quarta-feira, 13 de julho de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO XIII








Décio voltou a dormir rapidamente, apesar de assustado. O cansaço psicológico daqueles últimos dias tinham-no deixado um pouco apático. Não sabia o que faria na manhã seguinte – se diria a Sophie que estava indo embora para sempre, ou se publicaria a história verdadeira; não sabia como ficaria seu relacionamento com o irmão dali para frente, se voltaria para casa e procuraria outro apartamento em um local mais silencioso ou se tinha se acostumado ao barulho e não conseguiria mais viver sem ele. Com aquela mistura de pensamentos totalmente desconexos, ele voltou a adormecer.
Mas a manhã seguinte foi ainda mais tumultuada e psicologicamente desgastante, trazendo a solução para  a maioria dos seus questionamentos de uma forma brusca, inesperada. Acordou com um grito dolorido de mulher. Ao mesmo tempo, Brian adentrou o quarto, abrindo a porta com força, e penando que Décio ainda dormia, passou a sacudi-lo:

-Acorde, Décio! Venha correndo! É Endora!

Ainda tonto de sono, Décio entreabriu um olho e checou a hora no celular: sete e trinta e cinco. Assustado, ergueu-se, passando a mão sobre os cabelos, tentando arrumá-los um pouco. Enquanto calçava os tênis, perguntou ao irmão:

-O que houve com Endora?

-O que todo mundo já sabia que ia acontecer. Sophie está muito mal, acaba de descobrir. Eu estava passando pelo quarto dela, quando Diana abriu a porta chorando e me contou o que tinha acontecido, e foi chamar Sophie. Eu entrei, e ela estava lá, deitada e inerte, e quando Sophie a viu, deu um grito. Mas...

Naquele ponto da narração, Décio já estava de pé, encaminhando-se até a porta.

-Mas o quê?

-Eu poderia jurar que ela abriu os olhos quando Sophie entrou. Foi bem rápido... Talvez ela nem estivesse morta ainda. 

-Nesta casa, todo tipo de esquisitice é possível. Vamos ver Sophie!

Ao chegarem no quarto, encontraram Sophie sentada na cadeira em frente à cama da mãe, séria e com aparência serena, apesar dos olhos vermelhos mas já secos de lágrimas. Ela ergueu os olhos para eles, respirando fundo e tentando reassumir sua costumeira postura fria. Porém, Décio percebeu que aquilo era apenas uma máscara de proteção, e caminhou até ela, ajoelhando-se ao seu lado e segurando sua mão. Ela olhou para ele, e ele sentiu o peso de sua tristeza. Ele ia dizer alguma coisa, mas não sabia ainda o que, quando Sophie levantou-se de repente:

-Bem, agora eu preciso tomar algumas providências. Acho que o final da sua história acaba de ser escrito.

Ele não entendeu a ironia na voz dela. Brian olhava para ambos, sem nada dizer, sem saber se seria uma boa ideia desejar os pêsames a Sophie, abraça-la ou ficar quieto. Achou que seria mais conveniente sair do quarto e esperar na sala, com Diana. Ele mal conhecera Endora, mas descobriu que aprendera a gostar dela, e sentia sua morte. Era a primeira vez que ele estava diante de uma perda, e não sabia como lidar com aquelas emoções. Disse isso a Diana, e ela apenas respondeu:

-Não se preocupe, menino. Na verdade, ninguém sabe, e nunca aprende.

Brian sentiu um vento gelado em sua nuca, e teve um calafrio. Poderia jurar que também ouviu alguém sussurrar ‘adeus’ em seu ouvido, mas não se atreveu a compartilhar aquele pensamento com Diana. Com certeza, ela pensaria que ele é louco. 

No quaro de Endora, a atmosfera era densa. Sophie parecia estar usando Décio para descarregar a sua dor. Ele não sabia o que dizer ou pensar, pois queria ajudar, mas ela recusava toda e qualquer tentativa de ajuda vinda dele. Ele apenas observou quando ela mesma pegou o telefone e tratou da preparação do corpo e do velório, que seria feito ali mesmo, na sala da casa, como eram feitos todos os velórios antigamente. Não chamou ninguém – nem mesmo seu pai. Diria a ele mais tarde. Não fazia sentido que ele visse sua mãe agora. 

Décio tentava chegar até ela, mas Sophie não deixava. Finalmente, após o longo silêncio que se seguiu quando ela desligou o telefone, ele tentou de novo:

-O que você vai fazer agora, Sophie? Da sua vida? Vai ficar aqui ou voltar para Paris?

Ela encolheu os ombros:

-Ainda precisarei ficar aqui para tratar de alguns papéis. Tenho que achar um advogado, dar entrada no inventário... depois.. eu não sei. Só sei que não volto para Paris, e se voltar, será para viver longe dos meus tios.

-Você não vai avisar à sua família em Paris?

Ela negou com a cabeça:

-Não. Garanto que não estarão interessados, apenas dirão que sentem muito, que se eu precisar de alguma coisa posso contar com eles, e essa coisa toda que se diz quando alguém morre. Também vão fazer perguntas, querendo saber se eu vou voltar ou se finalmente se livraram de mim. Sabe, eu sempre me senti um peso na vida deles, algo que eles carregavam por caridade, por grau de parentesco, como se não tivessem opção. 

-Mas... eles a destratavam?

-Não. Fiquei em uma escola interna nos primeiro cinco anos. Depois, vivi algum tempo com eles até a faculdade, quando também fui embora. Arranjei um trabalho como fotógrafa, aluguei meu próprio apartamento. Eles me davam alguma ajuda financeira para o aluguel, mas depois que eu me mudei, não nos víamos com muita frequência. Foi quando eu me dei conta de que não estavam realmente interessados. Antes, eu tentava negar. Eram polidos. Só isso.

-Talvez você esteja enganada.

-Como pode afirmar? Não os conhece.

Ele se aproximou dela, obrigando-a a olhar para ele:

-Você não é nenhum exemplo de calor humano, Sophie. Mas... eu sinto que existe um coração quente aí dentro (ele tocou-a entre os seios). Só não entendo por que você faz questão de ignorá-lo.

Ela segurou a mão dele, retirando-a devagar da posição em que ele a colocara:

-Você não me conhece. Eu carrego uma maldição: a de ter morado nesta casa. A de ter vivido tudo o que vivi aqui dentro, vendo o quanto minha mãe era maltratada, e sentindo na pele o quanto eu não significava nada para aquelas pessoas que eu julgava serem a minha família. Aquele ‘tio’ horroroso que abusava de mim, e depois me tratava como lixo, com desprezo... meus avós, que não me acolhiam, e me humilhavam a qualquer oportunidade. Meu pai, que não acreditava em mim e me tratava com frieza e distância. Meus tios, que sempre aproveitavam uma oportunidade de mandar-me para longe: colônias de férias, colégio interno, faculdade... não aprendi a criar laços. Sinto-me melhor sozinha. 

Ele olhou-a profundamente, erguendo seu queixo com a ponta dos dedos:

-Lamento que pense assim, Sophie. 

Ela estremeceu:

-Por que?

-Porque eu poderia fazê-la mudar de ideia, se você deixasse. 

Ela olhou para a cama, onde sua mãe ainda jazia morta:

-Não é a hora. Nem o lugar certo para se falar dessas coisas. 

Dizendo aquilo, ela deixou o cômodo. Ele tentou segui-la, mas ela entrou em seu próprio quarto, batendo a porta. 

Décio foi para  a sala, onde encontrou seu irmão e Diana sentados lado a lado, em silêncio. Diana levantou-se ao vê-lo chegar.

-Acho que precisamos tomar as providências para o velório.

-Não se preocupe, Sophie já fez tudo sozinha.

Ela pareceu surpresa:

-Ela é mesmo surpreendente.

Diana voltou a sentar-se, com aquele olhar vazio que as pessoas tem sempre que uma situação difícil tem um caminho para uma conclusão, e só resta a todos esperar. Brian puxou conversa:

-E agora, Diana? O que você vai fazer?

Ela olhou para ele, tentando decidir se aquela pergunta indiscreta merecia uma resposta. Brian murmurou um ‘desculpe’ meio sem jeito, e Diana respondeu, após tomar fôlego:

-Vou voltar para São Paulo. Minha missão aqui acabou.

Entusiasmado pela resposta dela, Brian não se conteve:

-Mas você vai viver do que por lá?

Décio interviu:

-Não é da sua conta, Brian! (e virando-se para Diana) Me desculpe. Meu irmão é meio-retardado às vezes.

Ela riu de leve. Brian ergueu-se do sofá e foi pisando duro para fora da casa. Décio estava tão cansado, que não o seguiu, deixando-se ficar naquele sofá como se ele fosse o último lugar seguro no fim do mundo. A atmosfera opressiva da casa já nem fazia tanta diferença. Ele olhou em volta, para as paredes mofadas, os móveis empoeirados e as folha secas no chão da sala, sobre o tapete, como se ninguém se importasse com o fato de que ter folhas secas dentro de uma casa não fosse algo normal ou higiênico. Concluiu que a vida daquelas pessoas – todas elas – eram tão secas quanto aquelas folhas que o vento trouxera, e sentiu-se triste, pois Sophie era uma delas. 

Gostaria de ligar para Roberto e dizer a ele o que acontecera, mas Sophie deixara bem claro que não queria que ele fosse avisado da morte de Endora. Queria pegar o carro e ir embora dali sem olhar para trás, mas como poderia fazê-lo sem parecer egoísta e cruel? Queria voltar logo à sua antiga vida de mulheres ocasionais e sem importância, e tentar esquecer Sophie. Mas sabia que aquela seria a parte mais difícil. Só de pensar nela, seu coração pulava desconfortável dentro do peito. Será que aquilo era amor? Se fosse, havia algo errado, pois todo mundo dizia que amor era algo bom de se sentir, e não algo desesperador. Certa vez, sua mãe lhe dissera que o amor fazia o coração bater direito. Então por que o dele estava tão descompassado? 

Lembrou-se que estava usando uma camiseta branca de dormir, calças de pijama e tênis. Mas não achou importante trocar de roupa. Ainda ficaria por ali, vestido daquela forma ridícula, pois ninguém se importava. 

Quando Sophie surgiu no alto da escadaria, toda vestida de negro, os cabelos curtos recém-lavados ainda úmidos e despenteados, o coração dele quase saltou pela boca. Ela começou a descer vagarosamente, e até mesmo Diana mostrou-se impressionada com a aparência dela. Usava calças pretas de cavalgar,  muito justas e enfiadas dentro de botas lustrosas de cano alto, que marcavam a magreza de suas pernas, e uma blusa negra de renda, transparente e solta, de mangas longas. Tinha passado um lápis negro em volta dos olhos. Ele achou que aquilo a impediria de chorar, mesmo que ela tivesse vontade. Os lábios tinham sido pintados de vermelho forte. Ela estava linda e terrível ao mesmo tempo.

Sentou-se na poltrona em frente a eles, calada, o olhar nas tábuas sujas do piso. Os dedos brincavam com um buraco no braço da poltrona, onde entravam e saíam com pedacinhos do estofamento. E de repente, as palavras saíram da boca dele sem que ele pudesse pensar antes, ou tentar contê-las; Décio apenas abriu os lábios como se fossem os lábios de outra pessoa, e declarou em alto e bom tom, sem sequer se importar com  a presença de Diana e de Brian, que voltara à sala naquele instante:

-Eu amo você, Sophie.

O silêncio que se seguiu foi angustiante para ele. Brian o olhava. Diana o olhava. Sophie continuava fitando o chão como se ninguém tivesse dito nada, e arrancava pequenos pedacinhos da espuma, como se aquela tarefa tivesse importância vital. Mas ele notou um estremecimento nas têmporas dela, que denunciavam sua falsa indiferença. E os olhos dela ficaram mais brilhantes, no esforço de tentar conter as lágrimas. Calmamente, ela se levantou e começou a sair da casa. Antes, parou à porta da sala, e olhando para trás, declarou:

-Você não sabe nada de mim.




(continua...)




2 comentários:

  1. Interessante, amiga Ana. Texto bem escrito.
    Um abração. Tenhas uma boa noite.

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  2. UAU, quem será essa mulher devastadora???
    Não vejo a hora de continuar a leitura, não demore, please!

    bacios

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