segunda-feira, 30 de outubro de 2017

AMOR E REVOLTA – CAPÍTULO II






A volta para casa foi comemorada entre família, com uma festinha na qual os avós por parte de pai – Teófilo e Helena – e por parte de mãe – Gertrude – também estavam presentes. Rafaela e Cadu recomendaram aos pais não dramatizarem a situação e nem tocarem no assunto; estavam ali para comemorar uma ocasião feliz: a volta de Marvin. Esperavam que o que tinha acontecido fosse esquecido. Mesmo assim, Helena mal conseguia disfarçar sua ansiedade exagerada em agradar, e em um certo momento, Gertrude chamou-a para conversar:

-Helena, tente se controlar! Parece que o menino é de vidro! Você fica seguindo-o até quando ele vai ao banheiro! Relaxe!

-Relaxar? Como? Você não sabe que nosso neto quase morreu? Precisamos ficar atentos!

-Sim, mas faça isso sem pressioná-lo, por favor!

Helena calou-se, e Gertrude voltou para a sala de estar, deixando Helena a sós com seus pensamentos na varanda da casa. Ela pensou que talvez Gertrude tivesse razão sobre seus modos exagerados e superprotetores; mas ela sempre tinha a mania de mandar em todo mundo! Nas ocasiões festivas, era Gertrude quem fazia questão de decidir o que seria servido e o que cada pessoa da família deveria levar; ela até mesmo sugeria as cores das roupas que achava que as pessoas deveriam vestir nos casamentos de amigos!

No fundo, Helena gostava de Gertrude, mas sua mania de querer estar sempre em evidência às vezes a irritava. Coisa que Rafaela também herdara da mãe, e que às vezes fazia com que sogra e nora tivessem alguns desentendimentos. Helena só queria participar mais da vida da família, mas Rafaela e Gertrude pareciam fazer questão de mostrar que havia um limite até o qual ela e Teófilo deveriam ir. Teófilo achava que tudo aquilo era uma bobagem, e concordava com tudo, desde que todos estivessem felizes. Mas ela questionava: “Todos felizes, exceto eu!” E daí em diante, alguma rusga começava. 

Melissa ficara um pouco triste por não poder convidar Luis e Gabi para a festinha, e sabia que os amigos também estavam ficando magoados com a atitude de Marvin. Mas eles se conformaram, quando Melissa garantiu-lhes que tentaria conversar com o irmão, assegurando-lhes que era apenas uma fase passageira, e que Marvin estava apenas se sentindo envergonhado pelo que tentara fazer. 
Após a festinha, Cadu bateu à porta do quarto do filho, que jogava vídeo game. Marvin murmurou em “entre” um tanto cansado, e Cadu colocou a cabeça para dentro do quarto:
-Posso entrar um pouquinho?

Marvin assentiu com a cabeça, largando a maquete e desligando o vídeo game. O pai sentou-se na beirada da cama:

-Como você está?

Marvin fez um muxoxo:

-Tudo bem. Só um pouco cansado. Esses remédios me deixam meio sonolento... não vejo a hora de 
parar. 

Cadu olhava para o filho, e percebia o quanto ele crescera. A voz estava mudando, e os braços e pernas estavam começando a se cobrirem de pelos alourados. Ele se parecia muito com ele: o mesmo cabelo cacheado, os olhos castanho claros, a cova suave no queixo. Marvin era um lindo menino, pensou. E Cadu se perguntava aonde estivera nos últimos anos, que não percebera aquela mudança. Melissa era uma menina bem mais simples e comunicativa, e estava sempre disposta a conversar, enquanto Marvin era mais fechado e raramente dava sua opinião sobre qualquer coisa espontaneamente. Puxara o avô! 
Cadu passou a mão sobre os cabelos do filho, o que fez com que Marvin o olhasse com uma expressão um pouco confusa, já que aquele tipo de gesto não era frequente. Marvin sentia que havia algo que o pai adoraria dizer a ele, mas não tinha certeza se gostaria de ouvir, então desviou os olhos para a TV. Depois, pensou melhor e respirou fundo, dizendo:

-Desembucha logo, pai. O que é que está pegando?

Cadu foi pego de surpresa. Ficou um tempo com os lábios entreabertos, a palavra presa na ponta da língua. Depois, disse:

-Você cresceu. Está tão... diferente. Bonito, sabe. Eu queria dizer a você que pode contar com a gente sempre, filho. Não sou muito bom nessas coisas...

-Que coisas? – perguntou Marvin com um tom irônico.

-Você sabe...

-Relacionamentos?

Cadu engoliu a afronta, e desviou o assunto:

-Deixa pra lá. Amanhã a gente conversa melhor.
Dizendo aquilo, escapuliu pela porta rapidamente, fechando-a atrás de si. Marvin deitou-se na cama, olhando o teto. Por que a comunicação com Cadu era sempre tão difícil? E por que ele não facilitava as coisas para o pai? Arrependeu-se do que dissera, e jurou que no dia seguinte consertaria as  coisas. 
E o dia seguinte foi um domingo ensolarado. A família toda – inclusive os avós – resolveram ficar lagarteando na piscina, fazendo churrasco. Marvin era o mesmo de sempre: mais isolado dos outros, preferia ficar no seu cantinho. Era assim sempre, mas depois de tudo o que acontecera, os olhares dirigiam-se a ele disfarçadamente a todo momento. Principalmente a avó, Helena, ficava tentando puxar conversa com ele o tempo todo. Cansado daquilo, ele se levantou da espreguiçadeira:

-Está muito calor aqui. Vou ficar no quarto, ligar o ar e assistir a um filme. 

Helena logo se adiantou, dizendo:

-Quer que eu leve a sobremesa para você lá, querido?

Mas Marvin não respondeu. Impotente, Helena procurou apoio em Rafaela, dirigindo-lhe um olhar significativo, mas ela desviou os olhos, irritada. Teófilo, que presenciara a cena, preferiu afundar a cara no jornal e não se envolver, e Cadu, que já conhecia as manhas da mãe, foi dar um mergulho. Melissa bufou disfarçadamente. Amava a avó, mas às vezes sentia-se sufocada com tanta atenção. Mas Gertrude não perdeu a oportunidade de criticar Helena:

-Helena! Por que fica rodeando o garoto feito um satélite? Deixe ele em paz!
Irritada, Helena vociferou:

-Deixar o garoto em paz é tudo o que todos vocês sabem fazer, e vejam no que deu! 
Aquela frase foi como um soco no estômago para Rafela, e Cadu, sentindo a tensão do momento, ainda tentou mudar de assunto, perguntando em voz alta ao pai sobre o jogo daquela tarde. Mas era tarde demais. Rafaela já caminhava na direção de Helena feito uma locomotiva desgovernada:

-Agora vai questionar  a maneira como eu crio meus filhos dentro da minha casa?

Cadu interviu:

-Amor... deixe...

-Deixe uma ova! Já aguentei tempo demais, Cadu. E você nunca faz nada a respeito! 

Impotente, Teófilo sequer levantou-se da espreguiçadeira. Apenas desejou que aquele dia terminasse imediatamente. Helena, simulando estar muito ofendida, defendeu-se:

-Eu só quis ajudar! Mas parece que você e Gertrude dão as cartas sempre por aqui. Nunca aceitam minha ajuda, nunca acatam uma opinião!

-E já que sabe disso, por que insiste tanto em se meter, Helena?

-Me meter? Esta família também é minha! Não se esqueça que se eu e Teófilo não tivéssemos emprestado o dinheiro para pagar a casa, vocês nem estariam morando aqui!


-Ah, lá vem você de novo! Pagamos centavo por centavo, e não devemos nada! Sou grata pelo que fizeram, mas isso não dá a você o direito de se meter em minha vida.

A discussão estava ficando cada vez mais acalorada. Gertrude resolveu interferir, pegando a filha 
pelo braço e levando-a até a cozinha. 

Do quarto, Marvin podia ouvir tudo. Aumentou o volume da TV, cobrindo a cabeça com um travesseiro. 

Não achava que ia conseguir ficar em casa o resto do ano: queria voltar a estudar. E foi o que disse aos pais naquela mesma noite. Rafaela contou-lhe sobre a escola sugerida pelo psiquiatra:

-Dr. Figueiredo sugeriu esta escola, a “Escola da Luz.” Disse que eles têm uma abordagem menos estressante, algo mais... leve, holístico. 

Marvin concordou imediatamente. Não sabia muito bem o que “holístico” significava, mas qualquer coisa devia ser melhor do que sua escola.  E qualquer coisa seria melhor do que ficar em casa, enfrentando os olhares preocupados e a naturalidade forçada. 

E no início da semana, Rafaela e Cadu foram conhecer a Escola da Luz. Entraram de carro por um portão antigo de ferro, dirigindo por uma alameda asfaltada até a porta de uma mansão pintada de branco. Admirarm-se do quanto a escola era bonita e luxuosa. Pensaram que a mensalidade deveria custar uma fortuna, o que foi comprovado logo depois – quase o dobro que pagavam na antiga escola. 
Era a hora da saída, e eles repararam que os alunos não usavam uniformes, e todos pareciam pertencer às classes média-alta e alta. Telefones, tablets e computadores de marca circulavam livremente entre eles. Rafaela pensou que eles mesmos não pertenciam à classe média baixa, mas que as pessoas ali estavam acima.

Foram recebidos pela diretora, Maria Luiza, uma mulher de cabelos negros e curtos que aparentava algo entre 45 e 50 anos, vestindo pantalonas, tamancos de plataforma, jeans e blusa de seda multicolorida. Rafaela pensou que ela parecia uma figura saída de alguma fotografia dos anos 70, mas mesmo assim, achou-a bonita, e decidiu não julgá-la pela aparência das roupas. 

Maria Luiza mostrou-lhes a escola, dando explicações e respondendo perguntas. Cadu e Rafaela explicaram a ela as condições de Marvin, contando-lhe sua história recente, e Maria Luiza ouviu atentamente, concordando com a cabeça, e depois assegurou-lhes que aquela escola era realmente o que Marvin precisava. Cadu adorou tudo o que viu, e ambos se despediram dizendo que entrariam novamente em contato no dia seguinte, comunicando Maria Luiza de sua decisão. 

No carro, a caminho de casa (ambos tinham tirado o dia de folga), discutiram a situação:

-Rafaela, o que você achou?

-Bem... o lugar é bonito. As salas de aula são equipadas com computadores individuais... há um ótimo refeitório, e eu gostei muito da horta também. Mas é um tanto cara!

-Também achei, mas dá para pagar. Papai ofereceu-se para ajudar em alguma coisa.

Rafaela franziu as sobrancelhas:

-Se não se importa, gostaria que você recusasse a ajuda. Não quero ouvir Helena se gabando do quanto somos incapazes de cuidar de nossos filhos sozinhos. Seu pai é um amor, mas prefiro não aceitar a ajuda deles. 

Cadu sacudiu a cabeça, impaciente:

-Então vou ter que continuar com as horas extra no escritório. Como você acha que vou conseguir arcar com todas as despesas? 

-Vamos conseguir. É claro que eu vou ajudar também. Ficamos assim: eu pago a escola de Melissa sozinha, e você assume a escola de Marvin. 

Ele concordou.

À tarde, depois que Melissa voltou da escola, os pais comunicaram aos irmãos a decisão já tomada. Marvin sentiu-se aliviado por não ter que voltar à antiga escola, e Melissa tentou mostrar-se contente, mas alguma coisa no fundo da sua mente a incomodava. Tanta atenção ao irmão, a matrícula em uma escola melhor e mais cara, enquanto ela, que era praticamente uma filha modelo, mal recebia atenção! Ela tentou varrer aqueles pensamentos para longe, mas eles continuavam insistindo em incomodá-la. 

Deitou-se ao sol, na piscina, para aproveitar o final de tarde após o almoço. Fechou os olhos, deixando-se cair em um estado de sonolência. Foi despertada pelo barulho de alguém mergulhando: era Marvin. Ele deu algumas braçadas, e depois foi sentar-se na espreguiçadeira ao lado dela. Melissa voltou a fechar os olhos. Ela e o irmão nunca tinham sido inimigos, mas também não eram o que se podia chamar de grandes amigos; é claro que ela o amava, mas os dois não tinham quase nada em comum, e nem muito a conversar. Ela só ficava mais tempo com ela quando Gabi e Luis estavam junto, mas mesmo assim, com a presença dos dois e de outros amigos, eles não conversavam muito entre si. Ela sentiu que Marvin queria dizer alguma coisa, mas não o encorajou: permaneceu calda, de olhos fechados, e já tinha recomeçado a dormir quando a voz dele a despertou com um sobressalto:

-É... agora vamos estudar em escolas diferentes pela primeira vez. 

Ela não respondeu, nem abriu os olhos. Após alguns instantes, ele continuou:

-Vou sentir falta de ir para a escola com você.

Ela pensou nas manhãs em que o pai os levava de carro até a escola, antes de ir trabalhar, e nos longos silêncios que se estabeleciam entre eles durante a maior parte do trajeto. Ela abriu um olho, e perguntou:

-Falta de quê? Das nossas conversas interessantes e profundas? Dos nossos diálogos eloquentes?

Ele riu:

-Não... falta de estar com vocês, só isso.

-Não fiquei tão deprimido, irmãozinho. Com certeza, papai vai continuar nos levando a ambos.

-Creio que não. As escolas ficam em direções opostas. Ele chegaria atrasado, ou então teríamos que acordar muito cedo para evitar o tráfego. Talvez mamãe me leve. 

Ela sentou-se na espreguiçadeira, olhando para ele com ar zombeteiro e brincalhão:

-Posso pedir a vó Helena para vir buscar você todos os dias.

Ele fez uma cara engraçada, e ambos caíram na gargalhada. 

-Pelo amor de Deus, não!

Após rirem um pouco mais, fazendo caretas, ele perguntou:

-E quanto a Luis e Gabi? 

-Perguntam sempre por você. Mas você não quer vê-los...

-Vamos fazer o seguinte: que tal pegarmos um cinema hoje à noite? 

-Cinema na segunda-feira?

-É! O que é que tem de mal?

Ela sentiu o entusiasmo tomando conta dela:

-Vou ligar para eles agora mesmo!

(continua...)





quarta-feira, 25 de outubro de 2017

AMOR E REVOLTA – CAPÍTULO I








Era o mês de setembro. Rafaela parou o carro em frente à clínica de reabilitação mental onde o filho Marvin de 16 anos estava internado há quase duas semanas, em tratamento psicológico. Respirou fundo, e como se suas pernas pesassem toneladas, hesitou antes de sair do carro. Era dia de visita, e Paco, seu marido, que estava fora em uma viagem de negócios, não poderia ir. Melissa, sua filha de quinze anos, também não poderia visitar Marvin, pois estava em época de provas e não podia faltar à escola naquele dia. Aquela seria a primeira vez que Rafaela entraria por aquela porta sozinha, e sentia-se fraca. Não sabia como Marvin reagiria ao ver que o pai e a irmã não tinham vindo.

As memórias daquele dia terrível voltaram à sua mente. Rafaela foi quem o encontrou ao chegar do trabalho e passar pela sala de estar que se encontrava revirada, e ela pensou tratar-se de um assalto ao ver a TV espatifada no chão, os livros das prateleiras, objetos de decoração e demais móveis espalhados pelo chão, quebrados ou revirados. Ela se lembrou de que Melissa estaria na casa da amiga Gabi àquela hora, estudando para uma prova, e que Cadu tinha telefonado dizendo que ficaria no escritório até mais tarde. Com lentidão, seu cérebro registrou a informação de que apenas Marvin estaria em casa àquela hora, sozinho, e ela correu até o quarto dele angustiada, encontrando-o vazio. Chamou-o pelo nome, e como não houvesse resposta, ela começou a andar pela casa procurando por ele, passando sobre pilhas de livros escolares e papéis da escola que estavam em todos os lugares. 
Finalmente, atraída por um forte cheiro de éter, encontrou-o no banheiro do corredor, desacordado entre um mar de sangue que a fez escorregar e quebrar o braço. Mesmo assim, sentindo dor, ela conseguiu erguer-se e chamar a ambulância. Quando eles chegaram e os paramédicos a viram cheia de sangue, logo correram para ela, mas ela gritou: “Eu estou bem. É meu filho! É meu filho!” E apontou em direção ao banheiro. Enquanto os paramédicos iam na direção apontada, ela encostou na parede e deixou-se escorregar até o chão. Foi quando todo o estresse veio à tona, e ela começou a chorar e tremer.

Marvin ficou no hospital por quase uma semana. Perdera muito sangue. Ela não sabia há quanto tempo ele estivera naquela situação até ser encontrado. Rafaela e Cadu não puderam conter a emoção que sentiram quando o filho abriu os olhos pela primeira vez depois de dias. É claro, a pergunta que fizeram, em primeiro lugar, foi “por que?” Marvin chorou muito, explicando que não tinha a intenção real de se matar. Rafaela perguntou sobre o cheiro forte de éter que ela sentira ao encontra-lo, e ele confessou que tinha usado o éter a fim de desinfetar a lâmina com a qual cortara os pulsos, e também para cheirar e desmaiar a fim de suportar a dor e o sangramento sem entrar em pânico total. 
Rafaela e Cadu ficaram muito magoados com a atitude do filho, e várias vezes chegaram a discutir o porquê de todos eles terem chegado aonde chegaram. Cadu prometera que dali em diante procuraria chegar mais cedo em casa e participar mais da vida em família, e Rafaela também prometera a mesma coisa. Tentaria mudar seus horários no trabalho para estar em casa com as crianças quando eles chegassem da escola, e por causa disso, acordava duas horas mais cedo. Mas Cadu ainda não cumprira sua promessa, e continuava dedicando-se muito ao trabalho. Dizia que era apenas até terminar um trabalho que já tinha começado, um caso difícil que ficaria muito inconveniente transferir para outro advogado da firma onde trabalhava. 

Durante o período de análise psiquiátrica, Marvin dissera que desejava apenas chamar a atenção dos pais para seus problemas, porque eles não o escutavam. Jamais pensara que acabaria quase conseguindo morrer de verdade.

Ainda no carro, após  reviver aquelas memórias horríveis, Rafaela fechou os vidros e saiu, acionando o alarme. Foi caminhando devagar. Após conversar com o psiquiatra, Dr. Figueiredo, achou Marvin sentado em um banco do jardim da clínica, as mãos cruzadas e os cotovelos apoiados nos joelhos, olhando para o gramado. Ela estancou o passo e ficou ali, observando-o, antes de deixar que ele a visse. Percebeu que Marvin estava mais corado, e tinha ganho um pouco de peso. De repente, ele ergueu a cabeça e olhou na direção dela, sorrindo, e aquele sorriso iluminou seu dia. Eram raras as ocasiões em que ela o via sorrir. Andou até ele, que se ergueu e aninhou-se entre os braços dela. Rafaela o abraçou com cuidado, como quem tem medo de quebrar as asas de um pássaro frágil. 
Antes de vê-lo, ela tinha falado com o Dr. Figueiredo, psiquiatra da clínica, que cuidava do caso do seu filho. Ele lhe dissera que Marvin estava bem melhor, mas que teria que continuar o tratamento terapêutico e com medicamentos para controle da ansiedade por algum tempo ainda. As pressões da escola e das muitas atividades extra-classe na qual estava engajado não poderiam continuar. Ele precisava de um tempo. Talvez fosse melhor que ele não voltasse à escola naquele ano, e no ano seguinte, eles deveriam considerar mudá-lo de escola, já que aquela onde o matricularam há dois anos, seguia um regime muito rígido e competitivo para o qual Marvin não estava preparado para voltar ainda. Talvez jamais estivesse. O médico explicou mais uma vez que ele tinha personalidade sensível e impressionável, e seu excesso de empatia fazia com que ele absorvesse para si as reações das pessoas em volta. As constantes cobranças dos professores para que ele melhorasse seu desempenho faziam com que se sentisse inferior aos demais colegas. Marvin poderia ser um aluno mediano por toda a sua vida se continuasse naquela escola tão rígida, e isto poderia afetar negativamente sua autoestima e sua noção de valores. Uma escola mais liberal e menos exigente poderia ajudá-lo a se adaptar melhor e a melhorar seu desempenho como aluno. Dr. Figueiredo deu a ela um cartão de visita indicando uma escola com aquelas qualificações. Rafaela olhou o cartão: “Escola da Luz.” Achou o nome muito estranho; afinal, todas as escolas que conhecia tinham nomes mais imponentes, ou então homenageavam alguém. Dr. Figueiredo logo notou seu olhar descrente, e assegurou-lhe:

-Esta escola é muito boa. Meus filhos estudaram lá. A única diferença entre as outras escolas, é que os alunos são convidados a pensar e concluir sem pressões ou afirmações pessoais por parte dos professores, que apenas mostram o caminho. Também não existem as pressões das provas e testes, pois o desempenho dos alunos é testado desde o primeiro dia de aula através do seu desempenho geral. 

-Mas é uma boa escola? O nível de ensino não é fraco?

-Não se preocupe; meu filho formou-se em engenharia e minha filha em psicologia. Se o ensino fosse fraco, nem teriam passado no vestibular...

Dr. Figueiredo achou melhor não mencionar o fato de que seus dois filhos precisaram fazer cursos pré-vestibular durante três anos, após duas tentativas fracassadas de ingressarem em uma universidade. Mas na certeza de que aquela seria a melhor alternativa para alguém como Marvin, recomendou a escola, estressando o fato de que Rafaela poderia procurar outras escolas, se achasse melhor. E de fato, era uma boa escola. Seus filhos, porém, mimados que eram, não sabiam valorizar a sorte que tinham. 

Dr. Figueiredo também disse que o fato de ter sido uma tentativa de suicídio forjada – ninguém que tenciona realmente morrer tem a preocupação de desinfetar as lâminas que vão cortar seus pulsos antes – era melhor estarem seguros de que, ao deixar a clínica, Marvin estivesse se sentindo mais tranquilo. Achou melhor que Marvin fizesse novos testes na clínica, e que fosse liberado apenas após os resultados serem analisados, na semana seguinte.

Ao abraçar a mãe, Marvin logo perguntou:

-E papai e Melissa?
-Não puderam vir hoje, mas mandaram mil beijos para você. Melissa está estudando muito para as provas... teve um teste hoje... e seu pai está em viagem.

Ela viu o rosto dele ficar sério por alguns instantes, e uma sombra rápida passar sobre ele. Ela emendou:

-Mas tenho novidades: no final de semana, ela virá com a Gabi e o Luis. E eu e seu pai também. Trarei alguns livros para você. Sobre o que você quiser, é claro.

-Mãe... agradeço, mas a última coisa que eu quero ver nesse momento, são livros. Nem os não-didáticos. 

Ela ficou sem graça:

-Claro... que falta de sensibilidade... desculpe. 

-Também não quero que a Gabi e o Luis me vejam aqui. 

Ela ficou triste:

-Por que? São seus amigos! Se preocupam com você!

-Eu sei... mas... prefiro não vê-los por enquanto, mãe. É que eles me lembram a escola. Eles me lembram o que aconteceu naquele dia... quando eu estiver em casa eu juro que falo com eles.

Ela tentou demonstrar mais entusiasmo:

-Doutor Figueiredo me disse que talvez você possa ir para casa na próxima semana!

Marvin balançou a cabeça, deixando com que os cantos da boca se erguessem em um tímido sorriso. 

-Hey! Achei que fosse ficar mais feliz!

-Eu estou... mas vou ser obrigado a voltar para aquela escola, mãe?

Ela o abraçou de maneira protetora, beijando-lhe os cabelos e dizendo:

-Nunca mais.


(continua...)




A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...