segunda-feira, 24 de junho de 2019

INOCÊNCIA - CAPÍTULO XXV - PARTE II- Poder de Sedução




IV – Poder de Sedução

Arrumei para ele o segundo quarto – o quarto branco. Ele não era usado há muito tempo, segundo minha avó, e ela me encarregou de arrumá-lo. Caprichei na arrumação da cama, varri o chão, tirei o pó, coloquei uma garrafa de água fresca na mesa de cabeceira, perfumei os lençóis com água de alfazema. 

A chuva parecia que não daria trégua tão cedo. Após o jantar, para o qual minha avó me convidou, talvez por se preocupar com o que ele poderia pensar quanto a ela deixar sua própria neta jantar na cozinha com os empregados, ele se despediu e foi para o quarto. 

Por volta de uma da manhã, levantei vagarosamente e fui levar uma manta para ele. Quando abri a porta do quarto, achei que ele estivesse dormindo, mas ele sentou-se para me olhar, e fiquei de pé, na penumbra do quarto, a manta pendurada no braço. 

-Achei que esfriou um pouco. Trouxe uma manta para você.

Aproximei-me da cama, cobrindo-o. Ele segurou meu pulso.

-Não conheço você, mas... você me faz duvidar se devo ou não me casar. Estou noivo... mas desde que a vi pela primeira vez, só consigo pensar em você. 

-Eu me deixei ficar ali, de pé, ao lado da cama. O cheiro másculo que ele exalava não me era indiferente. Eu tinha a libido muito forte. Além daquilo, Dr. Gustavo era um homem muito bonito e desejável. O calor dos dedos dele em volta do meu pulso me arrepiou. 

-Também me sinto atraída pelo senhor.

-Me chame de ‘você.’ 

-Minha avó não ia gostar...

-Ela não está aqui agora, Cristina. 

Minha respiração estava ofegante, e eu não conseguia controla-la. Ele percebeu. Disse:

-Por que não fecha a porta e volta aqui?

Eu queria muito fazer aquilo. Mas achei que se o fizesse, perderia o jogo. Precisava deixa-lo absolutamente louco por mim. Não podia ceder tão facilmente. Então, sem pensar, soltei-me da mão dele e corri para fora do quarto, fechando a porta atrás de mim. 

Na manhã seguinte, enquanto todos tomávamos café, ele mal podia conter-se, e me olhava o tempo todo. Minha avó, que nada tinha de tola, logo percebeu o que estava acontecendo. Quando ele foi embora, despediu-se de mim beijando-me a mão, na frente dela. Fiquei à porta, olhando a poeira do carro na estrada. Quando entrei, deparei com os olhos perscrutadores e frios dela presos em mim:

-Parece que os homens daqui tem mesmo uma queda por empregadinhas. – e após uma breve pausa, ela acrescentou: - Hoje você pode voltar a comer na cozinha. 

Engoli minha indignação. Tinha vontade de saltar sobre ela e estrangulá-la, mas me contive, e pensei em tudo o que poderia conseguir se engolisse aquela injúria. 

(CONTINUA...)





terça-feira, 18 de junho de 2019

INOCÊNCIA - Capítulo XXIV - Parte II Um Plano






III – Um plano

Descobri então que Dr. Gustavo estava noivo mas era muito mulherengo, e que trabalhava para minha avó há cinco anos, desde que seu próprio pai se aposentara e passara os negócios da fazenda para ele. Desde então, cuidava de todos os investimentos e propriedades de minha avó e tinha uma procuração assinada por ela para resolver qualquer questão relativa às suas contas bancárias. 

Eu sabia que seria apenas uma questão de tempo. Tudo o que eu precisava fazer, era seduzi-lo. 

Nos dias que se seguiram, eu trabalhava na fazenda com todo afinco e dedicação, pois enquanto trabalhava, podia arquitetar meu plano. Minha avó me tratava como se eu fosse menos que um dos seus empregados, jamais falando comigo, e se eu me dirigisse a ela por qualquer motivo, ela mal me respondia, ou sequer me olhava, limitando-se a respostas grunhidas e monossilábicas.

Após duas semanas, Dr. Gustavo voltou à casa. Servi o café na sala – caprichei na minha aparência, usando um vestido simples, azul claro e novo, que comprara com a mesada que minha avó me proporcionava. Era bem pouco – apenas “para os meus alfinetes,” como ela dissera, mas eu ainda tinha algumas economias, então resolvi investir um pouco na minha aparência, e no meu plano. 

Não pretendia ficar na fazenda trabalhando por cama e comida e uma parca quantidade de dinheiro que dava para os meus alfinetes. 

Naquela tarde, eu lavara os cabelos e os tinha escovado várias vezes, até que suas ondulações ficassem cheias de brilho. Prendera um dos lados com uma pequena flor vermelha de seda, deixando que o lado oposto caísse um pouco sobre o rosto, dando um certo ar de mistério. Usara algumas gotas de um perfume que encontrara sobre a penteadeira de minha avó, e para que ela não percebesse, usei bem pouca quantidade, evitando chegar muito perto dela. Mas eu duvidava que, caso sentisse o perfume, ela se lembrasse dele. O vidro parecia ser bem antigo, e estava empoeirado. Pertencia a alguma época onde a vida tinha sido diferente. Meus cílios eram longos e fartos, e ressaltei-os com um pouco de azeite que passei nas pontas dos dedos, e depois, sobre eles. Era a única coisa disponível. Também usei um ar de batom rosado muito natural que Jandira me emprestara. Resumindo: eu não passaria despercebida em nenhum lugar. Tinha consciência do quanto minha beleza atraía os olhares das pessoas. 

E atraí os olhares do Dr. Gustavo, embora ele tentasse disfarçar. Sorri para ele por cima dos ombros de minha avó, enquanto esperava suas ordens. Ele deixou escapar um pequeno sorriso, corando. 
Deixei os dois conversando na sala, e fui juntar-me à Jandira na cozinha. Ela estava sentada à mesa, tomando um pouco de suco de maracujá. Quando entrei, ela ergueu o copo e me ofereceu um pouco, dizendo que estava na geladeira. Recusei; não queria me submeter aos efeitos calmantes da fruta. Queria estar com todos os meus sentidos bem aguçados. Ela me fitava com ar de curiosidade e fascínio; talvez um pouco de medo. Sentei-me diante dela, tamborilando sobre a mesa com as pontas dos dedos, e sorri. Meu sorriso a desarmou:

-E agora, Cristina? O pato caiu?

Eu dei uma gargalhada:

-E você tem alguma dúvida?

Ela negou com a cabeça.

-E então; vai convencê-lo a ajudar você?

-Não vai ser preciso ‘convencê-lo’, se é que você me entende. Ele está nas minhas mãos. Você conhece a noiva dele?

-Sei que ele tem uma noiva, e que está para se casar dentro em breve, mas nunca a vi. Dr. Gustavo ainda é jovem. Tem fama, se é que você compreende o que eu quero dizer. É um sedutor conhecido.

-E a noiva dele não se importa?

-Deveria? Ele dará a ela uma ótima vida.

Eu dei um pequeno soco na mesa:

-Mas por que as pessoas acham que o casamento deve ser o maior objetivo na vida de uma mulher? Passar a vida casada com alguém que a trai, que não a respeita, apenas por segurança financeira?

-Bem, não acho que a gente tenha muitas alternativas. Tem sido assim desde sempre.

-Sim, mas as coisas estão mudando! Nunca ouviu falar no movimento feminista?

-Movimento feminista... sim, li alguma coisa no jornal. Mas isso nunca vai chegar até aqui. Não mesmo.

Olhei para ela. Tinha perdido o ar sisudo, e me tratava melhor. Me atrevi a perguntar:

-Nunca se casou?

Ela corou, baixando os olhos. 

-Não.  Nunca saí desta fazenda.

Eu não acreditava no que estava ouvindo.

-Como? Nunca saiu da fazenda? Nunca viajou, não conhece outros lugares, outras cidades?

-Apenas uma ou duas cidadezinhas vizinhas, que visitei quando acompanhei Dona Helena. Não tive muitas chances de conhecer alguém... isso é... houve uma pessoa, um trabalhador da fazenda. Mas quando Dona Helena e Dr. Vitor perceberam o que estava acontecendo, eles o mandaram embora daqui. Nunca mais o vi. Queria que eu fosse com ele, mas... não tive coragem. 

Fiquei estarrecida com a história de Jandira. 

-E sua mãe? Aonde ela está?

-Morreu no parto. Fui criada pelas pessoas da fazenda. 

Naquele instante, ouvi movimentos e passos na sala de estar. 

-Acho que ele está de saída.

Dizendo aquilo, deixei Jandira sozinha à mesa, pensando em seu passado, e corri para fora, onde fingi estar distraída cuidando de um canteiro que ficava exatamente no caminho que Dr. Gustavo teria que percorrer até chegar ao seu carro, na lateral da casa. Claro, ele me viu, mas fingi não perceber a presença dele. Ao invés daquilo, corrigi minha postura e toquei em uma rosa aberta, cheirando-a de olhos fechados. Eu estava atuando para ele. E funcionou, pois ele se aproximou de mim.

-Boa tarde, moça bonita.

Abri os olhos de repente, fingindo me assustar.

-Boa tarde... Dr. Gustavo. 

Dei a ele meu melhor sorriso, o mais cheio de luz que eu podia forjar. 

Conversamos sobre amenidades durante alguns segundos – o tempo, o calor, as nuvens negras que se aproximavam no horizonte, cada vez mais rapidamente. Então ele chegou mais perto de mim, dizendo:

- Então... você é neta de Dona Helena?

-Sim. Embora ela não goste da ideia, eu sou sim. Meu pai... casou-se com uma das empregadas da fazenda – minha mãe. 

Baixei os olhos, fingindo tristeza e constrangimento.

-Conheço a história, ela é antiga e circula pela cidade toda há anos. Sinto muito. Saiba que não aprovo a atitude dos seus avós em relação ao seu pai, e nem o meu pai a aprovava. Mas... por que está aqui?

-Porque eu queria conhecer minha avó. Meu pai nunca me falou dos meus avós, eu pensava que estivessem mortos. Mas... descobri recentemente que ela estava viva. 

Ele assentiu. 

-Pretende ficar aqui por muito tempo?

-Não sei ainda. 

Ele ergueu meu queixo suavemente com a ponta dos dedos, me obrigando a olhá-lo.

-Você parece ter uma história triste. Não deveria se entristecer, é muito bonita. Você é uma das mulheres mais bonitas que eu já vi. 

Fingi timidez, e agradeci. Naquele instante, a chuva começou a cair forte, e ele se despediu, entrando no carro. Entrei em casa correndo, pois a tempestade fortíssima já encharcava tudo. 

Meia hora depois, ele voltou. O riacho enchera, inundando a estrada, e ele não tinha como passar. Minha avó convidou-o a passar a noite na fazenda. Aquilo era tudo o que eu precisava para levar meu plano adiante!

(Continua...)





sexta-feira, 14 de junho de 2019

INOCÊNCIA - Capítulo XXIII, Parte II- Neta?





II – Neta?

O quarto azul era espaçoso e muito bonito. Minha cama era cercada por um lindo dossel de renda branca que mantinha os mosquitos longe durante a noite. Fiquei me perguntando o porquê de minha avó não ter me colocado na ala junto com os demais empregados da casa, mas achei melhor não perguntar. 

Eu daria um jeito de mudar aquela situação. Eu a faria me enxergar como sua neta, que é o que eu verdadeiramente era. 

Na manhã seguinte, havia um vestido simples e algumas roupas íntimas estendidos na cadeira ao lado da minha cama, e eu o vesti. Prendi os cabelos, fiz minha higiene matinal e abri a porta cuidadosamente, no exato momento em que Jandira passava pelo corredor. Ela ergueu as sobrancelhas ao me ver, dizendo:

-Acordou tarde. São sete da manhã. A partir de amanhã, deverá estar de pé antes das seis. Deverá servir o café da manhã de D. Helena em seu quarto.

-Bom dia para você também, Jandira. 

-Para você, eu sou DONA  Jandira. Me chame de ‘senhora.’

-Tentei soar irônica, mas ela não ligou:

-Está bem, ‘senhora Jandira.’ Por que minha avó não toma café na sala de almoço?

-Porque ela é a patroa, e pode tomar seu café onde bem quiser. Sua obrigação é servi-la, não questionar seus hábitos. Além disso, ela é uma mulher doente e idosa.  A louça do café está na pia, e você pode ir até lá e lavá-la. Depois, descasque as batatas que estão no saco junto à mesa, e quando terminar, vá varrer a casa e tirar o pó dos moveis. O material de limpeza está no quartinho junto à cozinha. Se quiser tomar café, o bule e o leite estão sobre o fogão. Esquente-os. O pão está no armário sobre a pia.

Dizendo aquilo ela me deixou no meio do corredor, e eu mal sabia onde ficava a cozinha. Decidi ir até a sala de estar, que era o único cômodo que eu conhecia, além do meu quarto e do banheiro. Quando entrei, minha avó estava sentada à mesa da sala acompanhada de um homem de terno cinzento. Ambos olhavam alguns documentos e discutiam em voz baixa. Ao notarem minha presença, eles me olharam, e pude notar que o homem era jovem e muito bonito. Ele ficou me encarando boquiaberto, e minha avó me apresentou a ele:

-Esta é a menina de quem lhe falei, Dr. Gustavo. Está morando aqui por enquanto. Minha neta.

Ele acenou para mim com a cabeça, e respondi-lhe da mesma forma, sem saber se deveria me aproximar ou não. Minha avó me ajudou a tirar minha dúvida:

-Vá procurar trabalho, menina. Há muito a ser feito na fazenda. 

Ela voltou a ler os documentos, e Dr. Gustavo ficou me encarando. Também olhei para ele, e concluí que deveria ser o advogado de minha avó. Na cozinha, comecei a cumprir as ordens de Jandira, que lidava com as panelas do almoço. Enquanto eu descascava as batatas, perguntei:

-Quem é aquele moço bonito na sala?

-Advogado de D. Helena. 

E ela não disse mais nada.

Ao final daquele dia, eu estava exausta, não apenas pelo tanto que havia trabalhado, mas também pelo calor sufocante. Minha avó almoçara no quarto, e eu comi minha refeição na cozinha, junto com Jandira. Apesar da casa ser grande, apenas eu e Jandira trabalhávamos nela. Os demais empregados cuidavam das plantações de café, dos animais e de outros assuntos fora da casa. Concluí que Jandira deveria trabalhar demais antes da minha chegada, e comentei aquilo com ela.

- Havia uma outra moça. Mas D. Helena a demitiu antes de você chegar. 

-Por minha causa?

- Não sei. Ela não era muito trabalhadora mesmo.

Fiquei triste ao saber que a outra moça poderia ter sido demitida por minha causa, mas mudei de assunto:

-Há quanto tempo está aqui, Dona Jandira?

-Há quanto tempo? A minha vida toda, eu nasci aqui na casa. 

-E onde estão seus pais?

Ela ficou irritada, e respondeu:

-Você faz perguntas demais, menina! Não é da sua conta.

Logo senti que ela não gostava de tocar naquele assunto, o que me fez concluir que havia alguma coisa escondida ali. Jandira ainda guardava traços de ter sido uma bela mulher. Deveria estar na casa dos quarenta, quarenta e cinco anos. Tinha o semblante sofrido, mas notei que seus olhos azuis ainda guardavam um pouco da beleza da juventude. Ao olhá-la mais longamente, comecei a perceber traços do retrato de meu avô que estava pendurado na parede da sala. Seria impressão minha? Ela ergueu os olhos dos seus afazeres, e me pegou encarando-a. Fiquei vermelha, baixando os olhos. Ela pareceu muito irritada, mas nada disse. Mas eu era atrevida, e queria saber.

-Você é filha do meu avô, não é? Então você... e eu somos... parentes!

Ela deixou cair a terrina com as cascas de laranja que estava preparando para fazer um doce. 

-Olhe o que me fez fazer, sua curiosa! Pegue tudo agora mesmo!

Não fiz menção de me erguer da minha cadeira, e continuei descascando as batatas. Eu não tinha medo dela. Não deixaria que me intimidasse. Ao contrário, eu a encarei e disse bem devagar:

-Pegue você, tia. 

Ela ergueu-se da cadeira e veio em minha direção. A fúria nos olhos dela fez com que eu me também erguesse e estendesse os braços para repeli-la. Ficamos as duas naquela luta dentro da cozinha, grunhindo e derrubando talheres no chão. Nem sei por quanto tempo ficamos assim. Os olhos dela estavam injetados e cheios de lágrimas, e o rosto, muito vermelho. Ela pegou uma mexa do meu cabelo, puxando-a do rabo de cavalo, e passou a pendurar-se nela, o que me fez dar um grito de dor. Acabei arranhando-a no braço. Ela me deu um tapa no rosto, e eu caí, agarrada a ela, que caiu em cima de mim. 

Eu era mais forte, e movimentei meu corpo, sentando sobre o dela, e segurando seus braços com força, eu disse:

-Sua tola! Não vê que se é filha do meu avô tem direito à herança dele?

Aos poucos, senti o corpo dela relaxar sob o meu. Ainda ofegante, ela me perguntou:

-O que você está dizendo?

-Se você é realmente filha de meu avô, tem direito a parte da herança dele.

Ela riu.

-Se nem mesmo seu pai, que é filho natural e reconhecido, vai ficar com alguma coisa, você acha que eu vou?

-Meu pai simplesmente desistiu de tudo! Você não precisa fazer a mesma coisa. Ela.. ela a trata bem? Ela alguma vez a tratou bem?

Saí de cima dela, sentando-me no chão ao seu lado, e ela sentou-se também, arrumando as roupas e secando com o pano o sangue que escorria do arranhão. 

-Você é uma menina diabólica! Mal chegou aqui, e... e...

-Não sou diabólica.. só não sou tola. Como você, que passou a vida toda servindo minha avó. Não pretendo fazer o mesmo. Não mesmo! E se você me ajudar, nós duas vamos ficar muito bem de vida assim que ela morrer. Ela não está doente?

Ela me olhou com os olhos arregalados.

-O que você quer dizer?

-Me ajude, e eu ajudarei você.  Pode começar me contando tudo o que sabe sobre esse Dr. Gustavo.

(continua...)




terça-feira, 4 de junho de 2019

Capítulo XXII, PARTE II - Cristina Fala






PARTE II – CRISTINA FALA

I I– Minha avó

Cria da casa: eis tudo o que eu era, tudo que eu sempre fui. Não é nada fácil não ter uma definição: não ser negra ou branca, e sendo pobre, usar as roupas caras presenteadas por alguém de uma rica família, e sentir-se observada nas ruas com ódio e inveja de pessoas que provavelmente se perguntam como uma negrinha como eu poderia usar roupas como aquelas. Não poder frequentar uma universidade, mas ter à mão os melhores livros já escritos na imensa biblioteca do patrão, que não apenas os empresta, mas também estimula as leituras. Sempre fui a filha da empregada. Qualquer momento que eu possa ter pensado ser outra coisa, não passou de um engano.

De que me adiantou ter nascido bonita e ser desejada, se nunca pude ter o homem que eu amava? Por que sair com a filha do patrão e seus amigos, fingindo que eu era uma deles, quando nenhum dos rapazes que me tratavam bem e faziam com que eu me sentisse “incluída”, “uma deles,” jamais quis me namorar – apesar de terem tentado outras coisas comigo e me difamado quando eu disse não? Eu queria ter nascido bem negra, ou bem branca, porque os negros não me aceitavam por eu não ser uma deles, e os brancos não me aceitavam pelos mesmos motivos. A começar pela história dos meus pais – um branco rico que engravidou uma preta pobre e foi banido do reino para ficar com ela. Poderia tê-la jogado na rua, como tantos outros, mas teve a honra de não abandoná-la e de assumir sua filha, que passou a odiar devido a tudo que teve que renunciar por ela. Ele nunca me incentivou a valorizar a minha parte branca; pelo contrário: enfatizava sempre a minha parte negra, e o quanto eu deveria andar de cabeça baixa por causa dela, respeitando os brancos e não me atrevendo nunca, nunca, a tentar ser qualquer outra coisa, a tentar fazer valer a minha parte branca. Ele também me enxergava como a filha da empregada da casa. Às vezes eu me pergunto se, durante as surras que ele me dava, alguma vez ele se lembrava de que era a sua própria filha que estava ali, sob os golpes do seu cinto de couro, e não a filha da empregada da casa.

Mas se havia uma pessoa naquela casa que me amava de verdade, além da minha mãe, essa pessoa era minha pequena amiga Yara. Dava para ver nos olhos dela o quanto ela me adorava! Uma vez eu li um livro sobre vidas passadas e reencarnação, e fiquei achando que Yara era minha irmã em outra vida. Foi muito doloroso deixar aquela casa sem me despedir dela. Mas eu não ia aguentar vê-la chorar, e acabaria ficando, e se eu ficasse, não teria conseguido tudo o que consegui. Não teria me vingado de minha avó e de todos que me humilharam.

E quando Marcelo disse que era melhor a gente dar um tempo e não ‘forçar a barra,’ eu entendi que até mesmo para ele, eu nunca tinha sido importante. Eu entreguei a ele a minha virgindade, a minha alma, o meu corpo, o meu amor, a minha dignidade. Briguei com meus pais por causa dele. Enfrentei a fúria do meu pai por ele, e ele veio me dizer que achava melhor nos afastarmos por um tempo.

Berta… ela mantinha uma amizade comigo porque fazia uma bela figura junto aos seus amigos liberais e moderninhos. Dava a eles a impressão de que ela era não-preconceituosa, que não enxergava ‘diferenças,’ que não tinha nenhum problema com diferenças de classe social e que defendia algo que seus amigos moderninhos pregavam: a igualdade. Afinal, Os Panteras Negras, Martin Luther-King e Malcolm X estavam na moda! “Black was really beautiful!” Na hora de ficar ao meu lado, ela mostrou quem realmente era. Esqueceu-se rapidamente das vezes em que dançamos juntas noite afora, dos segredos que partilhamos, e de como era andar comigo de mãos dadas pelas ruas e atrair toda a tenção dos garotos mais bonitos, que só ficavam em público com ela, mesmo que me cobrissem de elogios, mas sempre me arrastavam para trás de algum muro. Afinal, eu era só a filha da empregada.

Dona Mirtes e ‘seu’ Nelson, os patrões de meus pais; aqueles que, quando chegavam, colocavam uma cama de armar no quarto das meninas para que eu fizesse companhia para elas e as distraísse, mas que quando iam embora, trancavam a casa à chave e recomendavam aos meus pais que não me deixassem brincar lá dentro. Quantas vezes eu quis assistir TV colorida e não pude! Ah, quantas vezes eu olhava para aquelas janelas trancadas e me lembrava daquela enorme banheira cheia de espuma, que eu não tinha autorização para usar!

E eles faziam questão de dizer a todos que éramos como se fôssemos da família… como se fôssemos… só que não éramos. Nunca fomos.

Não me lembro de nenhum deles tentando me encontrar quando eu fugi; não me lembro de nenhuma vez em que algum deles tentou interromper enquanto meu pai me batia. A não ser pela Yara. Nem sei se, após crescer e adquirir maturidade o suficiente, ela seria corrompida pelo mesmo preconceito da família, mas enquanto criança, Yara tinha o maior coração de todos. Durante os longos anos em que estive fora, era só nela que eu pensava, era só dela que eu sentia saudades.

Na verdade, antes mesmo de ir embora, fui escorraçada daquela casa. Proibiram minha entrada na sala. Todos esqueceram que eu existia. Nunca mais eu me sentei junto com a família. Só porque eu sorri, numa tentativa de ser gentil, para o noivo da patroinha. Dali em diante, ela me denominou “Cria da Casa.”  Mas o que mais me doeu, foi quando meus pais afirmaram que eu tentei seduzir Sebastian, o noivo da patroinha! Nem eles acreditaram em minha inocência. Talvez porque eu tinha fama de namoradeira. E eu era namoradeira sim. Eu me tornei aquilo que todo mundo esperava de mim. Era para trás de um muro que todos os meninos me levavam, e era para lá que eu achava que tinha que ir. Era ali que eles gostavam de mim, era ali que eu me sentia admirada. E mesmo eu só permitindo alguns amassos e beijos, eles saíam contando coisas que eu nunca tinha feito com nenhum deles, mas quem acreditaria em mim?

Eu cresci vendo Marcelo crescer, e acho que desde sempre eu fui apaixonada por ele. Mesmo quando ele não passava de um menino magro, alto e desengonçado, cheio de espinhas, eu já gostava dele. Ele só passou a me enxergar depois que eu fiquei mais velha, e ele também. Fomos apresentados um ao outro através dos nossos hormônios. Marcelo foi o meu primeiro homem, e eu fui sua primeira mulher. Perdi a conta das vezes em que ele afirmou que me amava, que era totalmente louco por mim e que se casaria comigo, e com nenhuma outra. Juramos amor eterno inúmeras vezes. Mesmo antes de fazermos amor. E eu acho que era sincero, pelo menos, eu achava. Era sincero da minha parte, e era sincero da parte dele também. A gente se amava. Mas Marcelo foi fraco, e teve medo do que os outros iam pensar, do que a mãe dele ia dizer – Aurora, aquela araponga empinada.

Fui embora, e aquela foi a melhor coisa que eu já fiz. Deixei para trás aquilo que todas as pessoas sempre me disseram, deixei de seguir o caminho que elas apontavam para mim, me recusando a caminhar por ele. Eu não deixaria que determinassem qual era o meu lugar. Fui procura-lo eu mesma.

Assim, quando deixei aquela casa apenas com a roupa do corpo e alguns trocados que eu economizara por anos da mesada que meu pai me concedia, segundo ele, para os meus alfinetes, eu fui parar direto na grande casa de fazenda de minha vó Helena. Ela nunca me vira, e eu nunca a vira. Pelo que percebi, os empregados sabiam da minha existência – deu para ver na expressão deles quando me apresentei como sendo neta de Dona Helena. Exigi que anunciassem a minha presença naquela casa.

Enquanto esperava em uma sala imensa, reparei no chão encerado e brilhante como espelho. Havia quadros nas paredes – pinturas que representavam a família em uma série de rostos que eu não conhecia, mas identifiquei características de meu pai, bem mais jovem, em um deles. Havia um que logo percebi serem de meus avós, juntos, ambos muito sérios. Ela tinha sido uma mulher bonita, mas de semblante frio. 

No centro daquela sala havia uma grande mesa com lugar para doze pessoas, e bem no meio dela, uma terrina de porcelana que parecia ser bem antiga. Era uma linda peça, e me aproximei para ver melhor, passando o dedo suavemente pela tampa onde estava retratada uma cena campestre. E foi assim que escutei a voz dela pela primeira vez, bem atrás de mim, me despertando com um susto, cortando o silêncio daquela sala, ecoando entre as paredes e indo bater no meu rosto feito um tapa.

-Quem é você? - ela disse. 

E eu me virei para encará-la. Uma mulher idosa, mas muito alta e de postura ereta, me fitava. Seus olhos azuis eram frios, e ela tinha cabelos totalmente brancos, presos em um coque na nuca. Engoli em seco, mas não perdi a coragem; empertiguei-me para encará-la, e respondi, sem tremor na voz:

-Sou Cristina, sua neta. 

Reparei no vestido preto que ela usava, de mangas compridas e abotoado até o queixo, apesar do tempo quente. Ela era magra e elegante, bem diferente do que alguém imagina sobre a avó que nunca conheceu. Helena era uma mulher forte. Uma mulher que não se dobraria facilmente, assim como eu, sua neta. Ficamos nos encarando longamente, até que ela finalmente disse:

-O que você quer de mim?

Sem hesitar, respondi:

-Conhece-la. Fiquei sabendo que estava viva há pouco tempo.

Ela pareceu relaxar um pouco, e fazendo sinal para que a seguisse, sentei-me ao lado dela em um sofá de assento de palhinha, muito antigo e desconfortável. Havia uma distância de mais ou menos um metro entre nós. Uma distância segura, eu diria. Helena olhava-me insistentemente, e o que ela estaria pensando era totalmente incógnito para mim. Seu rosto era inescrutável. 

Ela mexeu-se e alcançou um pequeno sino na mesinha ao lado do sofá, tocando-o levemente, e uma mulher de meia-idade apareceu:

-Jandira, traga-nos um refresco e algumas fatias de bolo. 

Jandira concordou com a cabeça e saiu em silêncio, sem me olhar. 

Lá fora passarinhos cantavam, e o sol estava alto. Dentro da casa, uma penumbra e um silêncio sepulcrais. A luz do sol entrava pelas frestas das venezianas fechadas, e por uma banda de janela entreaberta do outro lado da sala. Jandira voltou, depositando uma bandeja com suco e fatias de bolo na mesinha em frente a nós. Helena ficou me olhando, e ordenou que ela saísse, e depois disse para mim, secamente:

-Sirva-se. 

Agradeci, e com toda a sede do dia anterior, no qual viajara de ônibus a noite toda para chegar ali, enchi o copo duas vezes, mas não consegui comer nada, apesar da fome que sentia. Minha garganta estava seca, e eu sabia que não conseguiria engolir. Quando depositei o copo de volta na bandeja, ela falou novamente, e desta vez, a voz estava mais controlada e quase gentil:

-Seu pai telefonou para mim ontem, após tantos anos... confesso que foi estranho ouvir a voz dele. 

Fiquei surpresa ao saber do telefonema de meu pai.

-Ele me disse que talvez você aparecesse aqui, e me pediu para recebê-la em minha casa. Eu pensei muito. Decidi, a fim de resgatar os nossos últimos anos de distância, aceitar o pedido dele. Afinal, ele nunca me pediu nada, depois que... depois que ele foi embora desta casa. 

Tomei um gole de suco, tentando aliviar a secura na minha garganta. Minha avó me fitava insistentemente, sem a menor discrição. Pousei o copo de volta na bandeja, após esvaziá-lo. Não sabia muito bem o que dizer a ela, e tive a impressão de que estava sendo tão difícil para ela quanto para mim. Eu só tinha certeza de uma coisa: precisava convencê-la a me deixar ficar, pois eu não tinha para onde ir, nem dinheiro para pagar um lugar onde ficar. Mas ela mesma me poupou o esforço:

-Seu pai me contou sobre você. Disse que é muito impulsiva, exatamente como ele costumava ser. Engraçado como a história se repete! Você, apaixonada pelo patrãozinho branco...

Os olhos dela pareceram se perder de repente em recordações que eu não alcançava, e eu vi dor neles, por isso deixei passar a ofensa. Ela continuou:

- Vítor... - seu avô – era um homem muito severo e muito ligado em tradições. Sempre preocupado com o que a sociedade iria dizer. Quando nos casamos, eu era apenas uma menina tola e apaixonada pelo belo homem bem mais velho e de aparência forte, e foi melhor que eu estivesse apaixonada, pois meu pai já havia decidido que eu me casaria com ele. Ele determinava as ordens na casa. Ele expulsou seu pai daqui, e minha única alternativa, foi concordar. 

Sem saber bem o motivo, perguntei:

-Vocês foram felizes?

Ela respirou findo antes de responder, e sem me olhar, disse:

-E o que significa ser feliz? 

Só então ela me sorriu muito levemente. Eu encolhi os ombros, e não respondi, pois notei que ela não esperava uma resposta. Minha avó tocou novamente o sino, e Jandira voltou à sala, parando junto dela e aguardando as ordens. Minha vó disse:

-Prepare o quarto de hóspedes. O azul. 

E virando-se para mim, determinou:

-Você vai ficar comigo. Vai morar aqui, mas terá que trabalhar para se manter. A escola fica muito longe daqui, então contratei um tutor para ensiná-la aqui em casa a partir do próximo semestre. Estudará de manhã e trabalhará na casa durante a tarde. Fará o que lhe for mandado, e não questionará nada, entendeu?

A ideia de ficar presa naquele lugar ermo, sendo uma empregada, me apavorou. Eu não queria nada daquilo para mim. Eu queria a chance de ter uma vida diferente, uma vida melhor. Não queria voltar a ser uma empregadinha. Levantei-me:

-Agradeço, mas não vou ficar. Só queria conhece-la. 

Ela me olhou da cabeça aos pés, e após algum tempo, sem levantar-se, comentou:

-Você é mesmo muito bonita. Muito mais bonita do que seu pai me falou. Uma moça como você não pode ficar por aí, à toa. Logo será uma garota perdida na vida. Sente-se.

Não costumo obedecer a ninguém, mas eu me sentei. Minha face queimava, e minha garganta doía do esforço que eu fazia para não chorar na frente dela. 

-Você será o meu resgate. Sou uma mulher velha, e já cometi muitos erros na vida. Você é a oportunidade que Deus está me oferecendo de resgatar a minha entrada no paraíso, que pode ter certeza, não demorará muito mais tempo. Só por isso eu a deixarei ficar aqui em minha casa. Não pense que nutro por você qualquer tipo de afeto. Todo o amor que eu sentia foi-se embora desta casa no dia em que seu pai... meu filho... se foi com aquela... aquela...

Os lábios dela tremeram.

- Agora vá. Parece cansada, e precisa de um banho. Logo será chamada para que aprenda suas novas funções. Jandira estará no comando, e você deve obedecê-la em tudo. 

-E o que eu ganho com isso?

Ela se levantou, e mesmo que eu também tivesse me levantado, ela era bem mais alta que eu, e sua aparência era intimidadora. Ela ergueu o tom de voz, e o que disse ecoou pelas paredes da sala:

-O que você ganha? Casa. Comida, instrução. Um nome. Mas um teto sobre sua cabeça já seria o suficiente. Porém, nesta casa todos trabalham, pois ninguém come de graça. E você não será nenhuma exceção.  

Após um minuto de silêncio, ela voltou a falar no tom de voz normal, que era frio e decidido:

-Todos os empregados aqui já devem saber quem você é (ela ergueu a voz); Eles tem mania de escutar atrás das portas. (Nesse momento, ouvi um leve farfalhar e passos que se afastavam da porta da cozinha). Mas todos eles sabem também que você não é mais importante que nenhum deles, portanto, trate de se enturmar, se é que me entende. 

(Continua...)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...