quarta-feira, 24 de julho de 2013

O Retorno




Vivi e Lucy eram amigas de infância, e moravam em fazendas vizinhas. Suas famílias, muito amigas e unidas desde sempre, eram tradicionais naquela região. As meninas cresceram frequentando juntas a escolinha local, participando das festinhas da vila, partilhando sonhos e ansiedades de adolescentes. Tinham uma vida simples e bucólica, conforme os costumes do campo.

Mas enquanto as duas amigas cresciam, algo acontecia a uma delas: Vivi sonhava com a vida que via nas fotografias das revistas que comprava na banca do Seu Antônio. Queria ser como aquelas meninas da cidade grande, magras, sofisticadas, com as unhas e a pele do rosto coloridas. Queria ter uma casa moderna, cheia de aparelhos eletrodomésticos de última geração, e acima de tudo, desejava fazer faculdade: sonhava em ser advogada. À noite, antes de dormir, gostava de fantasiar sua imagem como uma mulher crescida e séria, bem vestida, sentada atrás de uma bela escrivaninha, tomando decisões importantes.

Aos quinze anos de idade,  o coração de Vivi batia cada vez mais longe de sua cidadezinha. Sonhava em  ir morar na capital com uma tia, que tinha uma casa por lá e já a convidara. Queria provar das luzes faiscantes da felicidade, conhecer pessoas sofisticadas e cultas.

Enquanto isso, Lucy gostava daquela vidinha sem pressa. Seu desejo era dar continuidade ao trabalho na fazenda, arranjar um bom partido e casar-se; aliás, já tinha alguém em vista: João da mercearia. Desde o ano anterior, eles vinham se olhando timidamente. O rapaz crescera muito nos últimos meses, deixando de ter aquele ar infantil, criando corpo e cultivando uma barba rala e aloirada. Lucy mal conseguia disfarçar o som das batidas de seu coração, toda vez que entrava na mercearia e o via atrás do balcão, lápis atrás da orelha, os músculos delineando-se sob a camisa axadrezada. Os dois trocavam olhares significativos e ela corava... mas Lucy não sabia que dentro do seu coração, João alimentava uma paixão secreta por sua amiga Vivi; na verdade, ele estava dividido entre as duas. Vivi até jogava um pouco de charme, mas como tinha outros objetivos, acabou não dando muita importância à sua atração pelo rapaz.

Finalmente, Vivi - para tristeza de Lucy - decidiu ir embora para a cidade grande. As amigas se despediram na pequena estação, entre abraços e lágrimas. Vivi ainda tentou convencer a amiga a juntar-se a ela mais tarde, convite do qual Lucy declinou, dizendo: "A minha vida é aqui."

João, desiludido com a partida de Vivi, achou que seria melhor namorar Lucy, com quem casou-se alguns anos depois, e tiveram dois lindos filhos. Arrumaram uma casinha no terreno da fazenda dos pais dela, e ele acabou abrindo sua própria vendinha. A casa pequenina, de estilo bem campestre, era o que fazia Lucy realmente feliz. A vida com o marido e os filhos, as aulas que ela passou a ministrar na escolinha local pela manhã, os almoços em família aos domingos, as festas no centro da cidadezinha... tudo fazia com que ela sentisse que havia feito a escolha certa permanecendo por lá. As cartas da amiga, que no início chegavam pontualmente toda semana, foram rareando aos poucos. Telefonemas também. Não havia sinal de celular ou internet naquela área, o que dificultava ainda mais a comunicação das amigas.

Na cidade, Vivi estudou e formou-se em direito, como sonhara. Teve vários namorados, e amigas lindas e sofisticadas. Logo, vestia-se apenas 'na moda,' frequentava os melhores restaurantes. Sua tia apresentou-a à alta sociedade local. Aprendeu a ser polida, a sorrir quando não tinha vontade e a jamais expressar o que realmente pensava. Sua tia sempre lhe dizia: "Não é de bom tom ter opiniões muito arraigadas sobre as coisas. Na sociedade, é melhor que você seja sempre amigável, polida e muito educada, e assim, será sempre bem vista aonde quer que chegue." E Vivi seguia-lhe todos os conselhos, inclusive, tomava aulas de etiqueta com a tia.

Um belo dia, Vivi estava sozinha em seu escritório após o expediente. Olhou em volta, sentindo agrado por tudo o que tinha conquistado através de seu trabalho. Pensou, de repente, na amiga de infância: como estaria ela?  Como seria sua vida? Após oito anos na cidade grande, Vivi ficara sabendo que a amiga se casara, e também do nascimento de seus dois meninos; mas deixara de ter contato com ela, devido à vida atribulada que tinha. Resolveu que nas próximas férias, iria fazer uma visita à velha amiga. E foi.

Quando se reencontraram, na mesma estação onde antes se despediram, as duas se abraçaram com alegria. Lucy percebeu o quanto a amiga tinha ficado diferente dela e das pessoas daquele lugar. Reparou em suas roupas caras, sua maquiagem e perfume sofisticados, seu porte elegante. Sentiu-se mal, em seu vestido largo de algodão simples, a cara limpa e os cabelos presos em um rabo de cavalo. Mas mesmo assim, sentiu-se sinceramente alegre ao revê-la.

Já Vivi, ao ver que a amiga não tinha progredido em nada, sentiu um leve desprezo por ela. Aceitou o convite para o almoço, embora por dentro, sentisse que sua estadia ali tinha sido um erro. Mesmo assim, quis ser gentil com a velha amiga de infância. Mas já tinha decidido: anteciparia sua volta à cidade, e lá, telefonaria para uma de suas amigas, convidando-a para passar o restante das férias em um balneário chique. 



Quando chegaram à pequena e bucólica casinha, Vivi olhou em volta, e tentando esconder seu desapontamento pela extrema simplicidade da casa, exclamou: "Nossa, que casinha linda!" Mas seus olhos logo brilharam mais forte quando avistaram, à porta da varanda, João de pé com seus dois menininhos. Mal olhou para as crianças; perdeu-se na aparência máscula e atraente de João, cujo coração também bateu mais forte.

Durante o almoço, Lucy desdobrou-se para agradar a amiga, servindo-lhe a melhor refeição que conseguiu cozinhar. Nem percebeu as trocas de olhares entre seu marido e Vivi, ocupada que estava em servir e olhar as crianças ao mesmo tempo. Ao final do almoço, enquanto retirava sozinha a mesa e lavava e guardava os pratos, Vivi e João ficaram sozinhos conversando, após as crianças dormirem de cansaço.

Ele pensou que tinha sido realmente uma pena que ela tivesse escolhido ir embora, pois com certeza, optaria por ela. Ela pensou que João estava bem mais bonito do que ela se lembrava. 

Afinal, os planos para antecipar sua partida acabavam de ser cancelados; decidiu que antes de ir embora, teria João em sua cama, custasse o que custasse.

Enquanto as duas amigas conversavam, de pé à janela, João as observava, sentado no sofá da sala, fazendo comparações. Percebeu pela primeira vez que a esposa ganhara peso desde que se casaram; notou o cabelo desgrenhado, as roupas rotas, as unhas curtas e sem esmalte. Ao mesmo tempo, encantou-se com as lindas roupas de Vivi, seu ar sofisticado, suas mãos bem cuidadas, seu corpo esguio sob o vestido justo. Começou a encher-se de desejo por Vivi, que segundo notara, o correspondia.

No começo da noite, Vivi decidiu que deveria ir até à fazenda dos pais a fim de visitá-los. Para ela, mais uma obrigação social. Despediu-se deles, fazendo falsos agrados às crianças, prometendo que voltaria na manhã seguinte com presentes.

Durante a noite, João teve muitos sonhos eróticos com a amiga de infância de sua mulher, que dormia ao seu lado sem suspeitar de nada.

Alguns dias se passaram, e os olhares trocados pelos dois passaram a incluir conversas sussurradas pelos corredores, enquanto Lucy não estava por perto. Tudo aquilo terminou explodindo numa tarde quente, quando Lucy precisou ir até a cidade, levando as crianças: João e Vivi deram vazão ao seu desejo no paiol, sobre o feno. Eles fizeram amor várias vezes, e Vivi conduziu João em todas elas, mostrando-lhe prazeres que ele jamais pensara possíveis. E a cena se repetiu durante os próximos dias: arranjavam sempre uma maneira de ficarem sozinhos, encontrando-se nas estradinhas desertas entre as fazendas, nos pastos abandonados e nas cachoeiras. João dizia à esposa que ia fazer entregas, ou receber fornecedores;  enfim, arranjar desculpas para estar com Vivi tornou-se uma especialidade para ele.



Mas enquanto para João aqueles encontros eram resultado do amor e da paixão que sentia por Vivi, para ela não passavam de uma aventura de férias. Ligar-se a alguém como ele não estava em seus planos. Logo ela, envolver-se com um caipira? Jamais! mas na cabeça do rapaz, mil planos eram construídos. 

Após quinze dias da estadia da amiga, Lucy finalmente percebeu o ar distante do marido. Ele não a procurava mais. Mal falava com ela, e se o fazia, era com frieza. Enquanto isso, a amiga passou a evitar visitá-la. Quando convidada, dizia-se ocupada. 

Numa tarde, ao ser abordado pela esposa, que desejava saber o que estava acontecendo, João tomou uma decisão: contaria tudo à ela! Aquela vida dupla não lhe fazia bem. Tudo o que queria, era assumir seu relacionamento com Vivi, e na certeza absoluta de que era correspondido, nem pensou em consultá-la antes. Ele estava certo de que ela desistiria de tudo pelo amor dos dois. Assim, uma Lucy despedaçada escutava o marido dizer-lhe que estava apaixonado por Vivi, e que não fazia mais sentido permanecer casado com ela; ele a estava deixando. Mas faria tudo pelas crianças, e gostaria que continuassem amigos.

Ela nada disse quando ele passou por ela carregando uma pequena mala com suas roupas, batendo a porta atrás de si. Estava totalmente arrasada. Tinha sido duplamente traída, pelo marido e pela amiga de infância. Olhou em volta: a casa vazia (as crianças estavam com os avós) pesava-lhe sobre os ombros. Sentia-se humilhada, pequena. Estava confusa, mal podendo acreditar no que estava acontecendo em sua vida.

Naquela tarde, João foi ao encontro de Vivi e contou-lhe tudo o que havia feito.  Ela o escutava, atônita, mal acreditando na besteira que aquele caipira estúpido acabara de fazer! Ao invés de abraçá-lo apaixonadamente como João esperava, Vivi passou a xingá-lo e humilhá-lo  impiedosamente. Transformou-se de mulher apaixonada e fogosa em víbora agressiva e maledicente. Por fim, mandou que ele fosse se reconciliar com a esposa, pois ela estava indo embora naquela mesma tarde.

Deixou-o de pé no meio do pátio, as mãos ainda segurando a pequena mala com roupas. João sentou-se no gramado e chorou, enquanto observava Vivi afastar-se com passos duros, entrar na caminhonete dos pais e ir embora, dirigindo raivosamente. Naquele minuto, ele ouviu um trovão distante. A chuva forte começou a cair sobre ele, deixando-o encharcado. 

Em casa, Lucy olhou-se no espelho, e começou a comparar o que via com o que se lembrava da aparência radiante de sua ex-amiga. Percorreu os olhos pelo corpo sem-graça e quase estragado por dois partos. Sentiu as mãos grossas e calejadas pelo trabalho na fazenda. Passou uma das mãos pelos cabelos mal-tratados e sem cor, e examinou a pele precocemente envelhecida e queimada de sol. Achou que João tinha razão: ela merecera o que tinha acontecido. 

Ignorando a chuva, ela saiu da casa em transe, dirigindo-se ao riacho que ficava além da curva. Vagarosamente, lá chegando ela foi entrando na água que ia cobrindo seu corpo aos poucos. Suas lágrimas misturavam-se à chuva torrencial. 

João ergueu-se do gramado, respirando fundo. De repente, pensou na esposa com todo o amor que ela realmente merecia. Percebeu o quanto fora injusto e cruel. Envergonhado de sua atitude, decidiu que tentaria fazê-la compreender o quanto ele estivera enganado, o quanto tinha se deixado levar pelos falsos encantos de Vivi. Cenas da vida dos dois vinham-lhe à cabeça: o pedido de casamento, a construção da casa, a festa na igreja após a cerimônia, a gravidez do primeiro e do segundo filho, o nascimento de seus meninos. Tanta coisa boa tinham vivido juntos! E durante todo aquele tempo, ele jamais havia pensado em Vivi, até que ela surgira na sua frente oferecendo-se a ele.

Tudo fez sentido em sua mente; João correu para casa, esquecendo a mala no chão. 

Chegou a tempo de, ao passar pelo riacho, ver Lucy já com água à altura dos ombros. Chamou pelo nome dela, mas ela não o escutou por causa da forte chuva que caía. João entrou correndo na água, nadando até aonde estava sua mulher. A correnteza era forte. Ele lutou com todas as forças que tinha para chegar até ela.  Finalmente, ela ouviu-o chamar seu nome, e virou-se na direção dele. 

João gritava que a amava, que tinha sido fraco, pedia perdão. Lucy começou a nadar na direção do marido. A correnteza era forte, mas ela finalmente conseguiu chegar até ele, e ambos lutaram para voltar à margem, o que fizeram com muita dificuldade. Ao chegarem à beira do rio, ambos deitaram-se cansados e ofegantes, lado a lado. A mão dele procurou a dela, que se deixou segurar.

Vivi foi embora naquele mesmo dia, e nunca mais voltou.

Após alguns dias, João percebeu que a mulher que ele tirara de dentro do rio era bem diferente da que tinha entrado; Lucy passou a cuidar bem da sua aparência, e abriu um pequeno negócio na cidade - uma loja onde vendia seus artesanatos. Era tão boa no que fazia, que em poucos meses estava exportando seus produtos e ganhando um bom dinheiro. 

Ao meso tempo, Lucy percebeu que o marido que a salvara também era bem diferente daquele que a tinha levado a tentar cometer suicídio: atencioso, carinhoso, solícito. Jamais deixava que ela lavasse sozinha os pratos do jantar. Juntos, estavam construindo sua nova casa: mais ampla e confortável, e em seu próprio terreno.




6 comentários:

  1. Que lindo conto e com um final feliz e bem surpreendente..gostei muito.

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  2. UFA ANA. QUE SUFOCO.
    O TEMPO TODO EU AGONIADA, MAS ADOREI O DESFECHO MTO BOM ,VC CONSEGUE NOS FAZER EM POUCOS SEGUNDOS TERMOS MILBOES DE PENSAMENTOS DIFERENTES DO QUE PODE VIR ACONTECER, E NO FINAL, FAZ TUDO DIFERENTE DO QUE POSSAMOS IMAGINAR, AMO TEUS CONTOS.

    AHH ADOREI VE LA EM MEU BLOG, POSTANDO SOBRE O SARAU NA CASA DA LÚ. QUE FOI MERAMENTE MARAVILHOSO, FIQUEI IMAGINANDO VC LA LENDO SEUS CONTOS. PERFEITOOOOOO!
    BJS NO TEU CORE.

    PATTY.

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  3. Podemos criar e imaginar o tempo todo, beijo Lisette,

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  4. Olá amiga Ana
    Um conto muito gostoso de se ler e que nos deixa preso até a última linha
    Adorei

    Abraços,
    Trocyn Bão - Thiago

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  5. Ana Bailune gostei muito do conto. Você realmente tem o dom do contista: prender a atenção do leitor e proporcionar-lhe aprazível emoção e deleite. Parabéns.
    Voltarei a visitar seu blog (está na minha lista de favoritos). Visite o meu, se gostar seja uma seguidora.
    http://www.nossoslivrosfree.com.br/

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  6. Uma delícia de conto! Você tem muito talento para escrever...

    Beijos.

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