sexta-feira, 14 de junho de 2019

INOCÊNCIA - Capítulo XXIII, Parte II- Neta?





II – Neta?

O quarto azul era espaçoso e muito bonito. Minha cama era cercada por um lindo dossel de renda branca que mantinha os mosquitos longe durante a noite. Fiquei me perguntando o porquê de minha avó não ter me colocado na ala junto com os demais empregados da casa, mas achei melhor não perguntar. 

Eu daria um jeito de mudar aquela situação. Eu a faria me enxergar como sua neta, que é o que eu verdadeiramente era. 

Na manhã seguinte, havia um vestido simples e algumas roupas íntimas estendidos na cadeira ao lado da minha cama, e eu o vesti. Prendi os cabelos, fiz minha higiene matinal e abri a porta cuidadosamente, no exato momento em que Jandira passava pelo corredor. Ela ergueu as sobrancelhas ao me ver, dizendo:

-Acordou tarde. São sete da manhã. A partir de amanhã, deverá estar de pé antes das seis. Deverá servir o café da manhã de D. Helena em seu quarto.

-Bom dia para você também, Jandira. 

-Para você, eu sou DONA  Jandira. Me chame de ‘senhora.’

-Tentei soar irônica, mas ela não ligou:

-Está bem, ‘senhora Jandira.’ Por que minha avó não toma café na sala de almoço?

-Porque ela é a patroa, e pode tomar seu café onde bem quiser. Sua obrigação é servi-la, não questionar seus hábitos. Além disso, ela é uma mulher doente e idosa.  A louça do café está na pia, e você pode ir até lá e lavá-la. Depois, descasque as batatas que estão no saco junto à mesa, e quando terminar, vá varrer a casa e tirar o pó dos moveis. O material de limpeza está no quartinho junto à cozinha. Se quiser tomar café, o bule e o leite estão sobre o fogão. Esquente-os. O pão está no armário sobre a pia.

Dizendo aquilo ela me deixou no meio do corredor, e eu mal sabia onde ficava a cozinha. Decidi ir até a sala de estar, que era o único cômodo que eu conhecia, além do meu quarto e do banheiro. Quando entrei, minha avó estava sentada à mesa da sala acompanhada de um homem de terno cinzento. Ambos olhavam alguns documentos e discutiam em voz baixa. Ao notarem minha presença, eles me olharam, e pude notar que o homem era jovem e muito bonito. Ele ficou me encarando boquiaberto, e minha avó me apresentou a ele:

-Esta é a menina de quem lhe falei, Dr. Gustavo. Está morando aqui por enquanto. Minha neta.

Ele acenou para mim com a cabeça, e respondi-lhe da mesma forma, sem saber se deveria me aproximar ou não. Minha avó me ajudou a tirar minha dúvida:

-Vá procurar trabalho, menina. Há muito a ser feito na fazenda. 

Ela voltou a ler os documentos, e Dr. Gustavo ficou me encarando. Também olhei para ele, e concluí que deveria ser o advogado de minha avó. Na cozinha, comecei a cumprir as ordens de Jandira, que lidava com as panelas do almoço. Enquanto eu descascava as batatas, perguntei:

-Quem é aquele moço bonito na sala?

-Advogado de D. Helena. 

E ela não disse mais nada.

Ao final daquele dia, eu estava exausta, não apenas pelo tanto que havia trabalhado, mas também pelo calor sufocante. Minha avó almoçara no quarto, e eu comi minha refeição na cozinha, junto com Jandira. Apesar da casa ser grande, apenas eu e Jandira trabalhávamos nela. Os demais empregados cuidavam das plantações de café, dos animais e de outros assuntos fora da casa. Concluí que Jandira deveria trabalhar demais antes da minha chegada, e comentei aquilo com ela.

- Havia uma outra moça. Mas D. Helena a demitiu antes de você chegar. 

-Por minha causa?

- Não sei. Ela não era muito trabalhadora mesmo.

Fiquei triste ao saber que a outra moça poderia ter sido demitida por minha causa, mas mudei de assunto:

-Há quanto tempo está aqui, Dona Jandira?

-Há quanto tempo? A minha vida toda, eu nasci aqui na casa. 

-E onde estão seus pais?

Ela ficou irritada, e respondeu:

-Você faz perguntas demais, menina! Não é da sua conta.

Logo senti que ela não gostava de tocar naquele assunto, o que me fez concluir que havia alguma coisa escondida ali. Jandira ainda guardava traços de ter sido uma bela mulher. Deveria estar na casa dos quarenta, quarenta e cinco anos. Tinha o semblante sofrido, mas notei que seus olhos azuis ainda guardavam um pouco da beleza da juventude. Ao olhá-la mais longamente, comecei a perceber traços do retrato de meu avô que estava pendurado na parede da sala. Seria impressão minha? Ela ergueu os olhos dos seus afazeres, e me pegou encarando-a. Fiquei vermelha, baixando os olhos. Ela pareceu muito irritada, mas nada disse. Mas eu era atrevida, e queria saber.

-Você é filha do meu avô, não é? Então você... e eu somos... parentes!

Ela deixou cair a terrina com as cascas de laranja que estava preparando para fazer um doce. 

-Olhe o que me fez fazer, sua curiosa! Pegue tudo agora mesmo!

Não fiz menção de me erguer da minha cadeira, e continuei descascando as batatas. Eu não tinha medo dela. Não deixaria que me intimidasse. Ao contrário, eu a encarei e disse bem devagar:

-Pegue você, tia. 

Ela ergueu-se da cadeira e veio em minha direção. A fúria nos olhos dela fez com que eu me também erguesse e estendesse os braços para repeli-la. Ficamos as duas naquela luta dentro da cozinha, grunhindo e derrubando talheres no chão. Nem sei por quanto tempo ficamos assim. Os olhos dela estavam injetados e cheios de lágrimas, e o rosto, muito vermelho. Ela pegou uma mexa do meu cabelo, puxando-a do rabo de cavalo, e passou a pendurar-se nela, o que me fez dar um grito de dor. Acabei arranhando-a no braço. Ela me deu um tapa no rosto, e eu caí, agarrada a ela, que caiu em cima de mim. 

Eu era mais forte, e movimentei meu corpo, sentando sobre o dela, e segurando seus braços com força, eu disse:

-Sua tola! Não vê que se é filha do meu avô tem direito à herança dele?

Aos poucos, senti o corpo dela relaxar sob o meu. Ainda ofegante, ela me perguntou:

-O que você está dizendo?

-Se você é realmente filha de meu avô, tem direito a parte da herança dele.

Ela riu.

-Se nem mesmo seu pai, que é filho natural e reconhecido, vai ficar com alguma coisa, você acha que eu vou?

-Meu pai simplesmente desistiu de tudo! Você não precisa fazer a mesma coisa. Ela.. ela a trata bem? Ela alguma vez a tratou bem?

Saí de cima dela, sentando-me no chão ao seu lado, e ela sentou-se também, arrumando as roupas e secando com o pano o sangue que escorria do arranhão. 

-Você é uma menina diabólica! Mal chegou aqui, e... e...

-Não sou diabólica.. só não sou tola. Como você, que passou a vida toda servindo minha avó. Não pretendo fazer o mesmo. Não mesmo! E se você me ajudar, nós duas vamos ficar muito bem de vida assim que ela morrer. Ela não está doente?

Ela me olhou com os olhos arregalados.

-O que você quer dizer?

-Me ajude, e eu ajudarei você.  Pode começar me contando tudo o que sabe sobre esse Dr. Gustavo.

(continua...)




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