terça-feira, 12 de dezembro de 2023

O ANDARILHO





 Não conseguia ficar parado por muito tempo - por isso, todos o conheciam como O Andarilho. Ninguém se lembrava quando ele tinha aparecido na cidade. No início, chamou atenção devido à sua figura tristonha e calada. A maneira como ele alugou um quarto na pensão local sem fazer qualquer exigência, e já na manhã seguinte desapareceu mata adentro por três dias, despertou a curiosidade alheia. 


Mas apenas momentaneamente.


Ele não era de muita conversa, e nem dava abertura a perguntas íntimas. Vivia a sua vida e não pisava duro no viver alheio. Nada perguntava, nada queria saber. Seu ofício consistia na venda de peças de bijuteria que ele mesmo fabricava e vendia, mas as pessoas achavam que sua renda não provinha dali; era apenas um hobby. O que ele ganhava através da venda de suas pobres peças com certeza não seria suficiente sequer para pagar o aluguel do seu quartinho.


E ele de vez em quando sumia mata adentro por três dias. Certa vez, um grupo de adolescentes seguiu-o para ver o que fazia. Viram-no pescando no rio, descansando sobre as pedras escaldadas pelo sol de inverno, observando os pássaros. 


Havia uma pequena caverna onde ele se escondia quando chovia. Os meninos viram quando ele entrou nela, mas apesar de terem ficado horas observando-o de seus esconderijos, jamais o viram sair. Quando o dia cedeu lugar ao crepúsculo, eles voltaram para suas casas e para seus pais aflitos. O Andarilho só retornou três dias depois. 


O Andarilho era uma dessas figuras curiosas, quase folclóricas, que existem em todas as cidades. Ele envelhecia seus anos, as pessoas iam envelhecendo junto com ele, novas pessoas nasciam, outras morriam e algumas iam embora pra sempre da cidade. E ele estava ali. E de vez em quando, ele sumia. Por três dias.


Até que um dia ele não voltou. Cinco dias se passaram antes que alguém decidisse que seria melhor ir atrás dele. 


Encontraram suas roupas dobradas dentro da caverna, sobre os sapatos gastos. Dele, nem sinal. Vasculharam o rio, a mata, os vãos sob as montanhas. E então desistiram. E quando o fizeram, se deram conta de que não sabiam nem mesmo o seu nome verdadeiro. Um deles decidiu que deveria haver algum registro sobre ele na pensão. E foram todos até lá para verificar.


O dono da pensão - o mesmo, desde que O Andarilho surgira - verificou seu grosso e encardido livro de registros, e encontrou o dia no qual O Andarilho tinha chegado. Não foi nada difícil, já que poucas pessoas se hospedaram na pensão decadente naquela época. 


Ele tinha escrito o nome dele ali, e também registrado um número de documento. Havia também uma assinatura, ele se lembrava bem. 


Mas ao abrir o livro naquela página, percebeu que nada mais havia. Estava vazia. Em branco.


O Andarilho sumiu. E de repente, sua figura tornou-se lenda local, nome de loja e de alameda. Alameda do Andarilho. Logo, surgiram relatos sobre algumas pessoas que o viram ascender em uma nuvem, e de milagres que havia realizado. Construíram um templo em sua homenagem, e os peregrinos começaram a chegar. Todos contavam lendas sobre como ele tinha ascendido aos céus e sido levado por uma nave interestelar. 


Enquanto isso, seu corpo jazia no fundo negro do rio, preso sob uma pedra. Mas os milagres continuavam. E os peregrinos chegavam. E a cidade prosperava. 




quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

SOB CONTROLE




 Joanna chegou àquela festa à qual preferiria não ter ido - mas como vocês já devem saber, muitas vezes sacrifícios são necessários para que se mantenha a paz... sua mãe havia implorado para que ela fosse; afinal, não aguentava mais dar desculpas pela sua ausência nas reuniões de família. 

Assim que Joanna pôs os pés na porta, viu a prima Margareth, filha do aniversariante, vir quase correndo em sua direção:

-Demorou por que? 

- Oi, Margareth, tudo bem? Boa noite pra você também.

Desvencilhando-se da prima, Joanna tentou levar seu presente ao aniversariante, seu tio Lúcio, que dava gargalhadas em um grupo de amigos de risos amarelos após ele mesmo ter contado (quem sabe, pela milésima vez) uma de suas piadas sem graça. Ao vê-la, o tio pegou o presente, e sem abri-lo, jogou-o dentro de uma caixa de papelão junto com outros presentes e aceitou os cumprimentos de feliz aniversário, lascando mais uma gracinha:

- Olá, querida sobrinha! Grato pela sua nobre presença desta vez, já que nas últimas duas festas você não compareceu. Mas e o cara metade? Não veio?

Joanna deu uma risadinha, sentindo todos os olhos presos nela:

- Ele está em uma viagem de negócios, tio. 

Lúcio riu, e procurando a aprovação dos demais com os olhos, umedeceu os lábios antes de soltar mais um comentário profano:

- Viagem de negócios, hein... sei... e essa viagem deve ser alta, loira, com peitões...

Joanna franziu as sobrancelhas e não respondeu, pedindo licença e se afastando, sentindo os olhos alheios pregados em suas costas e escutando a gargalhada insana do tio. Tia Helga passou com uma bandeja de copos de uísque barato, e Joanna, agarrando um deles, entornou o líquido garganta abaixo sem pensar. Ao sentir o peito e a garganta queimarem, ela fez uma careta.

Resolveu sentar-se em uma poltrona afastada do grupo, enquanto observava a festa. Mas sua paz durou bem pouco, pois logo viu sua avó caminhando em direção a ela:

-Não fala mais com os pobres, menina?

-Ah, oi, vó, desculpe, não vi a senhora.

-Então precisa colocar óculos o quanto antes. E como vão as coisas?

Logo, duas outras tias idosas juntaram-se a elas. A mais velha, ao sorrir, deixou aparecer o batom vermelho na ponta do dente. Joanna tentou soar simpática:

-Está tudo indo bem, vó. E a senhora, tudo bem?

-Melhor se eu pudesse morrer conhecendo meu bisneto antes. Já engravidou? Ainda não? Qual o seu problema?

A tia do batom no dente emendou:

-A função do casamento é ter filhos. Mulher que não tem filhos não é natural. E você já passou dos trinta, pelo que eu sei.

A outra tia acrescentou, arregalando os olhos:

-Você sabe... o relógio biológico...

A avó concordou com a cabeça, enquanto Joanna olhou o seu relógio de pulso - não o biológico:

-Sabe, está ficando tarde. Preciso ir. Amanhã tenho que acordar cedo.

A avó respondeu:

-Mas amanhã é sábado! Fica mais um pouco.

-Mas eu tenho uma reunião logo cedo, e...

A avó interrompeu-a:

-Já disse, você vai ficar até partir o bolo, é falta de educação sair da festa antes do bolo.

O rosto de Joanna esquentou, e ela respirou mais profundamente, se perguntando o que ela estava fazendo ali. De repente, uma das tias começou a falar com detalhes da sua cirurgia de apêndice, dos sintomas, sobre como ela descobriu o problema, o que o médico tinha dito. A tia do batom emendou a conversa falando sobre seu colesterol, e a avó abriu a bolsinha para mostrar os remédios controlados que tomava.

 Ao olhar para o outro lado da sala, Joanna deparou com Cláudia, sua irmã mais velha, olhando para elas com ar divertido. Joanna arregalou os olhos, pedindo para ser resgatada, mas Cláudia soltou uma gargalhada e sumiu no corredor em direção à cozinha. As duas nunca tinham sido grandes amigas, e Cláudia sustentava uma certa inveja da irmã mais nova.

Uma hora mais tarde, com uma dor fininha no meio dos olhos e bocejando sem parar, ela finalmente conseguiu uma brecha para interromper a conversa, ao ver sua própria mãe adentrar a sala trazendo o bolo de aniversário. Disparou:

-Olhem, é o bolo. Já vão cantar parabéns.

E dizendo aquilo, levantou-se correndo, seguida pelas três "gentis" senhoras. Uma delas falou às suas costas: 

-Mas Joanna, você não me explicou ainda: não tem filhos porque não quer ou porque é seca mesmo?

Joanna mal acreditava no que tinha acabado de escutar. Virou-se tão bruscamente, que acabou esbarrando na mãe, fazendo com que o bolo se esparramasse no chão. Ela instintivamente cobriu os lábios com as mãos, enquanto a tia berrava:

-Mas que desastrada! 

O tio bradou:

-Paguei uma nota preta nesse bolo para isso! Como você conseguiu estragar tudo, menina?

Enquanto a mãe tentava recolher o que tinha sobrado do bolo, ajudada pela esposa de seu tio aniversariante, a irmã gargalhava. A avó desferiu um doloroso beliscão em seu braço:

-Mas que porcaria, Joanna! Isso é coisa de hormônios! Teus hormônios não estão sendo utilizados como devem, e dá nisso! Destempero!

Naquele momento, Joanna explodiu; sentiu a sala tornar-se cada vez mais abafada, como se as paredes se curvassem sobre ela. Viu a raiva e o escárnio no rosto de cada um dos parentes e conhecidos - alguns riam, outros cochichavam, outros xingavam. De repente, Joanna não era mais ela mesma. Ou então, quem sabe, finalmente ela se tornara ela mesma?

-Vão todos vocês para o inferno - ela gritou.

Houve um silêncio geral, interrompido apenas por alguns 'ohs' escandalizados. Aquilo apenas incentivou-a:

-Quero que vocês todos vão para os quintos dos infernos! Comam esse bolo do chão como porcos que são! Lambam o piso, e depois sirvam-se de bebida no vaso sanitário! Eu odeio vocês! Desde sempre, tenho sido abusada e criticada por todos vocês, que só são gentis comigo quando precisam de alguma coisa! Mas agora acabou a assistência jurídica gratuita, por parte de meu marido, e as consultas médicas gratuitas da minha parte! Vão todos para os quintos dos infernos! Eu não aguento maaaaais!!!

Lentamente, Joanna acordou do seu próprio delírio, enquanto sua mãe, que tinha conseguido salvar uma parte do bolo, espetava nele algumas velinhas. O "Parabéns a você" começou a ser cantado, seguido pelo tradicional "É pique!", e depois pelo irritante "Com quem será."




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

A MENINA E O LEÃO


Era uma vez uma menina que adotou um leão perdido que ela achou na floresta, junto à sua fazenda, enquanto ela mesma também estava perdida. Ela se apaixonou pela beleza dos seus olhos dourados, e a maciez aveludada do seu pelo, que se deitava ao peso dos seus dedos vagarosos.

Os dois voltaram juntos para a casa da menina, e naquela noite, eles conversaram até adormecer, se aquecendo junto à lareira, enquanto uma noite fria e branca se desenhava lá fora, nas molduras das vidraças. 

Na manhã seguinte, ao preparar o café da manhã, ela percebeu que o leão não se agradava das coisas que ela comia; ele queria carne. Mas por algum motivo, ele se fez de cansado demais para ir à caça do seu próprio alimento, e então a menina, com pena do leão, resolveu fazer aquilo por ele. Assim estabeleceu-se um acordo silencioso entre os dois: ela caçava para o leão e ele protegia a casa enquanto ela estivesse fora, caçando ou trabalhando.

Às vezes a menina chegava em casa e não encontrava o seu leão; ele desaparecia por horas e horas, só voltando à noite, faminto e cansado. Um dia ela resolveu segui-lo para ver para onde ele ia, e surpresa, descobriu que o leão tinha uma família - pai, mãe e irmãozinhos. Ele sempre levava um pedaço da sua carne - a que a menina caçava - para alimentar sua família. Ela teve pena, e convidou a todos para viver com ela na fazenda.

Logo, ela percebeu que teria que trabalhar muito mais a fim de sustentar a todos eles, que nada faziam, a não ser tomar conta da fazenda enquanto ela estava fora. E isso eles faziam muito bem, pois ninguém mais se aproximava do local! O carteiro, o leiteiro, o padeiro e os amigos da menina desapareceram de vista ao serem recebidos por leões ferozes ao tentar visitá-la. Logo, a menina mal mantinha contato com sua própria família. E a família do leão era absorvente e muito exigente.

Quando estavam todos em casa, a menina percebia que eles a deixavam de fora das conversas e atividades. Quando ela os interrompia, tentando fazer parte do grupo, era olhada com desdém e tratada com complacência e indiferença. Às vezes, eles deixavam bem claro que ela jamais seria uma deles, pois não tinha o mesmo pedigree. A mamãe leoa era muito ciumenta, e fazia de tudo para humilhar a menina. Os leõezinhos, muito dependentes e frágeis, estavam sempre pedindo coisas ao leão, recusando-se a aprender a fazer as coisas sozinhos, e também eram demasiadamente ciumentos. Papai leão, um patriarca feroz, defendia a sua clã de qualquer admoestação da menina, dizendo que ela deveria sentir-se honrada por ter permissão de pelo menos permanecer perto deles.

Mas a menina amava o leão, e fazia tudo por ele, que só era realmente bom com ela quando precisava de alguma coisa. 

Um dia, a menina adoeceu, e não pôde sair para caçar a comida dos leões. Eles até cuidaram dela no início, mas logo se cansaram. Após três dias de cama, eles a devoraram, repartindo suas carnes magras entre eles. Depois, voltaram para a floresta a procura de outra menina que lhes desse guarida.




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...