quarta-feira, 27 de julho de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO XVI








Décio deixou Caio em sua casa, e os dois se despediram como dois verdadeiros irmãos. Aqueles dias juntos fizeram com que Décio visse o irmão de uma outra forma – como alguém real, de carne e osso, uma pessoa bacana – e não um fantasma que tirou dele o amor do pai. Enquanto dirigia para o seu apartamento, mil ideias para escrever a história de Endora passavam pela sua mente. Ainda pensava em Sophie com saudades, lamentando o fato de nunca mais poder revê-la. Achava que ela era uma mulher e tanto, e que seria difícil esquecê-la ou namorar qualquer mulher depois de ter estado com ela. Mas ela não deixara telefone ou itinerário. Apenas sabia seu sobrenome – Damata. Décio sentia-se melancólico por deixar Sophie, e ao mesmo tempo, aliviado por retomar a sua vida.

Fora um alívio subir a serra Petropolitana, sentindo o ar fresco e limpo característico da região, deixando para trás o calor poeirento daquela cidadezinha. Chegar em seu apartamento, olhar pela janela e ver a Praça Rui Barbosa em clima de festa – as pessoas passeavam naquele final de tarde, levando as crianças para andar de bicicleta e também para brincar nos balanços e gangorras – tudo aquilo trazia-lhe muita paz de espírito. Ele desfez as malas, jogando a roupa suja na máquina de lavar e foi tomar um merecido e demorado banho de chuveiro.

Quando terminou, vestiu as calças do pijama, ficando sem camisa - estava um pouco frio, mas sentir o toque do vento fresco em suas costas, peito e braços novamente era maravilhoso – e ligou para Sérgio a fim de contar-lhe que estava de volta.

-Que bom, Décio. Espero que a semana tenha sido produtiva. Conseguiu a história?

-E o que eu não consigo? É claro! Vou passar o resto da tarde colocando minhas anotações em dia e acho que daqui a dois ou três dias eu a entregarei a você.

-Ótimo! Tenho certeza que ela vai te render um prêmio. Mas... e a tal mulher? Deve ser uma criatura horrorosa, hein?

Décio sentiu-se triste.


-Endora? Não... ela era uma mulher forte, corajosa. Maravilhosa.

-Como assim, era?

-Ela morreu. Um dia antes de eu voltar.

-Que chato... bem mas a gente sabia que isso poderia acontecer. Ela estava muito doente.

Décio não respondeu. Sérgio sentiu que o amigo estava triste.

-Não vai me dizer que se apegou a ela?

-Me apegar a Endora? Não! Claro que não.

-Décio... está tudo bem com você?

-Sim. Tudo ótimo. Te ligo quando a história estiver pronta. Estou muito cansado, e morrendo de fome. Tchau.

Dizendo aquilo, Décio desligou o telefone, pois sabia que se ficasse conversando com Sérgio ele acabaria descobrindo que a história que ele escreveria não era a verdadeira história. Sérgio tinha um faro de jornalista impecável e infalível.

Enquanto isso, Brian abriu a porta vagarosamente e encontrou a casa semi escurecida, apesar da linda tarde lá fora. Colocou a mochila no chão e abriu as persianas da sala de estar, e dando alguns passos em direção ao seu quarto, deparou com a mãe sentada no sofá. Estranhou que ela apenas o cumprimentasse sem gritos ou cobranças. Foi até ela:

-Mãe? Tudo bem? Aconteceu alguma coisa?

-Patrícia olhou para ele. Tinha os cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, e usava um robe preto. Parecia alguns anos mais velha, pois estava sem maquiagem (Brian nunca via a mãe sem maquiagem ou desarrumada).

Ela bateu na almofada do sofá ao lado dela:

-Sente-se aqui, filho. Precisamos conversar.

Brian sentou-se ao lado dela devagar, achando que ia levar a maior bronca de sua vida. Mas Patrícia apenas fungou, e então ele notou que ela andara chorando.

-Mãe, você está me assustando!Olha, se é porque eu sumi por uns dias, eu estava com meu irmão, e a gente estava numa fazenda maneira, a gente acabou se entendendo de vez, já estou de volta, estou inteirinho e... mas e o papai? Cadê ele? Aconteceu alguma coisa com o papai!

-Está tudo bem com ele, Brian. Mas você precisa saber... nós estamos nos divorciando.

Ele suspirou de alívio, e relaxou no sofá ao lado dela. Brian estava quase feliz, pois o relacionamento  dos pais andava infernal há anos, o que refletia nele. Teve pena de Patrícia, e segurando a mão dela, disse:

-Sinto muito, mãe. Mas... é melhor assim. Vocês não se curtiam mais mesmo. E...eu vi você. Com aquele cara.

Patrícia não disse nada, mas ele notou que ela se sentiu desconfortável com o comentário dele. Enxugou os olhos na manga do robe, e ficou fitando o vazio. Finalmente, respondeu:

-Aquele homem não significava nada, Brian. E não foi por causa dele que nos separamos. Seu pai e eu... a gente não se entendia mais. Acho que nunca nos entendemos totalmente. Ele não era apaixonado por mim.

Brian respondeu rápido demais:

-E nem você por ele, né?

Patrícia riu tristemente.

-Mas ficou algo de bom: você.

Ele sorriu de volta. Nunca tinha visto a mãe falando tão baixo, de maneira tão não-afetada, totalmente sem maquiagem e sem máscaras. Muito menos, tão afetuosa.

-E a gente vai continuar morando aqui?

-Vamos sim. Seu pai fez questão que ficássemos com a casa e também prometeu que não vai nos faltar nada. A vida é tão irônica!

Ele encolheu os ombros, sem entender:

-Por que?...

-Imagine só... há anos, eu o roubei de Lana. Fiz de tudo para que Mauro ficasse comigo, e agora, os dois estão voltando. Ele vai voltar a viver com ela. Ele mesmo me disse.
Brian deixou escapar uma lufada de ar, e coçou a cabeça:

-Incrível!

Patrícia olhou-o, magoada.

-Como assim, incrível?

-Desculpe, mãe, eu não quis ofender você. Mas eu sempre achei que os dois tinham tudo a ver. Ele sempre falou muito bem dela, e ela, dele, apesar de tudo o que ele fez com ela. Acho que agora as coisas estão nos lugares certos.

Patrícia concordou com a cabeça, e respirando fundo, tentou sorrir, e retomando seu tom de voz autoritário, ordenou:

-É verdade, tenho que admitir. Agora vá tomar um banho para o jantar. Você está fedendo a suor.

Brian beijou a mãe no rosto, e obedeceu.

Décio olhou mela janela do apartamento, e viu a usual reunião dos jovens lá em baixo. Escutou a música alta e os sons das vozes e motores de motocicletas. Após algum tempo, viu uma cabeça ruiva olhando exatamente na direção dele; era Rafaela. Ela sorriu e acenou. Ele fez sinal para que ela subisse. Achou que precisaria de ajuda para escrever a história, afinal de contas. E precisava conversar com alguém, e sabia que Rafaela era uma ótima ouvinte.

Ele foi vestir uma camiseta de malha, e quando estava no corredor indo para a sala de estar, a campainha tocou, e ele abriu a porta para ela. Rafaela corou no momento em que o viu, abrindo um lindo sorriso, os olhos faiscando de paixão. Décio tentou olhar para ela da mesma forma, mas não conseguiu; só pensava em Sophie. Ela percebeu, mas não se deixou abater; beijou-o no rosto, dizendo:

-Que bom te ver, Décio!

-Tudo bem? Como você soube que eu estava de volta?

-Sérgio me disse. Achou que você talvez precisasse de ajuda.

-Entre. Vou fazer um café pra gente.

-Eu tomei a liberdade de encomendar uma pizza, ela vai chegar daqui a alguns minutos. Espero que não se importe.

-Não, foi genial a sua ideia, Rafaela. Estou morto de fome e não tenho nada em casa. Preciso fazer umas compras...

-Se quiser, amanhã de manhã eu passo no mercado e escolho alguns itens. Mandarei entregar aqui.

-Você realmente faria isso?

Ela sentou-se no sofá, cruzando as pernas e deixando um bom pedaço de coxas à mostra sob a saia curta:

-Claro! Logo de manhã, antes de vir para cá. O Sérgio me liberou para ajudar você no que precisar - (“no que precisar” foi acompanhado de um olhar maldosamente sexy).

Décio agradeceu, e eles começaram a conversar sobre a reportagem, e também sobre o livro que ele queria escrever. Ele contou a ela tudo sobre Endora, e Rafaela ouviu-o com atenção. Lá  de baixo, os sons de risos e música chegavam ao apartamento. A pizza também chegou, e após comerem, Rafaela sugeriu que fossem tomar um drink no bar, e Décio concordou. Há algum tempo não tinha um vislumbre do que ele chamava ‘uma vida normal’ – sem fantasmas, lágrimas e sombras o perseguindo.

Décio descobriu que Rafaela não era uma cabecinha vazia, afinal de contas. Em alguns momentos de sua narrativa, ele notou que os olhos dela marejaram, e que ela realmente comoveu-se com a triste história de Endora e Sophie. Ela disse ter pena principalmente de Endora, por ter pago por crimes que não cometera durante tantos anos, e que imaginar a figura de Sophie a transtornava e a deixava com medo. No bar, continuaram a conversa, e em certa altura, ela disse:

-Sabe... eu nem sequer conheço esta moça, esta Sophie. Mas sinto que ela tem uma energia bem pesada, pelo que você me conta. Mas... estou enganada, ou ela também é uma mulher muito bonita?

-Você está certa; Sophie é a mulher mais bonita que eu já vi.

Ela baixou os olhos, e passou a brincar com as gotículas de água que escorriam sobre o copo.

-E vocês dormiram juntos?

Por que mentir? Décio concordou com a cabeça, e Rafaela não disse nada – porém, sentiu o ciúme queimar dentro dela, insinuando-se como uma nuvem de fumaça negra. Mas ela pensou: “Eu não tenho o direito de sentir ciúmes; afinal, Décio não é meu namorado... ainda!” Sendo assim, Rafaela pigarreou, sorriu e mudou de assunto.

Na manhã seguinte, Décio decidiu visitar a mãe antes de iniciar os trabalhos, e ambos marcaram de almoçar na casa dela. Quando chegou lá, Décio surpreendeu-se ao encontrar seu pai sentado no sofá, lendo um jornal despreocupadamente. Lana ainda tentou explicar, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Décio disse, hostilizando a presença de Mauro:

-O que você está fazendo aqui? (ele olhou para Lana em busca de uma resposta). Foi Mauro quem falou primeiro:

-Olá, filho. Acho que vamos nos ver com muita frequência agora... eu e sua mãe reatamos. Digo, nós estamos dando a nós mesmos uma segunda chance.

Décio perdeu a paciência:

-Como assim? Você nos abandona para ficar com aquela... aquela caçadora, e agora volta sem mais nem menos? Está traindo ela também? Pai, você não se envergonha? Sabe quantos anos se passaram??? E mãe, como você pode...

Lana o interrompe, com voz firme:

-Décio, esta é a minha vida, e não lhe darei o direito de intrometer-se nela. Mauro é seu pai, nunca deixou faltar nada para você enquanto estivemos separados, e o que aconteceu entre nós não é problema seu. Tenha mais respeito por ele, por favor, filho.

-Décio, eu errei, errei muito, e pode ter certeza que eu paguei caro! Gostaria que você me desse uma chance também, de sermos novamente uma família. Por favor.

Mauro levantou-se e estendeu a mão para ele. Lana observou o rosto do filho passar por várias transformações: de ódio e raiva, que faziam as veias de suas têmporas saltarem, ela o vou perder a cor vermelha e  finalmente, as lágrimas que ele estava tentando conter escorreram. Décio as secou rapidamente com as costas da mão. Hesitou um pouco, colocando as mãos na cintura e respirando profundamente, e finalmente, após um silêncio constrangedor durante o qual Mauro permaneceu com a mão estendida, esperando, ele apertou a mão do pai, mas ainda com hesitação. Foi quando Brian surgiu pelo corredor, e viu a cena entre os dois. O rapaz sorriu, e começou a aplaudir:

-Valeu, irmão!

Décio olhou para ele, e sorriu, alegre por vê-lo por ali.

-Não vai dizer que você agora vai acampar por aqui também.

Brian gargalhou:

-Só de vez em quando. E Lana me disse que posso usar seu quarto, já que não mora mais aqui. Tudo bem pra você?

-Tudo bem, desde que não mexa em nada.

Ambos riram. Lana suspirou de alívio, observando as coisas voltarem aos seus devidos lugares.

A vida retomou seu rumo de sempre. A reportagem ficou pronta, e Décio sentiu-se muito grato pela ajuda de Rafaela, que fez o favor de não se arrastar para ele; quando finalmente eles terminaram, numa noite de quinta-feira, e Décio pode recostar na cadeira e relaxar após a última revisão que fizeram juntos do material, ele olhou para Rafaela, iluminada pela fraca luz do abajur e a da tela do computador; achou-a bonita, apesar da aparência um tanto cansada e do coque que estava desmanchando. Ela estava distraída, olhando algo na tela, e não percebeu o olhar dele. Ela se moveu, e o perfume que usava chegou até Décio, despertando-lhe desejo. Pela primeira vez, após vários dias, ele não sentira falta de Sophie.

Decidiu que após entregar a reportagem a Sérgio, escreveria seu livro como se fosse ficção, mas incluindo detalhes da verdadeira história, a versão contada por Sophie.

Sérgio adorou o trabalho dos dois, e a publicação foi um grande sucesso. Houve uma festa no escritório para comemorar, e Décio estava em um momento profissional muito bom. Achou que era hora de mudar de apartamento, procurar um lugar mais tranquilo, sem barulho e sem tantas caixas empilhadas pelos cômodos, mas com mobília de verdade; algum lugar realmente agradável, organizado. E foi Rafaela quem o ajudou nesta tarefa. Acabou encontrando para ele um apartamento no final da Rua Ipiranga, em um antigo condomínio. O lugar era espaçoso e tranquilo, e ainda dispunha de uma área de lazer e um pequeno jardim.

A mudança foi fácil; todas as poucas coisas que Décio possuía couberam em uma viagem de um pequeno caminhão. O apartamento precisava de decoração e mais mobília, um toque feminino, e novamente, ele pode contar com a ajuda de Rafaela. Os dois estavam juntos, mas segundo Décio deixou claro, sem compromissos, para ver no que ia dar. Ela dormia com ele algumas noites, eles saiam juntos com amigos ou sozinhos, e Décio continuava vendo outras garotas ocasionalmente, até que ele finalmente achou que poderia ter algo mais sério com Rafaela e parou de sair com outras mulheres. Para ela, aquela decisão foi tão esperada, que ela teve que se segurar para não sair cantando e pulando pela rua!

Também ficou feliz no dia em que eles, de mãos dadas, fizeram a comunicação sobre o namoro oficial aos amigos.

Seis meses depois, o livro estava progredindo aos poucos; Décio achou que não faria mal contar a Rafaela que aquela era a verdadeira história de Sophie e Endora, e Rafaela não se surpreendeu:

-Eu já desconfiava. Nossa... que vida elas tiveram! Tomara que a Sophie consiga ser feliz, encontrar alguém, sei lá...

Décio notou que ela estava sendo sincera. Falar de Sophie, conversar sobre ela, já não o machucava 
mais. Estava começando a gostar de Rafaela de verdade. Ela era uma mulher muito bonita, uma grande amiga, sexy, companheira, excelente companhia e não ficava pegando no pé dele como ele pensara que aconteceria. Não era ciumenta e insegura, era madura e forte. E estava completamente apaixonada por ele. Ele não podia dizer o mesmo em relação a ela, mas o sentimento que ele tinha por Rafaela era bem mais forte do que tivera por outras mulheres – a não ser Sophie, é claro. De repente, ele pensou em onde ela estaria, o que estaria fazendo...mas aquele pensamento fugaz  passou rapidamente entre os beijos de Rafaela.

(continua...)














domingo, 24 de julho de 2016

A RESENHA DO MAL, CAPÍTULO XV



Ninguém da cidade compareceu ao velório de Endora, e da fazenda, apenas uns poucos funcionários, necessários para que o velório e o sepultamento – que ocorreu no cemitério da família, na própria fazenda – pudesse acontecer. Décio tentou ficar ao lado de Sophie, mas ela o ignorou e recusou-se a aceitar a sua mão ou qualquer tipo de consolação que viesse dele. Ela chorava um pranto silencioso e cheio de raiva, que escorria do seus olhos vidrados como se fosse água em uma cachoeira, naturalmente. Logo após o sepultamento, Diana entrou em um táxi que já aguardava por ela no pátio em frente à casa, e foi embora sem olhar para trás; ficaram apenas Décio, Brian e Sophie, olhando o carro desaparecer na estrada em meio à poeira avermelhada. 

Quando ninguém mais podia ver sinais do carro, Brian e Décio se entreolharam, e Sophie entrou na casa, trancando-se no quarto.  Os dois irmãos sentaram-se em silêncio nas cadeiras puídas da varanda, e finalmente Brian perguntou: 

-E agora, irmão? 

Brian observava os empregados que voltavam para suas casas, ao longe. O dia estava terrivelmente quente, apesar de cinzento e sombrio. Pensava no que faria de sua vida, no que realmente pensava em fazer, e a pergunta do irmão o sacudiu:

-Acho que vou embora.

-Sozinho?

Ele olhou para Brian, dando-lhe um tapinha de leve no ombro, e indo sentar-se na beirada do muro baixo que cercava a varanda:

-Acho que sim. Sophie não quer nada comigo.

Brian aproximou-se, sentando-se ao lado dele:

-Acho que talvez seja melhor assim. Sabe... eu tenho um amigo na escola. A mãe dele sofre de alguma doença emocional que eu não sei o nome. O pai dele passa maus momentos por causa disso, aliás, a casa toda parece que gira em torno dela, as pessoas andam cabisbaixas, falando pelos cantos, pisando em ovos para não fazerem barulho e tentando não fazer com que a mãe do meu amigo tenha uma explosão. Eles tem grana, sabe, e queriam viajar, mas a mulher sofre de uma tal... síndrome...

-Síndrome do pânico?

-Isso mesmo. Ela não consegue sair de casa. O pai tentou viajar sozinho com os filhos nas férias, mas ela entrou em crise e deu o maior piti. Eles tiveram que cancelar tudo. Os garotos foram sozinhos, e o pai do meu amigo teve que ficar com ela. Mandou o motorista acompanhar as crianças na viagem, no lugar dele. É barra pesada, cara... você não acha?

-Mas... por que você está me contando tudo isso?

-Parece que a sua musa tem a mesma coisa que a mãe do meu amigo, sabe... e eu... sempre te admirei porque você é um cara que está sempre alegre, independente, adora viajar, tem uma cara feliz, é ‘pra cima.’  Tenho medo que ela te pegue pelo pé. A Sophie, quero dizer. Estamos aqui há alguns dias, e ela nunca falou comigo direito, e quer saber? Nem com você. ela é muito estranha...

Brian ficou esperando para ver se o irmão responderia alguma coisa; como ele permaneceu em silêncio, Brian continuou, com mais entusiasmo na voz:

-Acho que a Rafaela é bacana. Além de bonita, ela é mais parecida com você.

-Dado conselhos sentimentais agora? 

Brian riu:

-Não! É que...

-Brian, você tem só dezessete anos. Deixa que eu escolho as minhas mulheres, OK?

Décio afastou-se, e Brian respirou fundo. O irmão não gostava mesmo que dessem opiniões em sua vida!

Décio foi bater à porta de Sophie. Tentou duas vezes, e ficou escutando, mas ela não respondeu. Sem pensar duas vezes, ele girou a maçaneta e entrou. Encontrou-a deitada reta na cama, o braço cobrindo os olhos. Ela grunhiu:

-Não estou a fim de conversar.

-Mas eu estou, Sophie.

Ela descobriu os olhos, sentando-se na cama:

-O que você quer?

-Saber o que você vai fazer agora. Tenho que voltar para Petrópolis, e...

-O que eu vou fazer dependerá do que você vai fazer, Décio: você vai publicar a versão verdadeira da minha história?

Ele hesitou, sentando-se na cama ao lado dela, esfregando as mãos devagar. Ele deixou que a resposta surgisse como por instinto, já que toda vez que pensava nela, os seus pensamentos davam um nó. E o que surgiu foi:

-Eu vou manter a versão de Endora.

Ele olhou para ela. Sentiu que as feições de seu rosto pareciam se aliviar, e ela balançou a cabeça, e olhando para ele, disse:

-Obrigada. Mas... antes eu tenho que te contar uma coisa.

Ele ficou tenso, pois o que mais havia naquela história que ele desconhecia? De repente, o ar em volta deles encheu-se de tensão. A luz do teto piscou várias vezes, antes de explodir em miríades de caquinhos pequenos, assustando a ambos. Eles saíram correndo do quarto, e Sophie pegou-o pela mão levando-o em direção à cozinha, enquanto Décio, confuso e assustado (mais assustado do que ela) perguntava:

-O que foi aquilo?!

-Não importa, Décio.

Os dois chegaram à cozinha, e Sophie serviu-lhes do vinho que tinha sido aberto há algumas noites. Estava ruim, mas Décio engoliu-o assim mesmo. Sentou-se, esperando que ela começasse a falar.

-Décio, o que eu fiz quando eu era criança... é disso que eu quero falar.

-Você não precisa, Sophie. Não sabia o que estava fazendo, e...

-Eu sabia!

Ele parou, o copo de vinho apertado entre os dedos. Olhou para ela, e os olhos dela estavam injetados:

-Eu sabia muito bem o que estava fazendo. Eu vi o que o líquido no vidro tinha feito ao rato. Eu vi o animal se contorcendo e guinchando de dor, até morrer. Eu sabia, e desde aquele momento, eu soube que aquela era a minha libertação, e eu planejei tudo meticulosamente. Eu sabia também que crianças não iam presas, e que algum adulto iria pagar o pato por aquilo, mas jamais pensei que fosse a minha mãe... mas mesmo assim, quando ela assumiu a culpa, eu tive tanto medo que deixei que ela fosse presa, acusada de tudo durante todos esses anos, para que eu pudesse ter uma chance de sair deste lugar e começar uma vida nova. Eu sabia, Décio, e eu permiti que tudo acontecesse daquela forma! Mas eu nunca fui feliz. Quando saí desta casa, levei comigo todos os meus fantasmas, os fantasmas daqueles a quem eu matei, e a dor de saber que minha mãe estava em uma prisão por minha causa!

Ele ficou de olhos arregalados, sem saber o que dizer; ela continuou:

-Eu estou amaldiçoada por este lugar e por estas pessoas, Décio. Eu mesma me amaldiçoei também. 

Ele murmurou:

-Mas... eu entendo você, Sophie, eu... sinto muito por tudo, mas você precisa deixar esses fantasmas aqui e continuar sua vida, tentar ser feliz!

-Ser feliz?!


Ela deu uma gargalhada insana:

-Você está prestando atenção ao que está dizendo, Décio? Não existe esta possibilidade!

Ele sabia que ela tinha razão, e o coração dele derreteu de dor e de medo. Ele começou a chorar baixinho, por ela, pelo amor que nascera e morrera apenas algumas horas depois.

-Mas eu... eu amo você!

Ela negou com a cabeça:

-Não; você ama uma imagem que você criou, e que não existe. Você me deseja, deseja a minha beleza e a perfeição que acha que pode trazer para a minha vida, mas você simplesmente NÃO PODE! Eu não nasci para ser feliz, não nasci para ser como as outras pessoas, Décio. Acho que todo mundo nasce com um botão que faz com que as ouras pessoas se aproximem delas e gostem delas. Eu nasci sem esse botão. Não consegui conquistar nem o amor de meu pai verdadeiro.

-Sua mãe te amava muito!

-Não! Ela me manteve prisioneira dessa história. Antes de eu fazer tudo aquilo, ela tinha tudo planejado: na manhã seguinte àquela noite em que coloquei veneno no chá, ela ia fugir com meu pai verdadeiro. Os dois tinham planejado tudo. Eu atrapalhei. Ela ia me levar junto, e eu atrapalhei. Ela não queria que eles fossem feito fugitivos por um crime que não cometeram, então, para salvá-lo dela, ela confessou o crime. Ela me disse isso pouco antes de morrer. Ela me disse, na minha cara, que nunca foi por mim. Sabia que ele tentaria fugir com ela assim mesmo, mesmo após a morte de todas aquelas pessoas, pois ele a amava. Mas sabe o que ela me disse? Que não queria que ele se tornasse um fugitivo por minha causa. Que não queria que eu fosse na vida dele a maldição que eu era na vida dela.

Décio não podia acreditar no que estava ouvindo! Mas olhando nos olhos dela, ele viu que era tudo verdade. Sophie não era mulher para ele, ou para qualquer homem sensato. Ela não era feliz e nunca faria ninguém feliz. Qualquer um que se aproximasse dela estaria entrando voluntariamente em sua maldição. 

-Mas e agora, Sophie?

-Agora? Vou embora daqui,.. Vou ganhar o mundo. Me ofereceram um trabalho como fotógrafa, correspondente de guerra em um país africano. É para lá que eu vou. Tentar criar algum tipo de vida para mim.

Ele segurou as mãos delas com força:

-Mas... e eu? O que eu vou fazer sem você?

-Vai ser feliz. Vai fazer aquilo que você nasceu para fazer. Agora pegue suas coisas e seu irmão, e vá embora daqui, antes que o que me persegue passe a perseguir vocês. 

Dizendo aquilo, ela puxou as mãos de dentro da concha das mãos dele. Levantou-se bruscamente, derrubando a cadeira, e foi para o quarto arrumar as próprias malas. 

Décio fez o mesmo. Não havia esperanças para aquele amor. Logo, suas malas estavam arrumadas no carro, e Brian esperava por ele no assento do carona. Ainda olhou pela janela a fim de ver Sophie pela última vez, mas não houve qualquer sinal dela. Uma aura de nuvens negras cercava a casa. Um trovão ribombou, seguido por um raio, e a tempestade começou a desabar. Décio entrou no carro, e eles foram embora daquele lugar, em silêncio. Ele ainda passou na casa para pegar seu computador, e depois, foi devolver a chave à Marta. Quando chegou lá, Brian ficou esperando no carro enquanto ele bateu à porta da casa. Marta abriu a porta, e esticando o pescoço em direção ao carro, acenou para Brian; percebeu que os dois estavam sozinhos, e disse:

-Boa viagem, meu filho. Você tomou a decisão certa. 

O caminho foi percorrido quase em silêncio. Aos poucos, quanto mais se afastavam daquela cidade e daquela casa, o céu começou a abrir-se em um azul lindo e brilhante. Brian ligou o rádio, e uma música alegre encheu o silêncio entre eles. Brian começou a tamborilar os dedos de leve na capa do celular ao ritmo da música, e logo conseguiu obter um leve sorriso do irmão. 

Lá atrás, Sophie também colocou suas coisas no jipe. Tinha uma passagem de avião. Antes de sair, ela banhou toda a casa com querosene: tapetes, cortinas, estofados. O tempo todo, ela sentia que o bafo daqueles espíritos que a odiavam tentavam gritar em seus ouvidos e enlouquece-la. Ouvia gargalhadas e portas batendo. Quase foi empurrada do topo das escadas, mas conseguiu segurar-se a tempo no corrimão. Quando aquilo aconteceu, ela berrou:

-Vocês vão queimar no inferno agora! Vão queimar por terem feito isso da minha vida, e por terem feito com que minha mãe não me amasse mais. Eu não tenho e nem nunca tive medo de vocês, seus ordinários!

Ela chorava e derramava o querosene pela casa toda, feito louca. O rosto vermelho e os olhos marejados faziam com que a cena parecesse algum filme de terror barato. Finalmente, quando chegou à sala de estar, ela acendeu o fósforo. E foi quando ela a viu.

Endora estava parada junto à porta de entrada. Sophie estancou, o fósforo imediatamente sendo apagado por um vento que ela não sabia de onde vinha, já que o lugar estava todo fechado. Endora ergueu a mão em direção a ela, e Sophie ouviu sua voz:

-Eu amo você, filha. Você entendeu tudo errado... você sempre distorce tudo o que as pessoas tentam lhe dizer. Eu só quis que vocês dois fossem felizes. Você e seu pai. E achei que Décio fosse fazer você feliz, mas você não o deixou! Mas ainda há tempo, vá atrás dele, vá agora!

A imagem de Endora foi desaparecendo aos poucos, antes que Sophie conseguisse dizer qualquer coisa. Ela chamou, a voz embargada pelas lágrimas:

-Mãe!

Mas apenas o silêncio respondeu. Sophie jogou fora o fósforo apagado, e acendeu outro. Jogou-o no chão, sobre o tapete embebido em querosene, e o fogo logo começou a pegar, lastrando sobre os estofados. Ela podia sentir o ódio daqueles fantasmas que habitaram aquela casa durante todos aqueles anos. Logo, o lugar todo era uma grande fogueira. Ela girou a maçaneta, e saiu. 

(continua...)










segunda-feira, 18 de julho de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO IXV







Enquanto todos aqueles acontecimentos funestos ocupavam a mente das pessoas na pequena cidade de Bernardina, em Petrópolis Lana aguarda a chegada de Mauro. Após tantos anos de ausência, desde que se separaram, os dois apenas trocavam algumas palavras quando necessário, devido aos ciúmes de Patrícia. 

Lana estava de férias, e tinha o dia todo pela frente; planejara ir até a piscina do clube e passar o dia por lá, lagarteando ao sol com algumas amigas, mas quando estava pronta para sair, o telefone tocou: era Mauro. Ele parecia constrangido por ligar para ela, e Lana logo pensou que pudesse ter acontecido alguma coisa com Brian:

-Mauro... que surpresa! Está tudo bem? É alguma coisa com Brian?

-Não... na verdade, não. Brian está bem, parece que ele e o irmão estão finalmente conseguindo se entender.

-Bem, isso é ótimo! Até que enfim! Eu sempre aconselhei Décio neste sentido. Mas ele tem ciúmes de você com Brian; acha que depois que ele nasceu, você deixou de dar atenção a ele. 

-Não é verdade... quero dizer...ele pode ter razão. 

-Como assim?

Ela escutou a respiração dele do outro lado da linha.

-É que eu fiz concessões demais à Patrícia, e acabei deixando meu filho mais velho um pouco de lado, ou dando a ele menos atenção do que eu deveria ter dado. Mas quero recuperar o tempo perdido, as coisas que eu perdi dele... você acha possível?

Lana pensou por um minuto antes de responder. Ela sempre ouvia o filho falando do pai com muito ressentimento. Achou melhor ser cuidadosa em sua resposta:

-Talvez. Se você realmente tentar desta vez. Sem se deixar levar pelos ciúmes absurdos de Patrícia.

Mauro respirou fundo antes de dizer:

-Patrícia e eu... nós estamos nos separando.

Lana sentiu o coração dar um salto. Deveria estar feliz com a notícia, mas lamentava que Brian tivesse que voltar para casa e enfrentar o divórcio dos pais. E no fundo, ela sempre guardara a esperança de que um dia Mauro cairia em si e veria a grande bobagem que fez ao trocá-la por Patrícia. Porém, conforme os anos foram passando e o casal apenas demonstrava felicidade em público, ela acabou se convencendo de que aquilo não iria acontecer nunca, e se acontecesse, ela seria a última a saber. Um pouco de ressentimento veio à tona:

-Lamento. Mas o que eu posso ter a ver com isso, Mauro?

Ele hesitou antes de responder. Lena esperou, as mãos trêmulas. Finalmente, mauro disse:

-Podemos conversar pessoalmente? Você não vai trabalhar hoje, vai?

-Não. Como você ficou sabendo?

-É que eu liguei para o seu escritório, e me informaram que você está de férias. Posso... posso ir aí agora? Preciso muito falar com você.

-Bem, eu estava indo ao clube.

Ela sentiu a decepção dele:

-Oh... mas é claro, que pena, você... é claro, me desculpe. 

-Onde você está?

-Em frente a sua casa. No carro.

Ela correu até a janela, e quando o viu, ele acenou para ela. Lana sentiu o velho clamor da paixão, 
pois lembrou-se dos tempos em que eles eram namorados e ele ia até a casa de seus pais busca-la para irem sair. Ela de repente se viu sentindo as mesmas velhas emoções, e descobriu que ainda o amava. Descobriu não confessou a si mesma. Porque ela sempre soube, na verdade. Apesar de todos aqueles anos, mágoas, decepções e silêncios mal explicados, Lena ainda amava seu ex-marido. Ela sorriu para ele, e fez sinal para que entrasse.

Enquanto ele saía do carro, Lana se viu ajeitando os cabelos e ajustando a saída de praia ao corpo, e calçou rapidamente as sandálias de saltos médios que usaria para ir ao clube. Olhou-se no espelho; correu até a bolsa e passou nos lábios um batom rosado que encontrou dentro dela. Sentou-se no sofá com o coração aos pulos, feito uma adolescente, esperando o som da campainha tocando. Quando ela o escutou, Lana quase saltou do sofá, mas se conteve no meio do caminho, pois não queria demonstrar muita ansiedade por rever mauro. Devagar, ela chegou até  aporta e girou a maçaneta. Do outro lado, mauro sorriu para ela. Ela mandou que ele entrasse:

-Sente-se, Mauro. Bebe alguma coisa?

Ele olhou em volta, notando as muitas mudanças na decoração da casa. Percebeu que Lana tinha varrido a presença dele. 

-Não, obrigada, Lana. E obrigada por me receber.

Ela se sentou em frente a ele, torcendo as mãos, mas tentando parecer calma. Ele estava mais bonito 
do que nunca, ela pensou. Mauro olhava para o rosto da ex-mulher, satisfeito por ver que ela envelhecera um pouco, naturalmente, mas que ainda tinha lindas feições e um corpo bonito, que não tentara modificar com plásticas e injeções de botox, como Patrícia fazia. Lana tinha a mesma beleza natural, bem-cuidada, mas sem artificialismos exagerados. Respirando mais fundo, ele percebeu que ela ainda usava o mesmo perfume – o que ele adorava. Mauro começou:

-Não quero tomar muito do seu tempo... eu vim falar de Décio. E de Brian. 

-Como você acha que Brian reagirá ao divórcio?

-Acredito que bem... certa vez, durante uma discussão entre mim e Patrícia, ele até sugeriu que nós nos separássemos, pois poderíamos ser bem mais felizes longe um do outro. Isso foi há quase dois anos. Como ele estava certo!

-Uma pena... Mas fico feliz que ele se adapte logo.

-Pois é, Lana.

-Onde você está morando agora?

-Na verdade, estou em um hotel. Eu e Patrícia nos separamos há apenas um dia e uma noite. Logo começarei a procurar um apartamento. Espero que Brian decida viver comigo.

-E você acha que Patrícia vai concordar com isso?

-Ele tem quase dezoito anos. Logo poderá decidir com quem vai querer ficar. Espero que ele me escolha. Acho que ele vai me escolher.

Ele riu, e ela concordou com a cabeça. Esperou que ele continuasse a conversa. Mauro pigarreou:

-Então... 

-Por que se separaram? (ela levou a mão à boca, ficando logo vermelha) me desculpe, eu não deveria ter perguntado isso!

Ele riu de novo, e coçou o queixo. Ela achava aquele gesto muito charmoso. Ele sempre fazia aquilo. Como estava acostumada a ele!

-Não, tudo bem. Nós nos separamos por um único motivo: porque nunca deveríamos ter nos casado, para início de conversa. Patrícia é bem mais jovem. Eu sei... sempre soube que de uns tempos para cá  ela vinha tendo seus casinhos com caras bem mais jovens que eu, e nem me importava. E não me importar fez soar um alarme. 

Lana lembrou-se das inúmeras vezes em que ele chegava tarde em casa, por estar com Patrícia, e o quanto ela sofreu e se importou. Mas não disse nada. Aquilo ficara no passado, e ela se surpreendeu ao descobrir que já não tinha a menor importância.

-Mas o maior motivo, foi o ciúme dela. Ela sempre sentiu muitos ciúmes de Décio. Mas principalmente, de você. Teve um “piti” depois que conversei com você ao telefone, quando Brian sumiu... fez um escândalo. Ela no fundo sabia que eu nunca deixei de pensar em você.

Aquela confissão fez com que Lana perdesse o chão. O que significava tudo aquilo? Não podendo encará-lo, ela foi até o bar e começou a preparar dois drinks – apesar de ainda não ser meio-dia. Tomou um gole bem grande de Martini, e serviu-se de mais um pouco. Levou a ele o Martini, do jeito que ele gostava.

-Mauro, eu não estou entendendo aonde você quer chegar...

Ele foi direto:

-Preciso saber, Lana: você está com alguém?

Ela quase perdeu a fala; que direito ele tinha de perguntar-lhe aquilo? Após tantos anos, só porque ele estava divorciado não lhe dava o direito de tentar reaproximar-se dela. E Lana disse aquilo a ele, com todas as letras. Mauro escutou-a em silêncio, e colocou o copo na mesinha de centro após toma-lo todo de um gole só. 

-Desculpe, Lana... mas eu me dei conta de muitos erros que cometi. 

-Só porque Patrícia pediu o divórcio?

-Não foi ela quem pediu; fui eu! Se dependesse dela, ainda estaríamos vivendo aquela mentira.

-De que mentira você está falando, Mauro? Você se separou de mim para ficar com ela. Eu não causei nenhuma dificuldade. Você também não pensou duas vezes antes de me deixar e deixar seu filho pequeno para ir atrás de uma aventureira... desculpe, eu não deveria ter chamado Patrícia assim. Mas é o que ela era. Apostou todas as fichas em você, e ganhou. Se não fosse você, seria outro qualquer. Qualquer um que pudesse sustenta-la e dar a ela a vida de rainha que sonhava. 

Aquelas palavras, engasgadas durante tanto tempo, saíram aos borbotões, e Lana sentiu-se aliviada ao dizê-las. Mas surpreendentemente, não havia nelas nenhum tom de raiva, apenas de constatação. Um desabafo. Uma lembrança. Mauro concordou com ela:

-Você está coberta de razão, Lana. Mas tem uma coisa que você não sabe. Eu nunca te disse que naquela manhã, quando acordei e achei minhas malas prontas ao lado da cama, e a casa vazia, eu me arrependi do que estava fazendo. Compreendi que não queria deixar você para ficar com Patrícia. Mas você aceitou tudo sem questionar, sem fazer cenas de ciúmes, sem pedir para que eu ficasse... sem lutar por mim. Achei que não me amasse mais, ou que estivesse com muita raiva de mim.

-E eu estava, Mauro. Mas de nada adiantaria demonstrar. Tenho certeza de que se eu tivesse pedido a você quer ficasse, você teria ido embora atrás dela da mesma maneira.

Ele respirou fundo:

-E eu esperava que você me pedisse para ficar. Quando não pediu, eu fiquei arrasado. Achei que a única coisa a fazer, fosse pegar as malas e ir embora. E eu fui...

Lana sentiu que ele estava dizendo a verdade, e sentou-se novamente em frente a ele:

Se eu tivesse pedido, você teria ficado, Mauro?

-Sim, eu teria. 

Ela percebeu o quanto as pessoas se afastavam umas das outras devido a mal-entendidos como aquele. Então, todos aqueles anos poderiam ter sido diferentes se ela ao menos tivesse engolido seu orgulho e pedido para que ele ficasse? Ou se ele tivesse dito que estava arrependido, e que a amava? Mas ninguém disse nada, e as coisas aconteceram como aconteceram.
Ela se lembrou da tarde quando eles foram assinar os papéis do divórcio, e que ele tinha os olhos vermelhos e evitava olhar para ela. Estava magro, e as roupas, mal arrumadas. Após a assinatura dos papéis, no corredor, ela escutou quando ele chamou o nome dela com a voz embargada, mas caminhou mais rapidamente em direção à saída e não o atendeu. 

-Você nunca amou a Patrícia?

Ele negou com a cabeça:

-Não. Patrícia era como um prêmio, uma boneca-troféu que eu exibia e fingia amar diante dos amigos. Mas eu não estava enganando ninguém, pois meus amigos – que eram antes meus e seus amigos  nunca a aceitaram totalmente, o que a deixava louca de raiva, até que todos eles se afastaram, e fizemos novos amigos ao gosto dela. Todos levianos, vazios, fúteis. 

-Vocês nunca foram felizes?

-Tivemos nossos momentos, principalmente, junto de Brian. Mas quando penso nisso, quase todos  os outros bons momentos que passei ao lado dela, aconteceram em uma cama. Aprendi que ser feliz na cama é bem menos importante do que eu pensava para uma relação. Há outras coisas, além disso. E ser feliz com alguém era tudo o que eu tinha com você: companheirismo, cumplicidade, amizade, amor, paixão, sonhos em comum, gostos parecidos, aconchego... coisas que eu e ela jamais tivemos. 

Ela concordou com a cabeça, e secou as lágrimas na pontinha da toalha que estava na bolsa. Não queria ter chorado na frente dele, mas era tarde. Mauro a olhava também com os olhos cheios de lágrimas, e via a imagem dela embaçada pelas lágrimas que ele finalmente permitiu que caíssem.

Mauro disse:

-Eu não sei se você vai se lembrar, mas uma vez eu e Patrícia entramos em um restaurante onde você estava jantando com outro homem. 

-Eu me lembro; foi mais ou menos uns cinco anos após a nossa separação.

-A noite acabou para mim quando eu vi você com ele. E Patrícia percebeu logo de cara... tivemos uma briga feia em casa.

Lana encolheu os ombros, sem saber o que dizer. Mas ela se lembrava bem daquela noite: o homem que estava com ela acabou sendo apenas uma aventura passageira, algo para preencher o vazio que Mauro deixara. Ela também se sentira muito ferida ao ver Mauro na companhia de Patrícia, que quando a viu no restaurante, tratou de exagerar nos carinhos e beijos que dava em Mauro. Ela percebeu que ele estava constrangido, mas jamais pensou que fosse por causa dela, e sim devido às carícias em público de Patrícia, que estava fazendo com que as pessoas olhassem e comentassem. Mauro continuou: 

-Eu sei que foram muitos anos separados, e que sua vida seguiu em frente, assim como tentei seguir com a minha, Lana, mas se algum dia você pensar que poderia me perdoar e me dar uma nova chance, ficarei muito feliz em poder tentar dar a você o que eu deveria ter dado. 

A cabeça de Lana dava voltas. Ele se despediu dela com um beijo na testa, e saiu, fechando a porta devagar. Ela ficou ali, sentada no sofá, sentindo frio naquele início quente de tarde. Pensou em tudo o que ele dissera, e que ela guardara a esperança de ouvir aquelas mesmas palavras há anos. Mas nunca pensou que seriam tantos anos!

Ligou para as amigas que a esperavam no clube, e disse que estava resfriada e não poderia ir. Não estava disposta a entrar nas conversas animadas e engraçadas das amigas. Ao invés disso, ela ficou em casa. Fez uma faxina geral. Faxinar sempre fazia com que ela pensasse melhor. Quando terminou, o sol estava se pondo, e a casa brilhava. Cansada, tomou um longo banho de banheira com seus melhores sais, e depois foi assistir a um filme romântico na TV. Enquanto via o filme, pensou que seria muito agradável se Mauro estivesse ali, assistindo-o junto com ela; mas seria possível recomeçar, depois de tantos anos separados?


(continua...)





quarta-feira, 13 de julho de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO XIII








Décio voltou a dormir rapidamente, apesar de assustado. O cansaço psicológico daqueles últimos dias tinham-no deixado um pouco apático. Não sabia o que faria na manhã seguinte – se diria a Sophie que estava indo embora para sempre, ou se publicaria a história verdadeira; não sabia como ficaria seu relacionamento com o irmão dali para frente, se voltaria para casa e procuraria outro apartamento em um local mais silencioso ou se tinha se acostumado ao barulho e não conseguiria mais viver sem ele. Com aquela mistura de pensamentos totalmente desconexos, ele voltou a adormecer.
Mas a manhã seguinte foi ainda mais tumultuada e psicologicamente desgastante, trazendo a solução para  a maioria dos seus questionamentos de uma forma brusca, inesperada. Acordou com um grito dolorido de mulher. Ao mesmo tempo, Brian adentrou o quarto, abrindo a porta com força, e penando que Décio ainda dormia, passou a sacudi-lo:

-Acorde, Décio! Venha correndo! É Endora!

Ainda tonto de sono, Décio entreabriu um olho e checou a hora no celular: sete e trinta e cinco. Assustado, ergueu-se, passando a mão sobre os cabelos, tentando arrumá-los um pouco. Enquanto calçava os tênis, perguntou ao irmão:

-O que houve com Endora?

-O que todo mundo já sabia que ia acontecer. Sophie está muito mal, acaba de descobrir. Eu estava passando pelo quarto dela, quando Diana abriu a porta chorando e me contou o que tinha acontecido, e foi chamar Sophie. Eu entrei, e ela estava lá, deitada e inerte, e quando Sophie a viu, deu um grito. Mas...

Naquele ponto da narração, Décio já estava de pé, encaminhando-se até a porta.

-Mas o quê?

-Eu poderia jurar que ela abriu os olhos quando Sophie entrou. Foi bem rápido... Talvez ela nem estivesse morta ainda. 

-Nesta casa, todo tipo de esquisitice é possível. Vamos ver Sophie!

Ao chegarem no quarto, encontraram Sophie sentada na cadeira em frente à cama da mãe, séria e com aparência serena, apesar dos olhos vermelhos mas já secos de lágrimas. Ela ergueu os olhos para eles, respirando fundo e tentando reassumir sua costumeira postura fria. Porém, Décio percebeu que aquilo era apenas uma máscara de proteção, e caminhou até ela, ajoelhando-se ao seu lado e segurando sua mão. Ela olhou para ele, e ele sentiu o peso de sua tristeza. Ele ia dizer alguma coisa, mas não sabia ainda o que, quando Sophie levantou-se de repente:

-Bem, agora eu preciso tomar algumas providências. Acho que o final da sua história acaba de ser escrito.

Ele não entendeu a ironia na voz dela. Brian olhava para ambos, sem nada dizer, sem saber se seria uma boa ideia desejar os pêsames a Sophie, abraça-la ou ficar quieto. Achou que seria mais conveniente sair do quarto e esperar na sala, com Diana. Ele mal conhecera Endora, mas descobriu que aprendera a gostar dela, e sentia sua morte. Era a primeira vez que ele estava diante de uma perda, e não sabia como lidar com aquelas emoções. Disse isso a Diana, e ela apenas respondeu:

-Não se preocupe, menino. Na verdade, ninguém sabe, e nunca aprende.

Brian sentiu um vento gelado em sua nuca, e teve um calafrio. Poderia jurar que também ouviu alguém sussurrar ‘adeus’ em seu ouvido, mas não se atreveu a compartilhar aquele pensamento com Diana. Com certeza, ela pensaria que ele é louco. 

No quaro de Endora, a atmosfera era densa. Sophie parecia estar usando Décio para descarregar a sua dor. Ele não sabia o que dizer ou pensar, pois queria ajudar, mas ela recusava toda e qualquer tentativa de ajuda vinda dele. Ele apenas observou quando ela mesma pegou o telefone e tratou da preparação do corpo e do velório, que seria feito ali mesmo, na sala da casa, como eram feitos todos os velórios antigamente. Não chamou ninguém – nem mesmo seu pai. Diria a ele mais tarde. Não fazia sentido que ele visse sua mãe agora. 

Décio tentava chegar até ela, mas Sophie não deixava. Finalmente, após o longo silêncio que se seguiu quando ela desligou o telefone, ele tentou de novo:

-O que você vai fazer agora, Sophie? Da sua vida? Vai ficar aqui ou voltar para Paris?

Ela encolheu os ombros:

-Ainda precisarei ficar aqui para tratar de alguns papéis. Tenho que achar um advogado, dar entrada no inventário... depois.. eu não sei. Só sei que não volto para Paris, e se voltar, será para viver longe dos meus tios.

-Você não vai avisar à sua família em Paris?

Ela negou com a cabeça:

-Não. Garanto que não estarão interessados, apenas dirão que sentem muito, que se eu precisar de alguma coisa posso contar com eles, e essa coisa toda que se diz quando alguém morre. Também vão fazer perguntas, querendo saber se eu vou voltar ou se finalmente se livraram de mim. Sabe, eu sempre me senti um peso na vida deles, algo que eles carregavam por caridade, por grau de parentesco, como se não tivessem opção. 

-Mas... eles a destratavam?

-Não. Fiquei em uma escola interna nos primeiro cinco anos. Depois, vivi algum tempo com eles até a faculdade, quando também fui embora. Arranjei um trabalho como fotógrafa, aluguei meu próprio apartamento. Eles me davam alguma ajuda financeira para o aluguel, mas depois que eu me mudei, não nos víamos com muita frequência. Foi quando eu me dei conta de que não estavam realmente interessados. Antes, eu tentava negar. Eram polidos. Só isso.

-Talvez você esteja enganada.

-Como pode afirmar? Não os conhece.

Ele se aproximou dela, obrigando-a a olhar para ele:

-Você não é nenhum exemplo de calor humano, Sophie. Mas... eu sinto que existe um coração quente aí dentro (ele tocou-a entre os seios). Só não entendo por que você faz questão de ignorá-lo.

Ela segurou a mão dele, retirando-a devagar da posição em que ele a colocara:

-Você não me conhece. Eu carrego uma maldição: a de ter morado nesta casa. A de ter vivido tudo o que vivi aqui dentro, vendo o quanto minha mãe era maltratada, e sentindo na pele o quanto eu não significava nada para aquelas pessoas que eu julgava serem a minha família. Aquele ‘tio’ horroroso que abusava de mim, e depois me tratava como lixo, com desprezo... meus avós, que não me acolhiam, e me humilhavam a qualquer oportunidade. Meu pai, que não acreditava em mim e me tratava com frieza e distância. Meus tios, que sempre aproveitavam uma oportunidade de mandar-me para longe: colônias de férias, colégio interno, faculdade... não aprendi a criar laços. Sinto-me melhor sozinha. 

Ele olhou-a profundamente, erguendo seu queixo com a ponta dos dedos:

-Lamento que pense assim, Sophie. 

Ela estremeceu:

-Por que?

-Porque eu poderia fazê-la mudar de ideia, se você deixasse. 

Ela olhou para a cama, onde sua mãe ainda jazia morta:

-Não é a hora. Nem o lugar certo para se falar dessas coisas. 

Dizendo aquilo, ela deixou o cômodo. Ele tentou segui-la, mas ela entrou em seu próprio quarto, batendo a porta. 

Décio foi para  a sala, onde encontrou seu irmão e Diana sentados lado a lado, em silêncio. Diana levantou-se ao vê-lo chegar.

-Acho que precisamos tomar as providências para o velório.

-Não se preocupe, Sophie já fez tudo sozinha.

Ela pareceu surpresa:

-Ela é mesmo surpreendente.

Diana voltou a sentar-se, com aquele olhar vazio que as pessoas tem sempre que uma situação difícil tem um caminho para uma conclusão, e só resta a todos esperar. Brian puxou conversa:

-E agora, Diana? O que você vai fazer?

Ela olhou para ele, tentando decidir se aquela pergunta indiscreta merecia uma resposta. Brian murmurou um ‘desculpe’ meio sem jeito, e Diana respondeu, após tomar fôlego:

-Vou voltar para São Paulo. Minha missão aqui acabou.

Entusiasmado pela resposta dela, Brian não se conteve:

-Mas você vai viver do que por lá?

Décio interviu:

-Não é da sua conta, Brian! (e virando-se para Diana) Me desculpe. Meu irmão é meio-retardado às vezes.

Ela riu de leve. Brian ergueu-se do sofá e foi pisando duro para fora da casa. Décio estava tão cansado, que não o seguiu, deixando-se ficar naquele sofá como se ele fosse o último lugar seguro no fim do mundo. A atmosfera opressiva da casa já nem fazia tanta diferença. Ele olhou em volta, para as paredes mofadas, os móveis empoeirados e as folha secas no chão da sala, sobre o tapete, como se ninguém se importasse com o fato de que ter folhas secas dentro de uma casa não fosse algo normal ou higiênico. Concluiu que a vida daquelas pessoas – todas elas – eram tão secas quanto aquelas folhas que o vento trouxera, e sentiu-se triste, pois Sophie era uma delas. 

Gostaria de ligar para Roberto e dizer a ele o que acontecera, mas Sophie deixara bem claro que não queria que ele fosse avisado da morte de Endora. Queria pegar o carro e ir embora dali sem olhar para trás, mas como poderia fazê-lo sem parecer egoísta e cruel? Queria voltar logo à sua antiga vida de mulheres ocasionais e sem importância, e tentar esquecer Sophie. Mas sabia que aquela seria a parte mais difícil. Só de pensar nela, seu coração pulava desconfortável dentro do peito. Será que aquilo era amor? Se fosse, havia algo errado, pois todo mundo dizia que amor era algo bom de se sentir, e não algo desesperador. Certa vez, sua mãe lhe dissera que o amor fazia o coração bater direito. Então por que o dele estava tão descompassado? 

Lembrou-se que estava usando uma camiseta branca de dormir, calças de pijama e tênis. Mas não achou importante trocar de roupa. Ainda ficaria por ali, vestido daquela forma ridícula, pois ninguém se importava. 

Quando Sophie surgiu no alto da escadaria, toda vestida de negro, os cabelos curtos recém-lavados ainda úmidos e despenteados, o coração dele quase saltou pela boca. Ela começou a descer vagarosamente, e até mesmo Diana mostrou-se impressionada com a aparência dela. Usava calças pretas de cavalgar,  muito justas e enfiadas dentro de botas lustrosas de cano alto, que marcavam a magreza de suas pernas, e uma blusa negra de renda, transparente e solta, de mangas longas. Tinha passado um lápis negro em volta dos olhos. Ele achou que aquilo a impediria de chorar, mesmo que ela tivesse vontade. Os lábios tinham sido pintados de vermelho forte. Ela estava linda e terrível ao mesmo tempo.

Sentou-se na poltrona em frente a eles, calada, o olhar nas tábuas sujas do piso. Os dedos brincavam com um buraco no braço da poltrona, onde entravam e saíam com pedacinhos do estofamento. E de repente, as palavras saíram da boca dele sem que ele pudesse pensar antes, ou tentar contê-las; Décio apenas abriu os lábios como se fossem os lábios de outra pessoa, e declarou em alto e bom tom, sem sequer se importar com  a presença de Diana e de Brian, que voltara à sala naquele instante:

-Eu amo você, Sophie.

O silêncio que se seguiu foi angustiante para ele. Brian o olhava. Diana o olhava. Sophie continuava fitando o chão como se ninguém tivesse dito nada, e arrancava pequenos pedacinhos da espuma, como se aquela tarefa tivesse importância vital. Mas ele notou um estremecimento nas têmporas dela, que denunciavam sua falsa indiferença. E os olhos dela ficaram mais brilhantes, no esforço de tentar conter as lágrimas. Calmamente, ela se levantou e começou a sair da casa. Antes, parou à porta da sala, e olhando para trás, declarou:

-Você não sabe nada de mim.




(continua...)




quinta-feira, 7 de julho de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO XII










Todos os olhos se ergueram em direção daquele rosto na porta. Roberto, o irmão de Sophie, parecia uma pessoa totalmente diferente dela: não tinha o mesmo ar desconfiado e sombrio, mas parecia uma pessoa alegre e confiante. Havia leveza em seu olhar, paz de espírito e franqueza – coisas típicas de quem cresceu sendo amado e aprendendo a confiar nas pessoas. Ele era como se fosse o lado bom daquela história, que deixara como herdeiros pessoas amargas, desconfiadas, cheias de segredos e infelizes. O sorriso encantador de Roberto desanuviou o ar pesado da sala. Sophie levantou-se da cadeira, colando os olhos no irmão. Ambos não precisaram de apresentações. Ficaram se olhando durante um longo tempo, esquecidos das outras presenças. 

Ele sentiu o peso da energia emanada por ela; era como se uma lufada de ar viciado e cheirando a mofo o atingisse ao abrir a porta de uma casa velha, há muito tempo fechada. Pensou nas janelas que precisaria ajudá-la a abrir para que a luz pudesse entrar. Sophie o olhava com curiosidade, apenas. Ela não entendia como poderiam haver tantas pessoas genuinamente felizes em um mundo tão cinzento e cheio de mentiras, dores e traições. Ela mesma era fruto de uma destas traições: filha do amante de sua mãe. 

Roberto – o pai – pigarreou:

-Bem, acho que vocês precisam conversar. Vamos deixa-los à sós agora. (dizendo aquilo, ele fez sinal para que Décio o seguisse, e eles saíram da sala, fechando a porta). 

Foram sentar-se no espaço exterior do bar, uma varanda estilo country, coberta por um telheiro. Um garçom levou-lhes  cervejas. Ali, a música alta não incomodava, e era possível conversar, já que as outras mesas estavam vazias. Além disso, para alívio de Décio, o ar era fresco, e não cheio de fumaça e cheirando a suor, fritura e perfume barato como lá dentro. Roberto tomou alguns goles de cerveja. Décio sentia-se um intrometido em uma história que não era sua, e na qual tinha se envolvido mais do que gostaria. Roberto notou seu desconforto:

-Vejo que você gosta muito de Sophie. Há quanto tempo se conhecem?

-Apenas poucos dias. 

-Mas você está apaixonado por ela, não está?

Décio demorou um pouco a responder:

-Não sei. Acho que sim, mas não tenho certeza. É que eu nunca senti nada parecido antes.

Roberto concordou com a cabeça:

-Ela é exatamente igual à mãe quando jovem: misteriosa, envolvente. Mas existe nela – assim como existia na mãe – uma parte que ninguém pode tocar. Não sei se devido ao sofrimento pelo qual ambas passaram, mas eu às vezes penso que esta parte inacessível nasceu com elas. É algo que sempre esteve ali, e que estaria ali mesmo que elas tivessem tido uma vida totalmente diferente. Eu penso que qualquer pessoa que se envolver com elas, deverá esquecer coisas como paz de espírito, tranquilidade ou uma vida normal. Você me entende?

As palavras de Roberto surpreenderam Décio, mas após o escândalo inicial, elas começaram a fazer sentido para ele de uma maneira clara e lúcida, como se alguém desfizesse os nós de confusão que estavam em seus pensamentos.

-Engraçado você dizer isso sendo o pai dela, mas... tenho que concordar. Você está certo. Eu... eu gosto muito dela, mas não sei se quero uma vida assim.

-Pense bem, Décio, antes de mudar o seu rumo por ela. Estas coisas que eu estou lhe dizendo eu só pude perceber depois que me afastei totalmente de Endora... depois que ela foi presa e levada embora para longe de mim. Por isso eu nunca a procurei. Nunca a visitei na prisão, nem escrevi para ela. Conhecer Mirtes foi como voltar ao mundo real, seguro e iluminado. Não havia a mesma paixão entre nós, mas nunca houve tantos... fantasmas.

Décio ouviu um sininho tocar no fundo da sua mente.

-O que quer dizer com... fantasmas?

Roberto olhou as estrelas, que faziam do céu um candelabro de luxo. Franzindo as sobrancelhas, explicou:

-É difícil falar nisso, mas... você não sente nada estranho naquela casa, naquele lugar? Ou.. quando está perto de Sophie? Nós estamos no século XXI, é claro, mas... eu sempre tive a impressão de que aquele lugar é amaldiçoado, e que certas coisas estão sempre em volta delas... eu sentia isso em relação a Endora, mesmo sendo apaixonado por ela, e depois que conheci minha filha, senti o mesmo.

Décio respondeu rápido demais:

- Você tem razão.

-Você fala como quem soubesse de algo...

-Você também.

Os dois se entreolharam, fazendo um brinde antes de tomarem mais um gole de cerveja. Décio achou que não faria mal partilhar algumas de suas experiências estranhas na casa:

-Eu vi algumas coisas... imagens de pessoas, mas não eram realmente pessoas. Também ouvi vozes na noite em que dormi lá pela primeira vez. Foi aterrorizante, confesso que eu fiquei com medo. Uma das vozes me disse para ter cuidado com ela. Acho que falava de Sophie. Mas embora tenha soado como um tipo de advertência, não parecia nada amigável ou preocupada com o meu bem-estar. 

-Quando eu morava lá, na ala dos empregados, escutei muitas histórias horríveis e também presenciei algumas... não vale  apena falar sobre elas, mas... parece que aquela família não tinha sido sempre assim. Quando chegaram lá, eram pessoas normais, dignas, procurando por uma vida melhor. Após alguns anos, Cícero e seus pais foram ficando cada vez mais obcecados por dinheiro, e cada vez mais frios e arrogantes, até se tornarem cruéis. Pelo menos, era isso que um dos empregados mais velhos gostava de contar. 

-E é por isso também que você não quer voltar la´?

-Também é por isso, mas... sabe, Décio, eu hoje sou um homem feliz e realizado, vivo bem com minha esposa e meu filho... por que desenterrar ossos? É claro que conhecer Sophie foi algo bom – um filho é sempre algo bom, mas quando essa história toda se resolver, apesar de amar a minha filha, eu espero que ela possa retomar sua vida. Não gostaria que ela morasse conosco. Isso pode parecer cruel da minha parte, mas é o que eu sinto que seja melhor para todo mundo. Não sei se você pode me compreender.

Décio viu uma nuvem de angústia passar pelo rosto de Roberto. Quase desespero. Ele balançou a cabeça, concordando.

-Quer um conselho, Décio? Assim que tiver material para o seu livro, dê o fora daquele lugar. E esqueça Sophie, pois ela não é para você. Pobre moça... acho que não é para ninguém. E ela sabe disso. A coisa que a segue é mais forte que ela. 

Horas depois, de volta à fazenda, Sophie o procurou. Queria conversar. Bateu à porta de seu quarto de madrugada, quando Décio já estava profundamente adormecido, e ele levou um susto ao deparar com a moça olhando-o dormir, no escuro, sentada à beirada de sua cama. Ela riu, pedindo desculpas:

-Não queria assustar você.

-Ainda bem. Porque se quisesse, teria conseguido.

Ele sentou-se na cama:

-O que foi, Sophie? Que horas são?

-Ainda é de madrugada, mas eu não consigo dormir.

Ele não conseguia ver o rosto dela, apenas sua forma desenhada contra a fraca luz que entrava pelas cortinas, devido à lâmpada que fora deixada acesa na varanda. Mas podia sentir seu perfume penetrante, e desejou estar com ela em seus braços, em sua cama. Porém, achou que o momento não seria adequado.

-Você ficou tão calado depois que conheceu meu pai e meu irmão... a minha história chocou você, não foi?

-Bem, eu confesso que não imaginava que tinha sido você a autora de todos aqueles crimes, e que isso mudou algumas coisas na minha cabeça. 

A voz deles, baixa e monótona, cruzava a distância entre eles como agulhas de gelo.

-Eu sei que você sente... ou sentia algo por mim. Isto mudou?

-Mudou... não mudou... na verdade, eu não sei, Sophie. 

-Você já decidiu o que vai fazer... com a sua história?

Décio pensara naquilo o tempo todo durante a viagem de volta, no silêncio do carro. Como jornalista, deveria contar a verdade, mostrar os fatos. Deveria esperar que Endora morresse, e então, publicar toda a verdade. Além de ser um furo de reportagem que, com certeza, iria garantir-lhe um prêmio, poderia servir de material para seu primeiro livro. Mas ao mesmo tempo, achava que devia algo a Sophie e Endora. Afinal, em apenas alguns dias, ele poderia mudar para sempre a vida de ambas. Será que ele tinha este direito, de expor Sophie por algo que acontecera há tanto tempo, sabendo das razões que a levaram àquilo? É claro que o crime prescrevera e que ela não poderia ser acusada de nada, mas e quanto à acusação das pessoas que a cercavam, da sociedade? Ela ficaria ainda mais marcada. Ele poderia contribuir para que a vida de Sophie se tornasse ainda mais infeliz. 

-Sophie, eu ainda não sei o que vou escrever. Mas... mudando um pouco o rumo da conversa, seu pai definitivamente não quer contar a verdade a Endora. Ele não vai revê-la, não é?

-Eu sei. Sempre soube, assim que o conheci. 

-Por que você quis procura-lo?

-Ora, ele é meu pai.

-Mas como você ficou sabendo? Pensei que você sempre tivesse pensado que era filha de Cícero.

-Bem, eu queria encontra-lo para mamãe. Mas quando eu estava diante dele, e vi o quanto ele se parecia comigo fisicamente... apesar dos anos... e pela maneira como ele me olhou, assim que me viu, eu soube. Então ele me contou sobre muitas coisas que eu não sabia, como a esterilidade de Cícero. E depois fizemos o exame, que confirmou a paternidade. Mas acho que ele não ficou muito feliz ao me rever, embora tenha se emocionado e me tratado tão bem. 

A voz dela soou um pouco triste, mas conformada. Décio pensou nas muitas tristezas que ela tinha em sua vida, e que aquela, de saber que o próprio pai não gostaria de tê-la conhecido, era apenas mais uma. Ele estendeu a mão a fim de acariciar seus cabelos, mas quando ele o fez, algo incrível aconteceu: ela desapareceu diante dele, como se nunca houvesse estado ali.
Imediatamente, calafrios de pavor percorreram a espinha dele. Tivera um sonho, apenas? O que, ou quem era aquela mulher que tanto o intrigava, atraía, repelia, confundia?

(continua...)


A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...