segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O DIA QUE MUDOU MINHA VIDA - PARTE 6



 PARTE 6


Meu pai faleceu durante a noite, quando eu tinha 30 anos. Foi meu terceiro velório. Minha mãe não se conformava, dizendo que naquela noite eles tinham ido jogar uma partida de biriba no clube, e que ele estava tão feliz, tão sorridente, tão bem. Mas a morte não liga para essas coisas. Ela até parece gostar de pegar as pessoas saudáveis e felizes de surpresa, sadicamente se esquecendo das tristes, deixando-as para o final, aguardando ansiosamente o encontro fatal. E então, quando ela, a Morte, chega para os infelizes, ela se diverte um pouco antes de leva-los, escutando sobre o quanto eles gostariam de ter uma nova chance, o quanto eles poderia ter

Sido

Felizes. 

A morte de meu pai também me abalou profundamente, pois eu tinha certeza de que ele me preferia às minhas irmãs, e éramos muito próximos. Porém, minha vida estava em um estado de torpor tão grande, que eu logo me conformei com a morte dele. Nada conseguia me despertar emoções duradouras naqueles dias. 

Para não ficar morando sozinha, minha mãe, agora com sessenta e oito anos, vendeu nossa antiga casa e mudou-se para um apartamento pequeno que ficava sobre a garagem de Paola. O lugar era muito jeitoso, bem dividido e arrumado, e todas achamos que ela poderia passar ali os seus dias de velhice sendo relativamente feliz sem papai, só que ela nunca se conformou com a morte dele. Minha mãe tornou-se uma sombra da linda mulher que costumava ser. Passei a visita-la de vez em quando, com mais frequência do que antes, pois achava que finalmente, estávamos parecidas uma com a outra. Nós nos sentávamos juntas e assistíamos TV em silêncio. Depois, eu fazia um café para nós duas, e Paola e Sandrinha às vezes apareciam para ver como estavam as coisas, trazendo um bolo ou alguns biscoitos. Mamãe tentava sorrir e responder às nossas expectativas do quanto a vida deveria continuar e sobre como ela deveria tentar continuar a ver os amigos e a ser feliz, mas eu sabia que ela só fazia aquilo – concordar conosco – para que nós a deixássemos em paz. Aqueles dias após a morte de meu pai nos uniu novamente, pois eu era calada, não fazia perguntas e nem tentava dizer a ela como deveria viver sua vida sem ele. Meu silêncio melancólico a trouxe para perto de mim outra vez.

Mas quando assistíamos TV naquelas tardes em que eu a visitava, eu olhava para ela de soslaio e notava que ela não estava entretida com a TV. Eu sabia, porque eu também não estava. Éramos duas estátuas vazias. Por isso ela passou a gostar de mim novamente.

Um dia, ela olhou para mim e comentou:

-Parece que não temos muito a conversar, não é filha?

Respirei profundamente, pensando no que responder, e disse:

-É verdade, mãe. Sabe, eu sei que a senhora nunca teve muita coisa para me dizer... sei que prefere minhas irmãs, mas eu não ligo, fique em paz.

Ela arregalou os olhos, e colocou a mão sob o meu queixo, me obrigando a olhá-la. 

-Não! Eu... amo você, sempre amei!

Aquela declaração tardia e sem contexto me surpreendeu. Fiquei boquiaberta, sem saber o que dizer, olhando-a, sentindo o toque de sua mão sob o meu queixo e me lembrando de que há muito tempo ela não me tocava daquela forma. Então ela falou bem devagar:

-Filha... às vezes, o nosso silêncio é a forma mais eloquente que encontramos para amar alguém. 

Pela primeira vez em todos aqueles anos, percebi que minha mãe não apenas sabia que eu tinha estado na casa de Betina no dia de sua morte, mas que ela pensava que EU a matara!

Aquilo era demais para mim!

Fiquei sem visita-la durante dois dias. Na manhã do terceiro dia, chegou-me pelo correio uma caixa de sapatos embrulhada em papel pardo. A letra caprichosa de mamãe escrevera o meu endereço. 

Instintivamente, eu sabia o que a caixa continha, mas abri-a assim mesmo, e sem nenhuma surpresa, o anel de pedra azul de Betina, embrulhado ainda no mesmo lenço branco, caiu sobre a mesa. Mas havia algo mais, um outro pano  dobrado pra ficar bem pequeno. Abri-o, e reconheci o meu vestido leve de algodão branco. O mesmo que eu estava usando no dia em que vi Betina pela última vez. Eu tinha me esquecido completamente dele! Depois que o lavara e pendurara no varal, eu nunca sequer pensara nele outra vez. 

Tirei-o da caixa, e fui engolfada por uma torrente de lembranças. Minha memória parecia ter sido acionada, e comecei a me lembrar de coisas que aconteceram naquele dia que seriam impossíveis para qualquer pessoa lembrar em condições normais: o que tínhamos comido no almoço, o que as pessoas na minha casa estavam usando, o clima terrivelmente quente.

Coloquei o vestido de costas sobre a mesa, e o que vi, me encheu de terror: a barra da saia estava manchada! Era uma mancha seca, envelhecida e amarronzada, mas só podia ser sangue – o sangue de Betina! Minha mãe escondera aquele vestido durante todos aqueles anos, só para me proteger! Imaginei o quanto deveria ter sido difícil para ela pensar que sua filha caçula era uma assassina, e o quanto deveria ter sido horrível guardar aquele segredo do resto da família, inclusive de papai!

Eu precisava contar a verdade a ela. Precisava contar a ela o que eu vira naquele dia. Precisava falar sobre Breno fugindo da casa a pulando o muro, mas... havia algo estranho naquela história para o qual eu nunca tinha atentado antes. 


(continua...)




domingo, 16 de agosto de 2020

O DIA QUE MUDOU MINHA VIDA - PARTE 5





 PARTE 5 

Os anos se passaram. Minhas irmãs fizeram faculdade, se casaram e se mudaram para suas próprias casas. Paola abriu um escritório de advocacia, e Sandrinha, que estudara moda, sua própria loja de roupas. Ambas eram felizes e realizadas em suas profissões, e eu as evitava, inventando desculpas para não ter que aceitar seus convites para ir às compras ou almoçar. 

Paola me contara que Breno tinha se mudado para outro estado depois que se formara. Dei graças a Deus por nunca mais ter que encontra-lo. 

Eu me formara como professora, só porque era mais fácil e eu não teria que me esforçar muito para fazer uma escolha. Aos vinte e seis anos de idade, eu aparentava bem mais. As olheiras das noites mal dormidas se fixaram sob os meus olhos, e minha magreza extrema deixava minhas faces encovadas. Meus cabelos, agora sem vida, foram cortados curtos e mantidos sempre em um rabo de cavalo sem graça. Eu passei a fumar e a beber de vez em quando em meu apartamento pequeno e sem graça onde eu vivia sozinha, que eu comprara com a ajuda dos meus pais. Meu casamento durara apenas dois anos, e um dia, vi meu marido sair pela porta carregando uma mala e dizendo que “Simplesmente não aguentava mais viver com alguém tão emocionalmente fechada.” 

Não fiz nada, a não ser assinar os papéis do divórcio e comprar o tal apartamento sem graça que eu nunca mobiliei de verdade, as coisas todas dentro de caixas. 

Às vezes, meus pais me visitavam, e aqueles momentos eram torturantes, com minha mãe tentando arrumar as coisas em prateleiras que não eram suficientes para tudo, e procurando cadeiras onde pudesse colocar as roupas que ela dobrara e que tinha encontrado em uma pilha no canto do meu quarto. 

Eu dava aulas de História. Era uma péssima professora, e sentia, quando eu entrava na sala de aula, os alunos se entreolhando e fazendo caretas atrás de mim. Eu os mandava abrir os livros e eles se intercalavam nas leituras do capítulo. Era só. A aula estava dada. Aplicava as provas, dava as notas e fim. Ganhava meu salário no final do mês, comprava alguma comida, cigarros e bebida. As roupas que eu usava eram todas em tons de preto e bege. Não havia outras cores penduradas nas araras ‘temporárias’ que meu pai montara em meu quarto “Só-até-você-comprar-um-guarda-roupa” e que já estavam lá há anos.

Eu não tinha uma vida.

A não ser quando dormia e reencontrava Betina. E ela parecia nunca envelhecer, sempre tão bonita e sorridente, sempre tão jovem, sempre tão morta e sempre me perguntando por que eu a tinha deixado sozinha. 


(continua...)




segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O DIA QUE MUDOU MINHA VIDA - PARTE 4


 PARTE 4


Era uma tarde de domingo, e minhas irmãs tinham saído. Meus pais descansavam no quarto após o almoço, e eu deixava a minha mente vagar entre a realidade de um filme antigo na TV e a modorra silenciosa da tarde de domingo, jogada no sofá, sem ter a menor ideia de sobre o que era o filme. E de repente, do nada, me veio a lembrança do anel de Betina. Aquilo me despertou feito um choque elétrico; comecei a escutar o barulho vindo da rua – crianças brincando, alguns carros, um rádio tocando rock. De repente, eu estava viva novamente, e alerta. Corri até o quarto, trancando a porta atrás de mim, e abri a gaveta, jogando minhas calcinhas, anáguas e sutiãs no chão, procurando pelo embrulhinho de lenço branco. 

Mas nada encontrei. Nem lenço, nem anel, nem nada. Alguém o tinha encontrado. Alguém o pegara!

Logo desconfiei que tinha sido minha mãe, e por isso, ela andava tão estranha comigo. Pensei no que fazer; não sabia há quanto tempo o anel tinha sumido, pois simplesmente me esquecera da existência dele. Não sabia nem com certeza se tinha sido a minha mãe que o pegara, e nem se ele realmente estivera comigo ou se tudo tinha sido fruto da minha imaginação.

Às vezes, Breno nos visitava, e quando isso acontecia, eu me trancava no quarto ou arranjava uma desculpa para sair. Será que ele, sabendo do anel de alguma forma, tinha entrado em meu quarto quando eu estava fora e pego o anel? 

O que fazer? Tentei deliberar um plano de ação, caso alguém me perguntasse sobre o anel. Responderia que ele estava comigo há muito tempo, desde antes da morte de Betina, pois ela o emprestara a mim... mas... se Breno a matara, com certeza sabia que o anel estava no dedo dela, e encontrando-o comigo,  saberia que eu estivera na casa no dia do crime. Novamente, me vi tomada de desespero. 

Já não rezava desde a minha primeira comunhão. Caí de joelhos no chão do quarto, juntando as mãos na frente do rosto, e pedi a Deus que me desse uma solução. Foi quando uma grande paz me invadiu, e eu então soube o que fazer: nada. Absolutamente nada. Não diria nada sobre o anel, e se me perguntassem, dependendo de quem fosse, eu daria uma resposta diferente. Ou simplesmente diria que não tinha a menor ideia de como ele tinha ido parar na minha gaveta. 

Mas com o tempo, tive certeza absoluta de que minha mãe o pegara. Porque ela um dia se aproximou de mim, logo depois que voltei da escola. Eu estava sentada almoçando. Minhas irmãs tinham ido almoçar na casa de alguém, e meu pai estava trabalhando. Minha mãe sentou-se ao meu lado e ficou me olhando enquanto eu comia, a cabeça descansando em uma das mãos, me examinando como se eu fosse um ET ou algo assim. Senti um leve rubor cobrir o meu rosto, mas continuei comendo como se nada estivesse acontecendo. Ainda pude olhar para ela e dar um sorrisinho.

Ela queria me dizer alguma coisa, mas não sabia como. Por baixo da minha máscara de paz de espírito, meu coração queria ser digerido junto com a comida. Finalmente, ela disse:

-Mônica, existe alguma coisa que você queira me dizer sobre o dia da morte de Betina?

Me choquei com a maneira direta dela falar. Bebi o suco quase engasgando, e arregalei os olhos, respondendo rápido demais:

-Não! Por que?

Fiquei esperando ela colocar o anel diante de mim. Mas não. Ela ficou me olhando nos olhos, me encarando muito séria. Me aprontei para responder uma saraivada de perguntas que, com certeza, iam me desmentir ali naquele momento e colocar tudo a perder. Eu era uma péssima mentirosa quando confrontada, e minha mãe sabia disso. Mas depois eu descobriria que ela pensava que a verdade era tão terrível, que seria melhor não conhecê-la. 

Apertei os lábios, limpando-os com o guardanapo de papel. Meu calvário estava começando, pensei. Só que não; ela ainda abriu a boca para dizer algo, mas então colocou a mão rapidamente sobre a minha, fazendo uma leve carícia, e levantando-se da mesa, carregou meu prato e meus talheres para a cozinha. 

Então era só isso, pensei.

Mas a distância que começou a nos afastar era um abismo que só nós duas conseguíamos enxergar; para os outros, conseguíamos fingir que tudo ia bem, que tudo estava normal. Quando ficávamos sozinhas, evitávamos nos olhar e só falávamos quando estritamente necessário, mas quando estávamos junto com as outras pessoas, conseguíamos fingir que tudo estava bem.

Meus pesadelos recorrentes nunca me abandonaram, nem mesmo depois que meu pai me levou a um psiquiatra que me receitou alguns medicamentos leves para dormir. Eu sonhava com Betina todas as noites. Eu a via morta, os olhos vidrados; eu via o sangue escurecendo o tapete; eu sonhava com ela quando viva, rindo e brincando, sentada no nosso tapete da sala com minhas irmãs; eu tocava suas pupilas com a ponta do indicador; eu sonhava com as tardes de verão juntas na sua maravilhosa piscina. Mas em todos os sonhos, eu sabia que o momento chegaria no qual, na frente de todo mundo, ela me perguntaria: “Por que você me deixou sozinha?” Todos me olhariam ao mesmo tempo.  E naquele momento, o chão se abriria sob os meus pés e eu afundaria rapidamente em um buraco escuro, e muitas vezes, acordava gritando, as cobertas no chão, coberta de suor frio. 

Ir dormir era uma tortura para mim, e então o médico achou melhor aumentar as doses. Elas me faziam ter um sono pesado e acordar me sentindo péssima, mas não impediam os pesadelos. Uma vez, durante uma consulta, ele me disse:

-Eu sei que você guarda algum trauma profundo dentro de você, Mônica, e você não quer falar sobre ele. Mas enquanto não falar sobre os seus fantasmas, eles jamais a deixarão em paz e a visitarão todas as noites.

A palavra “fantasmas” era por demais adequada. Entre todos nós, eu era a única que ainda não tinha sepultado Betina. Até mesmo os pais dela tinham saído em uma viagem ao redor do mundo. Certa vez encontramos Helena na feira, e ela nem tocou no assunto; estava sorrindo, e conversamos sobre tomates e o preço da carne. Era como se Betina nem tivesse existido. Mas eu me lembrava, só eu me lembrava o tempo todo dela.


(continua...) 


quarta-feira, 5 de agosto de 2020

O DIA QUE MUDOU MINHA VIDA - PARTE 3









PARTE 3

A manhã estava quase terminando. Como Paola não estivesse conseguindo falar com Betina, acabou programando outra coisa para fazer durante o dia: iria ao cinema com amigos. Já tinha ligado para a Márcia, o Pedro, a Jan e o Breno.

Ao ouvir o nome dele, eu gelei. Então era isso? Ele matava a amiga e ia ao cinema? Como podia ser tão frio? 
Na hora do almoço, tentei comer um pouco. Minha mãe preparou uma macarronada deliciosa. Já estávamos quase terminando o almoço quando o telefone tocou. Meu coração quase parou. Mamãe foi atender, e era apenas papai. Eles falaram durante algum tempo, e depois ela desligou. 
Por volta de meio-dia e trinta, eu enxugava as louças do almoço quando o telefone tocou novamente. Daquela vez, Sandrinha atendeu. Pude ouvi-la:

-Oi, Helena! Tudo bem? Tentamos falar com Betina a manhã toda... não... você chegou em casa agora? Não, ela não está aqui! Ah, tirou o dia de folga ontem, hein? Que bom! ... está bem. Se ela aparecer, eu digo que você já chegou. Beijo.

Eu, que ouvira toda a conversa, encostei-me na parede para não cair. Sandrinha me olhou:

-Você está branca feito um papel, Mônica. Aconteceu alguma coisa?

Eu não conseguia responder. Meu coração estava tão acelerado, que eu sufocava. Me senti escorregar parede abaixo, tudo em volta foi ficando embaçado, e vi minhas irmãs e minha mãe correndo em minha direção, até que tudo escureceu. 

Acordei em uma sala branca, e havia uma agulha espetada no meu braço. Em volta de mim, todos pareciam muito preocupados. Ao ver que eu tinha acordado, Paola, de olhos vermelhos, cutucou minha mãe, e então ela veio correndo até a maca aonde eu estava deitada na emergência do hospital. Olhei para ela ainda grogue por causa dos medicamentos e pisquei várias vezes, me sentindo tonta e confusa. Ela disse:

-Não se preocupe, eles te deram um calmante. 

E foi naquele momento que eu cometi meu terceiro erro: perguntei a ela:

-Já acharam o corpo?

Ela arregalou os olhos, e sorriu:

-Que corpo, querida? Acho que você está delirando por causa dos remédios. Mas logo vamos para casa. 
Meu pai estava de pé ao meu lado, e me deu um beijo na testa. Apaguei de novo. 
Quando acordei, minhas irmãs não estavam no quarto, e não vi meu pai. Já estava escurecendo, pois as persianas estavam fechadas e havia uma luz fraca acesa por trás da maca. Ao me ver acordada, meu pai me disse:

-Oi, filha. Melhorou?

Pisquei novamente, repetidas vezes. 

-Estou bem, sim, pai. Cadê todo mundo?

Ele não respondeu, e mudou de assunto. Parecia bem triste:

-O médico disse que você poderia ir para casa assim que acordasse, mas ela quer dar uma olhada em você antes. Disse que você teve um mal-estar por causa do calor. 

Ele saiu do quarto e voltou com o médico, que me examinou e disse que eu podia ir. À porta, ele disse ao meu pai:

-Evite que ela tenha emoções muito fortes por hoje... conte amanhã...

Assim que ele saiu, meu pai e eu fomos para o carro e de volta para casa. Eu sabia que eles já tinham recebido a notícia. O silêncio entre nós já dizia tudo. Não pude me conter:

-Pai... aconteceu alguma coisa?

Ele parecia que estava pronto para desabar. De repente, encostou o carro no meio-fio, e com as duas mãos sobre o volante, parecia estar tomando coragem para me contar. Esperei, até que ele achasse as palavras:

-Mônica, aconteceu uma coisa, sim. Vou contar agora, pois quando chegarmos em casa, vai ser pior. Suas irmãs estão muito abaladas. Bem, é que... a Betina... ela morreu. 

Eu achei melhor fingir surpresa:

-Morreu??? Mas... como? Ela... ela é muito nova ainda, pai!

-Eu sei, querida. Eu sei...

Ele chorou um pouco, e nos abraçamos. Chorei também, sinceramente, querendo acreditar que eu não soubera daquilo antes de todo mundo. Fingi que nunca estivera naquele quarto no dia anterior. Mas os olhos dela, de vidro verde, me olhavam de algum lugar que eu não tinha como escapar. 

Depois daquilo, houve o velório. Minhas irmãs estavam arrasadas. Os pais de Betina choravam muito, se sentindo culpados. Houve perícia, e acharam a cocaína sobre o mármore da pia do banheiro. Porém, a causa mortis não tinha sido overdose, e sim o ferimento na cabeça, que segundo a perícia, tinha sido ocasionado por uma queda acidental sobre uma estatueta de ferro. Mas eu sabia que não, e só eu sabia. Aquilo fez toda a diferença em minha vida. 

No velório, olhei de soslaio para Breno, pois não conseguia encará-lo. Ele era o mais abalado de todos nós, amigos de Betina. Precisaram medicá-lo com calmantes. Seria uma forma de disfarçar tudo? Notei que havia um rapaz ao lado dele que nós não conhecíamos, e depois ficamos sabendo ser seu namorado. Mas então, por que Betina estava nua com ele quando morreu? Aquela era uma pergunta que eu jamais poderia fazer a ninguém. Ninguém sabia que eu tinha sido a primeira pessoa, ou melhor, a segunda pessoa a vê-la morta.

Falamos com Helena; ela desconfiava que havia alguém mais na casa no dia da morte, pois encontrou dois copos com restos de suco de laranja na pia, e Betina não tomava suco de laranja, pois a acidez da fruta provocava-lhe dores de estômago – ela sofria de gastrite. Helena tinha comprado o suco para si mesma. 

Fiquei muito preocupada, pois sabia que a polícia poderia tirar impressões digitais dos copos e comprovar que eram minhas. Por que eu não lavara os copos? E por que estava tão preocupada, afinal de contas? Não era eu a assassina! Passei várias noites sem dormir também por causa daquilo, mas nada aconteceu, já que descobri que automaticamente, assim que chegou em casa e antes de saber da morte de Betina, Helena tinha lavado os copos. Não havia mais qualquer impressão digital neles, e a polícia nada pode fazer, concluindo que talvez Betina tivesse tomado o suco, afinal. 

Me senti aliviada ao saber daquilo. Sem perceber, eu começara a agir como se eu tivesse matado Betina, como se eu tivesse algo a esconder!

Minha mãe me olhava de uma maneira muito estranha durante o velório, e mesmo depois dele. 
Alguns dias depois, abri os olhos no quarto durante a noite e deparei com minha mãe de pé ao lado da minha cama, me olhando. O abajur ao lado da cama estava aceso, e pude ver que seus olhos eram frios e indagadores. Levei um susto. 

-Mãe? O que aconteceu?

Ela me encarou por algum tempo antes de responder. Depois, com voz firme, ela me disse:

-Você teve outro pesadelo. Estava quase gritando!

Sentei-me na cama: o que ela tinha ouvido? O que eu tinha dito? Minha mãe completou:

-Você ficou assim depois que sua tia-avó morreu, lembra-se?

-E como poderia esquecer? Claro que eu me lembro. 

-A morte de Betina a abalou muito, não foi?

Concordei com a cabeça e me deite, virando-me de lado e de costas para ela. Ela saiu do quarto, fechando a porta. 

O Natal daquele ano foi muito triste, e não houve comemorações na nossa casa, nem ceia. Fomos todos dormir mais cedo. 

Uma semana após a morte de Betina, todos fomos à missa de sétimo dia. Paola chorava muito, abraçada a Breno e Sandrinha. Eram melhores amigos desde crianças. Eu olhava toda a cena do meu lugar na igreja, me sentindo oprimida e sofrendo por causa do calor, sentindo o suor escorrer pelas minhas costas me fazendo cócegas. Só queria que tudo aquilo ficasse para trás.

Morávamos em uma cidade pequena, e o caso foi manchete no jornal local por vários dias. Havia uma foto três por quatro de Betina estampando uma das  matérias que não fazia jus à sua beleza. Somente eu guardara comigo o último vislumbre de Betina ainda bonita, sem a cor esverdeada dos cadáveres.

Daquela noite em que acordei com minha mãe me olhando em diante, eu sentia como se um abismo fosse sendo cavado entre mim e ela. Com o passar dos meses, minhas irmãs se recuperaram da perda – eram jovens e tinham muitos amigos. Mas minha mãe parecia cada vez mais triste e calada. E quando ela me olhava, seu olhar era tão profundo, que eu sabia... que ela sabia de alguma coisa! Um silêncio criou-se entre nós. Ela só falava comigo sobre coisas absolutamente indispensáveis, e eu apenas respondia, pois temia que ela tocasse no assunto. Eu me lembrava de que, no dia em que fui para o hospital, eu perguntara a ela se já tinham achado o corpo. Com certeza, ela ligara os pontos. Sabia que de alguma forma, eu tinha alguma conexão com a morte de Betina. 

E então, após quase três meses e meio da morte de Betina, eu me lembrei do anel em minha gaveta. 


(continua...)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...