poderia pagar pelos altos impostos que uma casa como aquela traria. Lamentou por aquilo, sentindo ainda mais ódio e inveja que pessoas ricas como Ofélia pudessem desfrutar daquilo tudo sem o menor esforço. 

Viram todos os cômodos em silêncio. Sarah estava adorando a casa, mas o sentimento de ódio e inadequação àquele estilo de vida que ela jamais teria, eram bem maiores que o amor pela casa.  Finalmente, ela disse:

-Já vi o suficiente. Amanhã vou até o escritório para pegar a escritura, e espero que a papelada esteja pronta e a contento, pois meu advogado estará comigo para examinar os documentos. 

Na verdade, ela não tinha nenhum advogado; pediria a um conhecido, a quem pagaria, para fazer o papel de advogado, mas ninguém saberia de nada, e então não fariam nada para enganá-la, sabendo que haveria um advogado presente. 

Chegaram ao topo da escadaria, e Ofélia parou. Olhou para baixo, e lembrou-se do tombo que matara seu pai. Sentiu-se tonta, e segurou-se no corrimão. Sarah percebeu, e por um minuto, teve pena dela:

-Então foi aqui que tudo aconteceu... você pode não crer em mim, mas eu sinto muito. Eu realmente amei seu pai.

Ofélia viu que ela poderia estar dizendo a verdade, mas nada respondeu. Fez sinal para que ela começasse a descer as escadas, e Sarah estendeu o pé adiante. Ofélia sentiu seu coração acelerar, pois finalmente compreendeu o que estava para acontecer. Lágrimas vieram aos seus olhos. Ela seria incapaz de assassinar alguém! Anselmo não podia pedir a ela que fizesse aquilo. 

O pé direito de Sarah tocou o primeiro degrau. Ofélia notou que ela usava sandálias prateadas de saltos muito altos. Sarah segurava-se com firmeza no corrimão. Ela chegou ao segundo degrau, descendo-o sem dificuldades. Ofélia começou a descer atrás dela, devagar, tentando manter a distância de pelo menos um degrau entre as duas. Foi no terceiro degrau que Ofélia viu o pé de Sarah vacilar, escutou o salto quebrar-se e o corpo dela projetar-se para o lado do corrimão. Ela ainda tentou segurar-se, mas o desequilíbrio fez com que, automaticamente, ela retirasse a mão do corrimão onde se segurava, agitando-a no ar a fim de recuperar o equilíbrio, o que só fez com que ela caísse para fora das escadas e se estatelasse no piso da sala de estar rapidamente. 

Ela nem teve tempo de gritar. 

Ofélia ficou parada na escadaria, tentando conter as batidas do coração que parecia que ia sair pela sua boca. Olhou para baixo: Sarah não se movia. Um filete de sangue escorria pelo piso onde sua cabeça estava apoiada. 

Ela gritou:

-O que você fez, Anselmo? E o que eu faço agora?


A campainha tocou, aumentando o seu pânico. Anselmo não respondia, e ela estava cada vez mais desesperada. De repente, a coisa mais certa a se fazer parecia ser abrir a porta e relatar para quem quer que estivesse ali o que tinha acontecido. E foi o que ela fez. Ao ver Bruno à porta, ela o abraçou com desespero, arrastando-o para dentro da casa até o local da cena, onde o corpo de Sarah jazia de bruços. Ao ver a moça deitada no chão, ele levou um choque, mas conteve-se e ajoelhou-se junto a ela, checando sua respiração:

-Ela ainda respira. Vamos chamar uma ambulância! 

Naquele instante, Sarah gemeu:  "A culpa... não foi dela."

(continua...)








terça-feira, 14 de agosto de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE VIII






Aquele reencontro, que estivera preso no tempo há mais de um século, foi celebrado com muito amor. Ofélia não fez perguntas, porque ela sentia que não tinha muito tempo. Preferiu viver aqueles momentos da melhor forma possível, com muita intensidade. Ela abraçou Vivian e brincou com ela, sempre sendo assistidas por Anselmo, que as olhava com muito amor. Depois que Vivian adormeceu, Ofélia finalmente teve algum tempo sozinha com Anselmo. Notou que ambos estavam ficando também sonolentos. 
Anselmo acariciava seu rosto, enquanto Ofélia tinha deitado a cabeça em seu colo. Era final de tarde, e o sol entrava pela janela. Vivian dormia ao lado deles, no tapete da sala, cansada e feliz. 

-Você não sabe por quanto tempo eu esperei por este momento, minha querida...

-Anselmo... estou tão confusa! Sei quem você é, sei com certeza que Vivian é minha filha, nossa filha... mas ao mesmo tempo, eu tenho uma outra vida! Uma vida que é tão solitária e cinzenta comparada a esta, que eu não sinto vontade de voltar para ela. Como posso fazer para ficar aqui para sempre?

Anselmo deu um sorriso triste:

-Não pode, minha amada... tudo o que temos, são estes momentos, estes reencontros. Há muito tempo fizemos esta promessa, e trabalhamos para que isso que estamos vivendo acontecesse um dia. 

-Mas... como? Eu não consigo me lembrar de nada!

-Porque você reencarnou duas vezes. Há o esquecimento. Eu e Vivian ficamos aqui, esperando pelo dia em que você voltaria para nós. Isso fazia parte da magia.

-Magia?... Então... vocês estão... mortos?

-Sim. Com o tempo, você vai entender.

-Não! Sinto que estou ficando cada vez mais cansada e sonolenta, e preciso saber agora, antes que...

Anselmo tapou-lhe a boca suavemente, com uma das mãos. 

-Shshsh... não diga nada. Você vai entender com o tempo. Talvez seja necessário que você pratique coisas que considera estranhas à sua nova vida, mas à medida que praticá-las, verá que elas vão tornar-se cada vez mais fáceis, mais naturais. Mas você vai ter que ser forte, minha amada. Somente através de tais práticas você conseguirá voltar para nós. 

Sophia enlaçou-o pelo pescoço, dizendo:

-Eu farei qualquer coisa para estar aqui com vocês, meu amor. esta é a minha verdadeira vida. E se eu... se eu cometesse suicídio? 

-Não, não faça isso! Se o fizer, nunca mais nos veremos, e tudo terá sido em vão. Preste atenção, Ofélia: jamais faça uma coisa destas! prometa-me!

-Eu prometo, Anselmo... farei apenas aquilo que me trará de volta.

Ele concordou com a cabeça. Rapidamente, Ofélia sentiu que o rosto dele ia ficando cada vez mais envolvido pela escuridão, e que ela se afastava cada vez mais. Até que despertou novamente, desta vez, sozinha e com muito frio. Sentia-se um pouco tonta e enjoada, e teve que sentar-se devagar para então conseguir levantar-se sem cair. Foi até a cozinha e tomou um gole d'água. minutos depois, sentia-se melhor.

Ao voltar para a sala, deparou com o quadro na parede, e sorriu. Ao mesmo tempo, sentiu uma enorme tristeza, e muito medo: e se ela não conseguisse mais voltar? Nunca mais veria sua família! 

Pensou também em Bruno; o que sentia por ele era reduzido a quase nada quando comparado ao amor que sentia por Anselmo e Vivian. Ela não poderia nunca mais deitar-se com ele; não suportaria mais beijá-lo ou tocá-lo! 

Sofia lembrou-se também do pai, hospitalizado. De repente, ela procurou o amor que sentia pelo pai dentro dela, e não conseguia encontrá-lo; apenas um sentimento de estranheza total, como se ela tivesse sido criada por um estranho que nada significava para ela. 

Na manhã seguinte, Ofélia acordou com o toque do telefone. Era do hospital. Seu pai tinha falecido. 

Ao escutar a notícia pelo telefone, ela nada conseguia sentir. Ouviu a funcionária do hospital dizer que ela deveria comparecer ao hospital levando documentos do pai e uma muda de roupas o mais rapidamente possível. Ela fez uma anotação mental daquilo tudo, e vestindo-se foi até a casa do pai a fim de cumprir o que fora pedido. Também lembrou-se de avisar às pessoas no escritório. 

No hospital, ela pediu para ver o pai, e obteve permissão.

Quando Ofélia entrou no quarto e descobriu o rosto do homem que durante anos chamou de pai, deparou com uma face muito branca e um tanto inchada. Sentiu um pouco de pena, e também repulsa. Não conseguiu encontrar dentro de si o amor que sentia por ele. Deu um longo suspiro, e foi tratar do velório. 

Na sala de velório, Magda aproximou-se dela, chorosa. Os colegas de escritório estavam presentes, e também Sérgio, o sócio. Magda abraçou-a, e ela deixou-se ser abraçada. Notou que Magda era a única que estava chorando. Seu pai tinha sido um homem rico e poderoso, mas na verdade, não tinha muitos amigos verdadeiros. 

Já quase na hora do sepultamento, uma mulher usando um vestido preto lustroso e apertado aproximou-se dela; Ofélia logo reconheceu Sarah, a namorada do pai. Um sentimento de asco tomou conta dela ao apertar a mão que a mulher estendeu-lhe. Ela aproximou-se do caixão, e olhando para Rony, simulou um choro convulsivo. O constrangimento foi geral, pois todos sabiam que tipo de mulher ela era. Se estava ali, com certeza era a procura de alguma vantagem financeira; afinal, Rony mantinha um caso com ela há mais de dois anos, o que ela considerava como sendo uma união estável. 

As suspeitas de todos se confirmaram quando, na manhã seguinte ao velório, ela apareceu no escritório da firma usando enormes óculos escuros e algumas  das muitas joias que Rony lhe presenteara, pedindo para ver Ofélia, que estava em reunião. Sarah disse que esperaria por ela, o que fez durante mais de uma hora, acomodada na confortável poltrona do escritório de Ofélia, onde Magda acomodou-a - afinal, seria melhor que ela não ficasse na recepção, pensou; não era nada bom para a imagem da empresa. 

Magda observou, com olhares prescrutadores, os móveis, pesos de papel e o computador de última geração sobre a escrivaninha de mogno lustroso. Reparou no papel de parede caro, de padrões discretos, e até mesmo no vasinho de violetas que Ofélia mantinha em um dos cantos da mesa. Seus olhos se encheram de inveja. Com certeza, alguma coisa teria que ser destinada a ela, que passara dois anos de sua vida dedicando-se de corpo e ealma (mais o primeiro do que o segundo) a Rony. 

Quando a reunião terminou, Magda aproximou-se discretamente de Ofélia:

-Minha querida, sinto muito, mas há alguém bem desagradável aguardando você em sua sala. Coloquei-a lá temendo algum escândalo, e além do mais, ela não é nada boa para a imagem da empresa. 

Imediatamente, Ofélia compreendeu de quem se tratava. E também o que ela estava fazendo ali. Respirou fundo, e entrou. 

Ao vê-la, Sarah olhou-a dos pés à cabeça, e não fez menção de levantar-se. Sem cumprimentá-la, Ofélia sentou-se em sua cadeira, e cruzando as mãos sobre o abdômen enquanto fazia a cadeira girar para um lado e para o outro, encarando Sarah, aguardou. Sarah sorriu levemente, sem esconder um traço de ironia:

-Sinto muito por atrapalhar logo no dia seguinte ao velório de seu pai, meu bem, mas eu precisava vir até aqui. A vida continua, e há algumas questões práticas que infelizmente devem ser resolvidas. 

Ofélia aguardou, em silêncio. Sarah continuou:

-Então... você sabe que seu pai e eu praticamente morávamos juntos, e que ele pôs alguns bens em meu nome, como um carro e um apartamento na praia. Algumas joias não muito valiosas... mas a minha dedicação e o meu tempo merecem uma compensação melhor. Tínhamos uma união estável. 

Ofélia riu. Sarah torceu os lábios. Ofélia disse:

-Pois é, minha querida... finalmente, poderei mandar você para o lugar de onde nunca deveria ter saído: os quintos do inferno! Você não vai levar nem mais um centavo! E fique feliz porque eu sei que o carro em questão não está em seu nome, mas não pretendo tirá-lo; porém, o apartamento na praia, que está em nome da firma, será vendido hoje mesmo. Tire sua lixarada de lá o quanto antes, ou jogaremos tudo fora. 

Sarah ergue-se da cadeira, erguendo também a voz:

-Se você pensa que vai me jogar para fora do jogo assim, do nada, está muito enganada! Conheço jornalistas que transformarão a imagem desta firma em lixo puro ao simples toque de um telefone! Não brinque comigo, sua fedelha, ou saberá quem é Sarah Bastos de Amoedo! Não tenho ninguém nesse mundo, não tenho família, mas respondo por mim mesma e sei defender meus interesses e meus direitos! Além disso, tenho um bom advogado que me garantirá que eu obtenha tudo o que é meu! 

Ofélia levantou-se, e fechou a porta do escritório. Naquele momento, escutou uma voz muito nítida e amada dentro de sua cabeça; era a voz de Anselmo: "Traga-a até a casa!"  Ao ouvir a voz dele, Ofélia sentiu uma imensa calma, e sabia que o problema seria resolvido, e de forma definitiva. Apenas ouvir a voz dele dava-lhe aquela sensação de paz. Recompôs-e, dizendo:

-Vamos negociar.

Sarah voltou a sentar-se, assumindo um ar de poder.

-Agora sim, eu acho que você me entendeu. 

Sarah olhou-a com cuidado, e após alguns segundos, disse:

-Temos esta casa... na verdade, uma mansão. Está avaliada em alguns milhões. Gostaria de vê-la? Poderá ficar com ela, se gostar. 

-Agora estamos falando a mesma língua, mocinha. Quando podemos ir até lá?



(Continua...)





sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O Lar de Ofélia - Parte VII










O LAR DE OFÉLIA - Parte VII



Depois de fazerem amor, Ofélia e Bruno conversavam na cama. Ela contou-lhe sobre a queda de Rony da escada e que seu pai estava hospitalizado, e Bruno a escutou com atenção. Após pensar durante alguns minutos, enquanto acariciava os cabelos dela, que estava abraçada a ele na cama, Bruno disse:

-Ofélia... você disse que seu pai caiu da escada enquanto dizia a você que venderia a casa...

-Sim. Por que?

-Pense: quando chamei você para ir embora comigo, a casa estalou e as portas bateram como se ela estivesse protestando. Será que a queda de seu pai não foi causada pelo que ele disse?

Ofélia sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Tinha anoitecido, e exceto pelo abajur ao lado da cama, a casa estava completamente às escuras. Bruno poderia estar certo. Ela apoiou a cabeça no antebraço a fim de olhar para ele:

-Você pode estar certo, Bruno... mas... se isto aconteceu, é porque ela quer que eu fique aqui com ela... existe alguma coisa que eu preciso descobrir.

Ele sentou-se na cama, e ela olhou para suas costas musculosas. Apesar do rosto de menino, Bruno era um homem e tanto, pensou. Ele se levantou, vestindo as calças e procurando por sua camiseta de malha, que deslizou pelo pescoço rapidamente. Ao sentar-se para calçar os tênis, ele disse:

-Eu não gosto disso, Ofélia. Se eu fosse você...

E então ele se calou, olhando-a nos olhos e inclinando-se para beijar-lhe  a ponta do nariz. Ela quis puxá-lo para a cama novamente, mas ele protestou:

-Tenho que ir, ou meus pais estarão aqui atrás de mim daqui a pouco. 

Aquilo quebrou o encanto que havia entre eles, e ela sentou-se na cama, enrolando os cabelos e prendendo as pontas em um coque. Alcançou seu vestido, que estava aos pés da cama, e vestiu-se também, enquanto ele caminhava até o corredor. Ao chegar ao alto das escadas, Bruno olhou para baixo e segurou firme no corrimão antes de começar a descê-las bem devagar, sentindo, o tempo todo, um calafrio de medo. Ofélia desceu logo atrás dele, e enquanto passavam pelos cômodos até a porta de entrada, ela ia acendendo as luzes da casa. 

Antes de sair, ele a olhou e fez uma carícia em seus cabelos. Ofélia sentiu que estava se apaixonando por aquele menino, o que talvez não fosse uma boa ideia. Quando ele se foi, ela voltou ao porão e continuou seu exercício de olhar para a pintura tentando fazer com que alguma resposta chegasse até ela. 

Na manhã seguinte, foi ao hospital ver o pai, mas teve a notícia de que ele ainda continuava em coma induzido. Havia um inchaço no cérebro, e seu estado era grave. Ofélia pensou na possibilidade de ter sido a casa a causadora de tudo aquilo, e sentiu uma onda de culpa invadi-la.

 Mais tarde, ela foi trabalhar, resolveu alguns assuntos pendentes e depois saiu cedo - logo após o almoço - alegando que não estava se sentindo bem. Magda, a secretária de Rony, uma mulher de meia idade magrinha e pequena, que trabalhava na firma há mais de vinte anos, perguntou se havia alguma coisa que pudesse fazer para ajudá-la:

-Se quiser, posso passar a noite com você. 

-Agradeço, Magda, mas vou ficar na casa de uma amiga esta noite. 

-Qualquer coisa, é só me ligar. Sabe que estarei aqui para você. Eu estou muito preocupada com você, Ofélia. 

Ofélia viu a sinceridade no olhar de Magda. Depois da morte da mãe, ela enxugara suas lágrimas algumas vezes. Confiava nela, e a admirava. Abraçou-a, lamentando estar mentindo para ela, dizendo:

-Eu vou ficar bem, não se preocupe. Minha amiga está me esperando, eu já tinha dito a ela que chegaria mais cedo em casa. Vou indo... obrigada mais uma vez.

Ofélia dirigiu-se para a casa. ao passar pela casa de Bruno, sentiu-se aliviada por não vê-lo por lá. Queria ficar sozinha na casa. 

Naquela noite, ela foi até o porão e levou o quadro para dentro da casa, pendurando-o na sala de estar, na parede oposta à lareira. Assim, podia sentar-se em frente a ele e contemplá-lo com mais atenção e conforto. E foi o que ela fez. Enquanto o olhava, cenas de sua própria vida iam passando pela sua cabeça; cenas que a deixavam um tanto deprimida. lembranças dos tempos de criança, de algumas amigas da escola que nunca voltara  a ver, da casa onde crescera - agora ocupada por seu pai e suas namoradas que ela detestava. Ofélia pensou no quanto era solitária, e no quanto sua vida era vazia e triste. Apesar de todo o dinheiro de sua família, ela não tinha uma vida, não tinha amigos e jamais saía para se divertir. Normalmente, ela  tentava evitar aqueles pensamentos sombrios, devorando livros e filmes uns atrás dos outros, mas desde que chegara na casa, não o fizera, e as memórias correram a acumularem-se à tona de seus pensamentos, transbordando em uma cascata que ela não conseguia mais fazer parar. 

De repente, ela notou que alguma coisa estava acontecendo: apesar de estar sentada na mesma poltrona, na mesma sala, diante do mesmo quadro, alguma coisa parecia diferente. Ela percebeu que as roupas que usava eram outras. Ofélia escutou passos no corredor, passos leves de criança, que logo se transformaram em uma corrida. Ela sentiu um calafrio de medo percorrer sua espinha, e quis gritar ou mover-se, mas não conseguiu. Viu quando uma menina loira de olhos claros - a mesma com a qual sonhava quase todas as noites, desde que chegara lá -  correu em direção a ela, sentando-se no seu colo como se a conhecesse há muito tempo. Os braços da menina envolveram seu pescoço em um abraço carinhoso, e ela deitou a cabeça em seu peito, murmurando uma canção. 

Ofélia notou que o vestido dela parecia antigo, e que ela usava um laço de fita rosa no alto da cabeça. Ofélia sentiu o cheiro leve de lavanda emanado pelo vestido da menina, e a maciez de seus cabelos de encontro ao seu rosto. Abraçá-la foi a coisa mais natural a fazer, e quando o fez, começando a embalar a menina como se estivesse em um sonho, tudo se encaixou: Vivian. O nome da menina era Vivian, e ela era sua filha amada!

Ela sentiu que lágrimas brotavam dos seus olhos, e que uma saudade antiga, há muito tempo guardada, estava sendo finalmente realizada. Ofélia sorriu, fechando os olhos e apertando a menina contra o corpo, enquanto balançava-a no colo como se a ninasse. A vida agora fazia todo o sentido: tudo o que passara a preparara para viver aquele momento exato, naquela casa. Pegou a mãozinha da menina, levando-a aos lábios. Vivian olhou para ela, dizendo:

-Eu senti tanto a sua falta, mamãe! Prometa que não vai mais embora!

Antes que Ofélia pudesse responder, ainda tomada pela emoção daquele momento, ela viu um homem parado à porta da sala, olhando para elas. Parecia muito surpreso, um tanto confuso. Era o homem da fotografia. Anselmo. O pai de sua filha. Seu marido tão amado. 

(continua...)

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...