quarta-feira, 31 de julho de 2013

As aventuras de D. Iraci e D. Nena - O dia em que Marluce quase virou jantar



O Dia em que Marluce quase virou jantar

Marluce, a galinha, ciscava calmamente no quintal em uma quente tarde de novembro. Dona Iraci terminava de esfregar a roupa antes de colocá-la para 'bater' no tanquinho, cantarolando uma de suas canções favoritas, enquanto ficava de olho em sua amiga penosa.

"Lari, lará, lari, lará....Alejandro!" (Dona Iraci era fã da Lady Gaga).

Quando termina de esfregar a roupa e coloca o tanquinho para funcionar, ela chama o filho Gleidson, que setava sentado ali perto, ouvindo música em seu MP3:

"Ô Gleidson! Fica de olho na Marluce e prende ela no galinheiro antes de entrar pra dentro!"

Gleidson, com os fones de ouvido bombando um funk barulhento, tem uma vaga noção de seu nome sendo chamado, e vira o rosto em direção à mãe, sem ter a menor idéia do que ela está dizendo, e balança a cabeça, concordando. Alguns minutos depois, Charlene, a filha de Dona Nena ( por quem ele arrastava um caminhão) grita seu nome, e ele sai desarvoradamente para encontrá-la no portão. A tchutchuca o convida para dar uma volta, e Gleidson nem se preocupa em fechar o portão antes de sair.

Do outro lado da rua, Marluce é observada por uma olhar frio e calculista, que a filma por entre as frestas de uma cerca de madeira: É Frieda, a cadela alemã de Dona Gerda. Ela anda de um lado para o outro, calculando a melhor maneira de vencer a cerca de madeira e aproveitar aquela oportunidade única. Finalmente, anda alguns passos para trás e, no embalo de uma corrida, salta por sobre a cerca.



Marluce cisca despreocupadamente, mas logo estica o pescoço e sente o perigo no ar, a rondá-la. Batendo as asas, ainda tenta chegar até a porta da cozinha - onde Dona Iraci está lavando um pé de alface - mas é arrebatada em sua fuga pelas garras da fria cadela Frieda. Começam um cacarejar e um ruflar de asas desesperados, e Iraci, largando o pé de alface dentro da pia, vem correndo em resgate de sua amada Marluce.

Ao deparar com a cena de sua grande amiga sendo depenada pela malvada Frieda, ela leva as mãos ainda molhadas à cabeça e solta um grito desesperado: "Valha-me Deus, que a Marluce tá sendo atacada pela tropa alemã!" E sai correndo, já munida com sua vassoura, que usa para atingir as costas da impiedosa cadela, até que a mesma, desistindo de seu jantar (que já não estava mais tão fácil de conseguir), bate em retirada. Ainda tem, entre os dentes, algumas penas da pobre Marluce.

Desesperada e aos prantos, Iraci ajoelha-se no chão, enquanto Nena, a vizinha, atraída por seus gritos angustiados, a observa do seu lado do muro: "Ela tá viva, Iraci?"

De dentro da confusão de penas espalhadas, um som lamurioso: "Cóóó..." Iraci responde: "Graças a Deus, ela tá viva, sim! Mas aquele peste do Gleidson vai me pagar, ara se vai!" E colocando a sua pobre amiga depenada de pé, procura ´por ferimentos, mas não encontra nada. Marluce, ainda assustada, move a cabeça de um lado para o outro, enquanto um pensamento começa a se formar na mente de Iraci:

"Ara... foi aquela cadela nazista!"

Nena bate na própria testa, pensando: "Lá vem mais confusão!"

"Mas eu vou lá 'gorinha mesmo tirar satisfação com aquela condenada, 'cê vai ver!"

E atravessa a rua, gritando o nome de sua arqui-inimiga, com a Marluce nos braços:

"Dona Geeerda! Dona Geeeeeeeerda!"

Nisso, a platéia de vizinhos às janelas e calçadas, segurando vassouras e fingindo varrer para disfarçar, já tinha se formado. Dona Gerda vem lá de dentro de casa, uma mecha de cabelo ruivo sobre o olho esquerdo, cheia de sorrisos:

"Ah, olá, Dona Irrraci, em que possa serrr útil?"

Iraci, gritando: "Olha só o que a desgramada de sua cadela fez com a minha Marluce! Quase matou ela, se eu não chego a tempo! Vê se mantém essa fia duma égua dentro de casa, senão da próxima vez eu jogo água fervendo nela!"

Consternada, a bela alemã afasta o cabelo do rosto com uma virada de cabeça (provocando o murmúrio guloso dos homens da redondeza, alguns tocando de leve suas partes baixas, enquanto ela requebra até a calçada:

"Ooooh! Eu sinta muito, muito mesma! Desculpe, dona Irraci! O que posso fazerrr para conserrtarr este terrível acontecimento? Poprrezinha da Marrrluce!"

Iraci, já com Nena ao seu lado para prevenir qualquer ação impensada, responde: "Mantendo aquela cadela desgraçada na corrente, isso sim!"



Mais uma vez, a alemã se desculpa, e Nena, conseguindo acalmar sua comadre, a convence a entrar novamente em casa. Enquanto isso, atraídos pelos gritos de Iraci, Charlene e Gleidson se aproximam. Dona Iraci agarra o menino pela orelha, e o leva portão adentro, repetindo: "Quantas vezes eu tenho que te mandar fazer as coisa direito?"

Na manhã seguinte, Gerda bate palmas no portão de Iraci. Ela olha pela janela, e vê que a alemã está ao portão, segurando uma caixa de papelão:

"Bom dia, dona Irrraci! O Marrrluce está melhor?"

Desconfiada, e com a colher de pau na mão, Iraci grunhe uma resposta monossilábica e ininteligível. Gerda, ainda sem-graça, estende-lhe a caixa de papelão:

"Porrr favorrr, aceite esta prresente como uma maneirra de me desculpar!"

Iraci apanha a caixa e a abre, olhando de soslaio para Gerda. Quando vê o conteúdo - um lindo galo vermelho - não consegue disfarçar seu contentamento. Devolve um sorriso meio-apagado, murmura um obrigada entre os dentes, enquanto a alemã se afasta, requebrando as belas cadeiras.

E foi assim que Marluce ficou noiva de Alejandro, um belo galho vermelho, tão ruivo quanto a bela alemã.



quarta-feira, 24 de julho de 2013

O Retorno




Vivi e Lucy eram amigas de infância, e moravam em fazendas vizinhas. Suas famílias, muito amigas e unidas desde sempre, eram tradicionais naquela região. As meninas cresceram frequentando juntas a escolinha local, participando das festinhas da vila, partilhando sonhos e ansiedades de adolescentes. Tinham uma vida simples e bucólica, conforme os costumes do campo.

Mas enquanto as duas amigas cresciam, algo acontecia a uma delas: Vivi sonhava com a vida que via nas fotografias das revistas que comprava na banca do Seu Antônio. Queria ser como aquelas meninas da cidade grande, magras, sofisticadas, com as unhas e a pele do rosto coloridas. Queria ter uma casa moderna, cheia de aparelhos eletrodomésticos de última geração, e acima de tudo, desejava fazer faculdade: sonhava em ser advogada. À noite, antes de dormir, gostava de fantasiar sua imagem como uma mulher crescida e séria, bem vestida, sentada atrás de uma bela escrivaninha, tomando decisões importantes.

Aos quinze anos de idade,  o coração de Vivi batia cada vez mais longe de sua cidadezinha. Sonhava em  ir morar na capital com uma tia, que tinha uma casa por lá e já a convidara. Queria provar das luzes faiscantes da felicidade, conhecer pessoas sofisticadas e cultas.

Enquanto isso, Lucy gostava daquela vidinha sem pressa. Seu desejo era dar continuidade ao trabalho na fazenda, arranjar um bom partido e casar-se; aliás, já tinha alguém em vista: João da mercearia. Desde o ano anterior, eles vinham se olhando timidamente. O rapaz crescera muito nos últimos meses, deixando de ter aquele ar infantil, criando corpo e cultivando uma barba rala e aloirada. Lucy mal conseguia disfarçar o som das batidas de seu coração, toda vez que entrava na mercearia e o via atrás do balcão, lápis atrás da orelha, os músculos delineando-se sob a camisa axadrezada. Os dois trocavam olhares significativos e ela corava... mas Lucy não sabia que dentro do seu coração, João alimentava uma paixão secreta por sua amiga Vivi; na verdade, ele estava dividido entre as duas. Vivi até jogava um pouco de charme, mas como tinha outros objetivos, acabou não dando muita importância à sua atração pelo rapaz.

Finalmente, Vivi - para tristeza de Lucy - decidiu ir embora para a cidade grande. As amigas se despediram na pequena estação, entre abraços e lágrimas. Vivi ainda tentou convencer a amiga a juntar-se a ela mais tarde, convite do qual Lucy declinou, dizendo: "A minha vida é aqui."

João, desiludido com a partida de Vivi, achou que seria melhor namorar Lucy, com quem casou-se alguns anos depois, e tiveram dois lindos filhos. Arrumaram uma casinha no terreno da fazenda dos pais dela, e ele acabou abrindo sua própria vendinha. A casa pequenina, de estilo bem campestre, era o que fazia Lucy realmente feliz. A vida com o marido e os filhos, as aulas que ela passou a ministrar na escolinha local pela manhã, os almoços em família aos domingos, as festas no centro da cidadezinha... tudo fazia com que ela sentisse que havia feito a escolha certa permanecendo por lá. As cartas da amiga, que no início chegavam pontualmente toda semana, foram rareando aos poucos. Telefonemas também. Não havia sinal de celular ou internet naquela área, o que dificultava ainda mais a comunicação das amigas.

Na cidade, Vivi estudou e formou-se em direito, como sonhara. Teve vários namorados, e amigas lindas e sofisticadas. Logo, vestia-se apenas 'na moda,' frequentava os melhores restaurantes. Sua tia apresentou-a à alta sociedade local. Aprendeu a ser polida, a sorrir quando não tinha vontade e a jamais expressar o que realmente pensava. Sua tia sempre lhe dizia: "Não é de bom tom ter opiniões muito arraigadas sobre as coisas. Na sociedade, é melhor que você seja sempre amigável, polida e muito educada, e assim, será sempre bem vista aonde quer que chegue." E Vivi seguia-lhe todos os conselhos, inclusive, tomava aulas de etiqueta com a tia.

Um belo dia, Vivi estava sozinha em seu escritório após o expediente. Olhou em volta, sentindo agrado por tudo o que tinha conquistado através de seu trabalho. Pensou, de repente, na amiga de infância: como estaria ela?  Como seria sua vida? Após oito anos na cidade grande, Vivi ficara sabendo que a amiga se casara, e também do nascimento de seus dois meninos; mas deixara de ter contato com ela, devido à vida atribulada que tinha. Resolveu que nas próximas férias, iria fazer uma visita à velha amiga. E foi.

Quando se reencontraram, na mesma estação onde antes se despediram, as duas se abraçaram com alegria. Lucy percebeu o quanto a amiga tinha ficado diferente dela e das pessoas daquele lugar. Reparou em suas roupas caras, sua maquiagem e perfume sofisticados, seu porte elegante. Sentiu-se mal, em seu vestido largo de algodão simples, a cara limpa e os cabelos presos em um rabo de cavalo. Mas mesmo assim, sentiu-se sinceramente alegre ao revê-la.

Já Vivi, ao ver que a amiga não tinha progredido em nada, sentiu um leve desprezo por ela. Aceitou o convite para o almoço, embora por dentro, sentisse que sua estadia ali tinha sido um erro. Mesmo assim, quis ser gentil com a velha amiga de infância. Mas já tinha decidido: anteciparia sua volta à cidade, e lá, telefonaria para uma de suas amigas, convidando-a para passar o restante das férias em um balneário chique. 



Quando chegaram à pequena e bucólica casinha, Vivi olhou em volta, e tentando esconder seu desapontamento pela extrema simplicidade da casa, exclamou: "Nossa, que casinha linda!" Mas seus olhos logo brilharam mais forte quando avistaram, à porta da varanda, João de pé com seus dois menininhos. Mal olhou para as crianças; perdeu-se na aparência máscula e atraente de João, cujo coração também bateu mais forte.

Durante o almoço, Lucy desdobrou-se para agradar a amiga, servindo-lhe a melhor refeição que conseguiu cozinhar. Nem percebeu as trocas de olhares entre seu marido e Vivi, ocupada que estava em servir e olhar as crianças ao mesmo tempo. Ao final do almoço, enquanto retirava sozinha a mesa e lavava e guardava os pratos, Vivi e João ficaram sozinhos conversando, após as crianças dormirem de cansaço.

Ele pensou que tinha sido realmente uma pena que ela tivesse escolhido ir embora, pois com certeza, optaria por ela. Ela pensou que João estava bem mais bonito do que ela se lembrava. 

Afinal, os planos para antecipar sua partida acabavam de ser cancelados; decidiu que antes de ir embora, teria João em sua cama, custasse o que custasse.

Enquanto as duas amigas conversavam, de pé à janela, João as observava, sentado no sofá da sala, fazendo comparações. Percebeu pela primeira vez que a esposa ganhara peso desde que se casaram; notou o cabelo desgrenhado, as roupas rotas, as unhas curtas e sem esmalte. Ao mesmo tempo, encantou-se com as lindas roupas de Vivi, seu ar sofisticado, suas mãos bem cuidadas, seu corpo esguio sob o vestido justo. Começou a encher-se de desejo por Vivi, que segundo notara, o correspondia.

No começo da noite, Vivi decidiu que deveria ir até à fazenda dos pais a fim de visitá-los. Para ela, mais uma obrigação social. Despediu-se deles, fazendo falsos agrados às crianças, prometendo que voltaria na manhã seguinte com presentes.

Durante a noite, João teve muitos sonhos eróticos com a amiga de infância de sua mulher, que dormia ao seu lado sem suspeitar de nada.

Alguns dias se passaram, e os olhares trocados pelos dois passaram a incluir conversas sussurradas pelos corredores, enquanto Lucy não estava por perto. Tudo aquilo terminou explodindo numa tarde quente, quando Lucy precisou ir até a cidade, levando as crianças: João e Vivi deram vazão ao seu desejo no paiol, sobre o feno. Eles fizeram amor várias vezes, e Vivi conduziu João em todas elas, mostrando-lhe prazeres que ele jamais pensara possíveis. E a cena se repetiu durante os próximos dias: arranjavam sempre uma maneira de ficarem sozinhos, encontrando-se nas estradinhas desertas entre as fazendas, nos pastos abandonados e nas cachoeiras. João dizia à esposa que ia fazer entregas, ou receber fornecedores;  enfim, arranjar desculpas para estar com Vivi tornou-se uma especialidade para ele.



Mas enquanto para João aqueles encontros eram resultado do amor e da paixão que sentia por Vivi, para ela não passavam de uma aventura de férias. Ligar-se a alguém como ele não estava em seus planos. Logo ela, envolver-se com um caipira? Jamais! mas na cabeça do rapaz, mil planos eram construídos. 

Após quinze dias da estadia da amiga, Lucy finalmente percebeu o ar distante do marido. Ele não a procurava mais. Mal falava com ela, e se o fazia, era com frieza. Enquanto isso, a amiga passou a evitar visitá-la. Quando convidada, dizia-se ocupada. 

Numa tarde, ao ser abordado pela esposa, que desejava saber o que estava acontecendo, João tomou uma decisão: contaria tudo à ela! Aquela vida dupla não lhe fazia bem. Tudo o que queria, era assumir seu relacionamento com Vivi, e na certeza absoluta de que era correspondido, nem pensou em consultá-la antes. Ele estava certo de que ela desistiria de tudo pelo amor dos dois. Assim, uma Lucy despedaçada escutava o marido dizer-lhe que estava apaixonado por Vivi, e que não fazia mais sentido permanecer casado com ela; ele a estava deixando. Mas faria tudo pelas crianças, e gostaria que continuassem amigos.

Ela nada disse quando ele passou por ela carregando uma pequena mala com suas roupas, batendo a porta atrás de si. Estava totalmente arrasada. Tinha sido duplamente traída, pelo marido e pela amiga de infância. Olhou em volta: a casa vazia (as crianças estavam com os avós) pesava-lhe sobre os ombros. Sentia-se humilhada, pequena. Estava confusa, mal podendo acreditar no que estava acontecendo em sua vida.

Naquela tarde, João foi ao encontro de Vivi e contou-lhe tudo o que havia feito.  Ela o escutava, atônita, mal acreditando na besteira que aquele caipira estúpido acabara de fazer! Ao invés de abraçá-lo apaixonadamente como João esperava, Vivi passou a xingá-lo e humilhá-lo  impiedosamente. Transformou-se de mulher apaixonada e fogosa em víbora agressiva e maledicente. Por fim, mandou que ele fosse se reconciliar com a esposa, pois ela estava indo embora naquela mesma tarde.

Deixou-o de pé no meio do pátio, as mãos ainda segurando a pequena mala com roupas. João sentou-se no gramado e chorou, enquanto observava Vivi afastar-se com passos duros, entrar na caminhonete dos pais e ir embora, dirigindo raivosamente. Naquele minuto, ele ouviu um trovão distante. A chuva forte começou a cair sobre ele, deixando-o encharcado. 

Em casa, Lucy olhou-se no espelho, e começou a comparar o que via com o que se lembrava da aparência radiante de sua ex-amiga. Percorreu os olhos pelo corpo sem-graça e quase estragado por dois partos. Sentiu as mãos grossas e calejadas pelo trabalho na fazenda. Passou uma das mãos pelos cabelos mal-tratados e sem cor, e examinou a pele precocemente envelhecida e queimada de sol. Achou que João tinha razão: ela merecera o que tinha acontecido. 

Ignorando a chuva, ela saiu da casa em transe, dirigindo-se ao riacho que ficava além da curva. Vagarosamente, lá chegando ela foi entrando na água que ia cobrindo seu corpo aos poucos. Suas lágrimas misturavam-se à chuva torrencial. 

João ergueu-se do gramado, respirando fundo. De repente, pensou na esposa com todo o amor que ela realmente merecia. Percebeu o quanto fora injusto e cruel. Envergonhado de sua atitude, decidiu que tentaria fazê-la compreender o quanto ele estivera enganado, o quanto tinha se deixado levar pelos falsos encantos de Vivi. Cenas da vida dos dois vinham-lhe à cabeça: o pedido de casamento, a construção da casa, a festa na igreja após a cerimônia, a gravidez do primeiro e do segundo filho, o nascimento de seus meninos. Tanta coisa boa tinham vivido juntos! E durante todo aquele tempo, ele jamais havia pensado em Vivi, até que ela surgira na sua frente oferecendo-se a ele.

Tudo fez sentido em sua mente; João correu para casa, esquecendo a mala no chão. 

Chegou a tempo de, ao passar pelo riacho, ver Lucy já com água à altura dos ombros. Chamou pelo nome dela, mas ela não o escutou por causa da forte chuva que caía. João entrou correndo na água, nadando até aonde estava sua mulher. A correnteza era forte. Ele lutou com todas as forças que tinha para chegar até ela.  Finalmente, ela ouviu-o chamar seu nome, e virou-se na direção dele. 

João gritava que a amava, que tinha sido fraco, pedia perdão. Lucy começou a nadar na direção do marido. A correnteza era forte, mas ela finalmente conseguiu chegar até ele, e ambos lutaram para voltar à margem, o que fizeram com muita dificuldade. Ao chegarem à beira do rio, ambos deitaram-se cansados e ofegantes, lado a lado. A mão dele procurou a dela, que se deixou segurar.

Vivi foi embora naquele mesmo dia, e nunca mais voltou.

Após alguns dias, João percebeu que a mulher que ele tirara de dentro do rio era bem diferente da que tinha entrado; Lucy passou a cuidar bem da sua aparência, e abriu um pequeno negócio na cidade - uma loja onde vendia seus artesanatos. Era tão boa no que fazia, que em poucos meses estava exportando seus produtos e ganhando um bom dinheiro. 

Ao meso tempo, Lucy percebeu que o marido que a salvara também era bem diferente daquele que a tinha levado a tentar cometer suicídio: atencioso, carinhoso, solícito. Jamais deixava que ela lavasse sozinha os pratos do jantar. Juntos, estavam construindo sua nova casa: mais ampla e confortável, e em seu próprio terreno.




terça-feira, 16 de julho de 2013

A Chave Sob o Vaso - Minimalista




Um pouco apreensiva, ou melhor, o coração aos pulos, quase saindo pela garganta, eu caminhava pela rua reta. As casas ainda dormiam. Era manhã de domingo. Enquanto eu me dirigia ao meu destino, olhava tudo à minha volta e percebia que nada mudara. Os anos que passei longe pareciam não ter passado por ali.
Um sol fraco tingia de vermelho o horizonte, que queria amanhecer. Coloquei no chão minha valise, e fiquei contemplando aquela cena, mas na verdade, estava apenas tentando ganhar coragem.
Quando eu fui embora, saí pisando duro e batendo a porta. Não me importei com as súplicas de quem me pedia para ficar: "O mundo lá fora pode te despedaçar... aqui, estarás segura! Fique, pois esta é a tua casa."
Mas o horizonte gritava aventuras. 
Saí, e não olhei para trás. Mas pude vislumbrar, em meu pensamento, a figura de pé à porta, olhos presos às minhas costas até que eu desapareci na curva do caminho.
E agora, anos mais tarde, aqui estou novamente. 
Respiro fundo, e pego minha valise. Caminho mais um pouco. Pássaros cantam, e algumas janelas já começam a se abrir.
Paro em frente a casa que deixei há tanto tempo. Sobre o peitoril da janela, os três vasinhos de violeta carregados de flores. Sempre deixávamos a chave sob um dos vasinhos, caso um de nós chegasse mais cedo ou mais tarde. Poderíamos ter feito uma cópia da chave, mas isso teria tirado a emoção de procurar por ela. Era um jogo que gostávamos de jogar.
Levanto o primeiro vaso. 
Levanto o segundo vaso.
Levanto o terceiro vaso...


quarta-feira, 10 de julho de 2013

As Aventuras de D. Iraci e D. Nena - Macumba!!!





AS AVENTURAS DE D IRACI E D NENA – MACUMBA

Nena e Iraci estão na calçada, ‘varrendo’ algumas folhas secas (enquanto isso, aproveitam para tomar conta da vida alheia, mas sempre com muita discrição). Observam quando Gerda, a bela alemã, chega , estacionando seu fusquinha no meio-fio em frente à sua casa. Nena observa:
“Ora, Iraci... já faz quanto tempo que a Gerda mudou para cá?”
A outra coça o queixo, e responde:
“Hum... acho que já faz uns quatro mês... por que?”
“Bom, não é que eu queira fofocar da vida alheia, mas cadê o tal filho dela, que tava passando férias na Alemanha? E o tal marido motorista de caminhão? Eu não conheço nenhum caminhoneiro que fica quatro mês na estrada, e você?”
“Nem eu... imagina... mas vamo tirá essa dúvida ‘gorinha mesmo!”
Dizendo isso, Iraci chama a vizinha:
“Ô Gerda! Dá um pulinho aqui, mulher!”
A alemã, sorridente, atravessa a rua, cumprimentando as vizinhas. Um táxi pára para dar-lhe passagem, e ela agradece, sempre sorridente, e o motorista dá uma buzinada, passando por ela devagarinho. As outras duas se entreolham, significativamente, enquanto a bela loira se desmancha em gentilezas:
“Boa tarrde, Vizinhas! Como vai?”
Nena sorri, e Iraci pergunta:
“Ô Gerda, não é que seja da minha conta não, mas é que nós se apreocupa... donde tá teu marido caminhoneiro? E teu filho? As aula já começou faz tempo, e ele nem voltou das Alemanha!”
“Ah, vizinha... meu filho resolveu ficarr passarrr mais um ano lá no meu terra com os avós. Está estudando lá. Mas ele disse que vem passar natal, mês que vem.”
“E o teu marido?”
A bela responde, cabisbaixa:
“Ah, aquele trrraste mandarr uma carta dizendo que não voltarrr mais...encontrar rabo de saia em Sergipe e ficarr por lá. Mas eu não ligo. Ele era um trassste mesmo!”
Dizendo isso, ela se despede, e as duas continuam suas especulações:
“Nena de Deus! Já pensou se essa notícia se espalha?!”
“Ara, e o que que tem, Iraci?”
“Tu tá lesada, muié? Já pensou, essa daí ciscando solta pelos terreiro? Tu não preza teu casamento não? Ela é mais galinha do que a minha Marluce!” (referindo-se à Marluce, sua galinha de estimação).
“E o que é que nós vai fazer? Você tem razão! Ainda me lembro do dia que peguei o Ditinho saindo de dentro da casa dela, com aquela desculpa esfarrapada de consertar cerca quebrada!
“Pra mim, ela tava era pulando a cerca!”
A outra, indignada:
“Não fala assim, Iraci! Pensei que tu era minha amiga!”
“E sou! Por isso mesmo, nóis tem que dá um jeitinho nisso!”
“Mas fazer o quê?!”
Iraci chega mais perto da amiga, diminuindo o tom de voz:
“Tu lembra da época que o meu Zé tava se engraçando pra cima daquela uma? Nós foi naquela macumbeira das boa, a Mãe Joana?”
“É mesmo! Ela deu jeito! A outra sumiu do mapa! Dizem até que quebrou a perna! Fora os outros pobrema que ela já arresolveu pra nós... os pobrema de cabeça do meu Ditinho... nem precisei mais levar ele no psicopata!” (psiquiatra)


“E então? Aquela uma se viu comigo... quebrou a perna mesmo... manca até hoje! Não é que eu deseje mal a ninguém, mas se meteu comigo, vai ver!”
Nena diz, passando a mão pelas tranças do cabelo:
“Ah, mas a Gerda nunca te fez nada... ela até te deu o Alejandro, lembra?” (referindo-se a Alejandro, o galo de estimação de Iraci, presente de Gerda).
“Por isso mesmo, eu só vou pedir pra Mãe Joana arrumá um perna de calça pra ela! Assim a gente fica mais segura!”
Dizendo isso, as duas foram imediatamente ao telefone, marcar uma consulta. Na sexta-feira à tarde, elas se dirigiram para o Terreiro de Mãe Joana, e após esperarem na fila por duas horas, Mãe Joana finalmente as chama para dentro da tenda.
Mãe Joana é uma mulher de longos cabelos negros, olhos pretos injetados, unhas compridas que chegam até a dobrar nas pontas, uma verruga na ponta do nariz e um turbante vermelho na cabeça. Sua aparência é intimidadora, mas Nena e Iraci já são suas velhas clientes... Mãe Joana manda que elas se sentem, e começa a fixar os olhos em um copo de água que está em frente a ela, enquanto uma fumaça esbranquiçada começa a subir por trás de sua cadeira. Ela aperta os olhos, e diz:
“Humm... vejo aqui que uma de vocês está com um sééério problema!”
Nena e Iraci se entreolham, como a dizer: “Viu como ela é boa?” Mãe Joana continua:
“Coisa de homem... vejo uma mulher loira muito bonita... um perigo em potencial!”
Iraci interfere:
“Mas a senhora é das boa mesmo! A gente veio aqui por causa de uma alemã, vizinha nossa, que...” A ‘médium’ pede silêncio:
“Eu já sei de tudo...”


Silêncio total. Mãe Joana começa a revirar os olhos e tremer toda. Nena murmura:
“Tá baixando o santo! Ou então ela tá tendo um piripaque...”
De repente, Mãe Joana volta de seu transe, e olhando Iraci bem dentro dos olhos, diz com um sotaque afro: “O que é que suncês qué que eu faça?”
Entusiasmada, Iraci responde: “Nóis qué que a senhora arruma um perna de calça pra alemã! Um que faça ela ficar de quatro, pra modo dela nunca mais olhá pros nossos homem!”
Mãe Joana respira fundo, dá uma baforada no charuto que descansava em um cinzeiro sobre a mesa e diz, com voz gutural:
“Ocês presta atenção.” Dizendo isso, ela chama sua assistente: “ Genoveeeeva!!!”
Uma mocinha magra e loira, de andar preguiçoso, mascando um chiclete, entra em cena com um bloquinho e uma caneta, e passa a anotar tudo o que a outra diz:
“Ocês vão pegar: um galo preto, três maço de arruda, uma tigela de angu com pimenta, uma garrafa de cachaça da boa e cinco vela preta, três vermelha e quinze branca... tá anotando, Genoveva?”
“Tô, Dona Maria... quero dizer... Mãe Joana!”
“Ocês vão levá tudo isso pruma encruizilhada à meia noite... mas tem que ser perto do cemitério!”
Nena e Iraci gritam, quase ao mesmo tempo, e Nena diz: “Ah, não! Eu num gosto dessas coisa de cemitério, inda mais à noite!”
Nisso, Mãe Joana responde: “Bão... eu posso fazer isso procês, mas vai custar um pouquinho, sacumé... êh, êh... deixa aí cem pau e eu arresorvo tudo procês!”
Iraci e Nena se entreolham. Iraci diz: “Nena, é pruma boa causa!”
Dizendo isso, elas puxam, cada uma, cinqüenta reais da bolsa, depositando sobre a mesa. Mãe Joana diz: “Daqui a duas lua , a tal alemã vai tá tão enrabichada por um perna de calça que nunca mais ela vai se metê com os home de ocês! Ê, ê!”

E realmente, quando a lua cheia ergue-se no céu, Dona Iraci chega ao portão de manhã cedinho, e vê, saindo da casa da alemã, ainda abotoando as calças, nada mais, nada menos, que seu arqui-inimigo, Jorge Nojenta! Ele olha para ela, dá um sorriso maroto, mostrando todos os dentes de sua nova dentadura, e diz, bem alto:
“Bom dia, vizinha! Tô mudando pra cá! Hehehehehe...”
Moral da história: “Cuidado com o que você pede nas suas orações!”





quinta-feira, 4 de julho de 2013

CANDY




Candy 

“Beautiful, beautiful girl from the north...” – Iggy Pop - Candy




Nascida em 1990, ela recebeu o seu nome em homenagem a uma música de Iggy Pop que sua mãe, Patrícia, então com 15 anos, amava: Candy. 

Seu rosto açucarado e rosado de bebê, no qual brilhavam duas pedrinhas azuis tão claras quanto as águas de uma límpida lagoa, a boquinha arredondada em carmim, o fino cabelo de um loiro quase branco: tudo fazia jus ao nome escolhido: Candy. Porque ela era doce. Desde cedo, Patrícia decidiu que ela apenas vestiria a menina com roupinhas em tons muito claros, em rosa, verde, branco ou azul. A menina dos tons pastel, das flores miúdas, das trancinhas nos cabelos. Pele branco-rosada. Unhas rosadas. Calcanhares tão finos e macios, que Patrícia gostaria que a pele de seu próprio rosto fosse como a deles.

Andy, o pai, tinha apenas dezessete anos quando ela nasceu. No início, achava ruim ter que deixar sua vida de garoto tão cedo, arranjando um emprego como garçom em um restaurante local e estudando à noite, enquanto Patrícia, sem o apoio da mãe, precisou largar os estudos para olhar a filha. Nos finais de semana, ele fazia biscates, limpando escritórios, lavando janelas, cortando gramados e pintando paredes. Mal dava para pagar o aluguel do sobradinho que tinham alugado em um bairro de periferia.

Dora, a mãe de Patrícia, uma enérgica e preconceituosa viúva de cinquenta e seis anos, vivia em uma bela casa uma vida muito confortável com a pensão deixada pelo marido; mas era Protestante fervorosa, e não aceitou quando a filha adolescente chegou em casa um dia e anunciou sua gravidez: o que suas amigas da igreja diriam? Propôs que Patrícia abortasse, mas a menina, acusando-a de hipócrita por professar uma religião que não seguia, negou-se a tirar a criança. A mãe então achou que seria melhor se mandasse Patrícia para algum lugar distante até o bebê (que seria dado para adoção) nascesse; mas novamente, Patrícia negou-se a fazer o que a mãe propusera. Ela teria seu bebê.

E por causa de sua decisão, a mãe expulsou-a de casa. Prestava alguma ajuda financeira, mas não queria mais por os olhos na filha. O dinheiro era depositado em uma conta bancária todo mês, evitando qualquer contato entre as duas. Nem mesmo quando Candy nasceu, a avó quis visitá-la – apesar do telefonema do pai da menina, avisando-a sobre a neta.

Assim seguiam as vidas interrompidas daqueles dois adolescentes, que davam espaço para que uma outra vida começasse.



Andy era de uma família destroçada e muito pobre, mas tinha tantos sonhos dentro dele que gostaria de realizar e dos quais precisou abrir mão em nome da filha, que não sabia mais quem ele era. Começou a usar drogas durante uma noite de sexta-feira, numa happy hour com amigos. No começo, era só curtição, mas em alguns meses, tornou-se viciado em cocaína. Perdeu o emprego, e a pequena família passou a viver apenas da pensão da mãe de Patrícia e dos biscates que Andy ainda conseguia fazer nos finais de semana – único período em que estava totalmente sóbrio, quando tinha trabalho. E ainda devia dinheiro a alguns traficantes, que passaram a rondar o apartamento e ameaçá-lo de morte. Assim, a fim de pagar suas dívidas, Andy passou a vender drogas. O dinheiro era bom, e a vida financeira do casal melhorou bastante, mas Patrícia vivia apavorada: não podia ouvir uma sirene que seu coração disparava. Se o marido fosse preso, do que ela e Candy viveriam? Tão estressada Patrícia estava diante da possibilidade de ter que ficar sozinha, que entrou em depressão.

Candy cresceu em um apartamento sujo e bagunçado, no qual ela era a única beleza. Logo, a juventude e o frescor de Patrícia deram lugar às olheiras profundas, ao cabelo loiro maltratado e despenteado, que tombava, oleosamente, sobre os ombros magros e encolhidos, às roupas largas e surradas. Andy ganhou peso, e também perdeu seus traços de juventude. Seu olhar era vazio e triste. Só se alegrava um pouco quando tinha Candy em seus braços.



A menininha crescia a olhos vistos, cada vez mais linda e admirada até mesmo pelos amigos drogados do casal. Aos cinco anos, Patrícia matriculou-a em uma escolinha local, e Candy adorou sua nova fase. As professoras se encantavam por aquela pequena beldade loira de olhos azuis e pele rosada, lamentando o estado andrajoso em que Patrícia mandava a filha à escola; passaram a presenteá-la com roupinhas novas, que Patrícia vestia na menina quando não havia mais roupas limpas.





“I’ve had a hole in my heart for so long…” – Iggy Pop – Candy

Andy perdera sua alma em algum lugar. Talvez estivesse enterrada no mesmo lugar onde, há cinco anos, enterrara seus sonhos. Mas uma coisa boa brotara daquela renúncia, e essa coisa era Candy. Sempre que chegava em casa, chapado e desesperançado, ele pegava a menininha no colo e ia brincar com ela. Patrícia já não se deitava com ele há muito tempo, pois ela perdera todo o apetite para o sexo, e a aparência de Andy dava-lhe náuseas. Apenas cuidava para que Candy não passasse fome ou adoecesse, mas sempre que olhava para a filha, pensava no que sua vida poderia ter sido se ela tivesse feito o que a mãe mandara, há cinco anos... não limpava o apartamento com frequência, e quando o fazia, era apenas superficialmente. A vida era amarga. O futuro, uma armadilha.

Candy era uma menina alegre, apesar de tudo. Tinha as professoras. Tinha as coleguinhas da escola, e as vizinhas de sua mãe, que penalizadas, às vezes chamavam a menina para passear. Levavam-na ao zoológico, às festinhas de aniversário, ao parque, à piscina pública. Em casa, Candy passou a nutrir pela mãe a mesma indiferença que ela lhe dedicava, mas amava Andy, que ela chamava de ‘meu papaizinho.’ Fazia tudo para vê-lo sorrir um pouco. Adorava quando ele chegava e, mostrando as mãos escondidas às costas, ofertava-lhe balinhas coloridas. Sempre que o pai cruzava a porta de entrada, Candy corria para ele.

Certa tarde, quando Patrícia estava ausente, Candy escutou o choro do pai no quarto de casal. Parou à porta, sem saber muito bem o que fazer, e ficou olhando-o. Então, teve uma ideia: correu até seu quarto e pegou seu ursinho de pelúcia, levando-o até o pai, exatamente como ele fazia quando ela chorava. Andy abraçou a menina. Fez com que ela se deitasse ao seu lado. De repente, ele começou a sentir algo estranho pela filha. Percebeu que era o mesmo que sentia no início do seu relacionamento com Patrícia, quando ela era jovem e bela. Seu amor de pai transformou-se em amor de homem.

Candy faria qualquer coisa para que o pai voltasse a sorrir, e por isso, fez exatamente o que ele lhe pediu: que ela fosse boazinha. E Candy passou a ser a menina mais boazinha do mundo para o pai, sempre que Patrícia estava ausente.

Mas um dia, Patrícia chegou em casa de repente, e percebeu o que andava acontecendo. Foram horas de uma briga terrível, durante a qual Andy se desculpava, dizendo que jamais faria qualquer coisa que machucasse a filha deles, e acusava Patrícia de não mais fazer sexo com ele. 




“All my life you’re haunting me, I Love you so...” – Iggy Pop – Candy



A briga terminou com um apartamento totalmente quebrado, e uma overdose que matou Andy. Candy jamais se esqueceu da imagem de seu pai sendo levado, de olhos fechados, por dois homens de branco em uma maca. Também jamais esqueceria do olhar frio da mãe sobre ela, do outro lado da sala, enquanto disse: “A culpa é toda sua!”

Um dia, Patrícia aprontou Candy para o que ela chamou de ‘um passeio.’ Lavou-a cuidadosamente, penteou-lhe os cabelos, agora limpos e sedosos, colocou-lhe seu melhor vestido e saiu com ela de casa, tomando um ônibus. Ao mesmo tempo, colocou no bolso da menina uma carta endereçada à sua mãe. Patrícia, mais deprimida do que nunca, não conseguia mais tomar conta da filha; sua vida estava um caos. E estranhamente, sentia muito a falta de Andy.

Deixou-a à porta de sua antiga casa. Tocou a campainha e ficou do outro lado da rua, olhando, enquanto sua mãe – agora bem mais velha – abria o portão e recolhia a menina. Viu quando Candy, sempre obediente, entregou-lhe a carta. A avó leu. Depois, olhou para a menina de pé na sua frente, e pegando-a pela mão, levou-a para dentro de casa. Patrícia se foi, e nunca mais voltou.

A avó amou Candy desde o primeiro instante; viu na menina uma chance de consertar os erros que cometera com Patrícia. Matriculou-a na melhor escola do bairro, e ficou muito orgulhosa quando uma das mães lhe disse que Candy era tão bonita, que deveria participar de concursos de beleza.

Candy chorava à noite, mas gostava da avó e da linda casa onde morava. Sentia falta dos pais. Mas aos poucos, a apreensão por sua nova vida foi sendo substituída por novos amigos, nova escola, novas roupas e atividades variadas. A avó matriculou-a em aulas de balé, nas quais Candy se destacava; “tinha um talento nato!” - lhe diziam.




“Life is crazy.” – Iggy Pop – Candy

Candy sentia saudades do pai. Sonhava com ele à noite, mas jamais pensava em Patrícia. Não podia entender o motivo daquela briga que levara seu pai, e nem as acusações feitas pela mãe. Afinal, tinha apenas cinco anos de idade. Em sua cabeça, estava apenas tentando alegrar o pai.

Mas o tempo passa, e as crianças costumam guardar suas memórias em algum recôndito inacessível da mente que torna o dia-a-dia possível. Mesmo que no futuro, essas lembranças possam aflorar e causar muitos danos.

Finalmente, as amigas da avó a convenceram de inscrever Candy em concursos de beleza. Uma delas indicou-lhe um que pertencia à TV local, dizendo que seria um trampolim para o campeonato estadual de beleza infantil. Deu-lhe um cartão do organizador, um senhor chamado George Flores. A avó encantou-se pela sua simpatia desde o primeiro instante, e George ficou absolutamente maravilhado pela beleza de Candy. Pediu a avó que a trouxesse novamente dali a uma semana, a fim de uma entrevista mais detalhada. No dia marcado, Candy usava seus sapatos boneca azuis e um vestido branco rendado novinho em folha, e a avó a maquiara suavemente, destacando-lhe os lábios em forma de coração e colocando um pouco de sombra azul bem clara nas pálpebras, que faziam com que seus olhos derramassem ainda mais azul. Os cabelos foram cuidadosamente penteados, e cachinhos em molas caiam sobre seus ombros. Estava simplesmente um encanto!

Antes de ser chamada, a avó recomendou que Candy fosse simpática e bem-educada; a menina não entendeu o que a avó queria dizer com ‘bem-educada’, e perguntou-lhe: “Vovó, o que é ser bem-educada?” A avó, sorrindo, olhou-a com ternura, e segurando seu queixo delicadamente, explicou: “Basta ser uma menina boazinha.”

Bem, aquilo, ela sabia como fazer muito bem.

A avó deixou-a sozinha para a entrevista – recomendação do senhor George – para que a menina ficasse bem à vontade e fosse o mais natural possível. E Candy foi brilhante! George surpreendeu-se com seu talento para ser boazinha. Quando a avó retornou, ele comentou, entusiasmado, enquanto piscava para uma Candy sorridente, que aquela menina iria longe. E foi; Candy venceu o concurso da TV local, e sendo sempre muito boazinha, venceu o estadual.

Anos depois, tornou-se Rainha da beleza no baile da escola, e mais tarde, Miss Mundo. E todas as portas se abriram para ela, que tinha como agente dedicada, a avó. 

Mas da mesma maneira que seu pai, que perdera seus sonhos em algum lugar sem jamais voltar a encontrá-los, Candy sentia que perdera uma parte de si ao longo daquele caminho. Uma parte que ela não sabia bem qual seria, mas algo muito importante. E faltava uma luz na menina de seus olhos, uma luz que jamais brilharia em sua vida e em sua carreira bem-sucedida.



“I’ve learned to fake it and Just smile alone.” – Iggy Pop - Candy



segunda-feira, 1 de julho de 2013

As aventuras de D. Iraci e D. nena - A Chegada da Alemã


PARTE 3

A Chegada da Alemã

Dona Nena e Dona Iraci estavam junto ao muro que dividia o limite de seus terrenos, dedicando-se ao seu habitual dedinho de prosa, quando viram que um caminhão de mudanças estacionou junto a casa que estava para vender, do outro lado da rua. Ficaram observando o movimento. Curiosas, esticaram os pescoços um pouco mais, em uma tentativa de ver mais além.
Foi quando chegou um Fusquinha e estacionou atrás do caminhão de mudanças, e uma jovem senhora de longos cabelos ruivos, que caíam em ondas pelas suas costas, e quadris acentuados pela finura de uma cintura de pilão, saiu do fusquinha graciosamente, colocando para fora suas musculosas e bem-torneadas pernas, fazendo um pouco de suspense. Os homens que carregavam a mudança viraram as cabeças para olhá-la, enquanto ela, curvando-se em direção ao banco do carro e colocando em evidência seu avantajado traseiro , puxou pela corrente uma cadela vira-latas, igualmente ruiva.
Dona Nena coçou o queixo:
“Ora, e não é que tem vizinho novo chegando?”
A outra respondeu, não conseguindo disfarçar um toque de inveja na voz:
“E olha só, Nena, cheia de nove-horas... os home parece que vão cair de quatro...”
“Quem será a periguete?”
Nisso, a mulher começa a conversar com a cadela, como se fosse gente, mas em uma língua que as duas comadres não conseguiam entender.
“Virge, Nena! E não é que ela conversa com cachorro em uma língua esquisita? Será cachorrês?”
Dona Nena lembrou-se das vezes em que ela mesma tinha ouvido a Iraci conversar com Marluce, a galinha, como se ela fosse gente, e resolveu não comentar. Preferiu mudar de assunto:
“ Ih, olha só, ela tá vindo pra cá...”
A ruivaça se aproxima delas, balançando as cadeiras, seguida por sua companheira canina. Uma mecha de cabelos ruivos caindo sensualmente sobre um dos olhos. Quando ela chega mais perto, as duas percebem que ela tem olhos muito azuis.
“Boa tarrrde! Eu ser Gerda, acabar de comprarrr a casa ali!”
As duas se entreolham, com ar de mofa, e não respondem. A alemã continua:
“Eu ser vizinha nova de vocês. Como vão?”
A cadela solta um rosnado, mas logo se cala quando Gerda rosna de volta para ela. Tentando ser sociável, Iraci responde:
“Tudo bom? Meu nome é Iraci, e ela é Nena. Você é estrangeira, não é?”
“Sim, eu serrr da Alemanha. Chegar no Brasil cinco anos antes. Eu conhecerr marido brasileiro pela Internet e casar com ele.”
Mais aliviadas pela menção do marido- afinal, se ela era casada, talvez não representasse uma ameaça para os seus casamentos - as duas decidem ser mais hospitaleiras e chamam Gerda para um café na casa de Iraci. As três passam a tarde proseando, e ficam sabendo que a alemã tem um filho de doze anos. O tempo todo, Nena e Iraci olham a mulher de cima a baixo (sempre que ela não estava olhando)e depois que ela se vai, começam a enumerar os defeitos:
“Viu só, Nena, que ela tem um dente meio-torto aqui na frente?” Iraci diz, tocando o dente canino.
“E tem umas varizi também... acho que já tá meio-passada, não tá não?”
“Se tá! Home não gosta de branquela que nem ela, não...”
As duas se encaminham para o portão e ficam mais alguns minutos conversando, quando Nena vê o Zé – marido da Iraci - saindo da casa da Alemã, que o acompanha até o portão com um baita sorriso nos lábios bem desenhados. Nena observa:



“Xii, muié, aquele lá não é o Zé, não?”
A outra fuzila com o olhar o marido sorridente e cheio de rapa-pés:
“Por enquanto, é; mas daqui a pouco, pode deixar de ser!!!!”
Dona Iraci espera pacientemente, embora seu rosto já esteja vermelho de raiva, até que o Zé termine sua conversa com a Alemã; Nena a observa, já do lado de fora do portão, pronta para correr se a coisa ficar preta, mas ao mesmo tempo, curiosa, e doida para ver o circo pegar fogo. Quando o Zé finalmente entra em casa, a mulher dá-lhe um safanão nas costas, berrando:
“O seu desgramado, o que é que ocê tava fazendo se derretendo todo praquela uma?”
Pego de surpresa, ele se defende:
“Que – que me derretendo o que, Iraci! Eu só tava dando uma olhada na cerca dos fundos do quintal dela, que tá quebrada... fui colocar uns preguinhos, só isso!”
“Ah, é? E por que ela não pede pro marido dela fazer isso?”
“E eu sei lá! Ela me pediu, e eu fiz...”
Iraci lasca-lhe outro safanão:
“E eu, que to te pedindo há mais de mês pra fazer um galinheiro pra Marluce, e você nada? E a outra vai pedindo e você vai correndo né, seu cachorro! Pois agora pode pegar prego e martelo, e ir pra trás do quintal porque eu quero esse galinheiro pronto ainda hoje!”
“Mas mulher, tá escurecendo! E eu acho que vai chover, escuta as trovoada...”
“Dane-se as trovoada! Vai lá pra trás e pega aquela maldita tela e aqueles pedaço de madeira e começa a trabalhar! Já!”
E foi assim que Marluce finalmente conseguiu sua casa própria. E a guerra contra a Alemã foi oficialmente declarada!




A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...