quarta-feira, 31 de julho de 2019

INOCÊNCIA - CAPÍTULO XXIX, PARTE II







VIII – Encaixes

E então, para minha surpresa, algo inusitado aconteceu na manhã seguinte, logo depois que Gustavo foi embora.

 Eu fui levar o café da manhã para minha avó como sempre fazia. Bati à porta levemente antes de entrar, e fiquei surpresa ao encontrar o quarto às escuras e minha avó ainda entre as cobertas. Ela sempre estava sentada na cama me aguardando, e as cortinas, abertas. 

Parei à porta, respirando fundo, pois fiquei apreensiva. Coloquei a bandeja com o café da manhã sobre a cômoda e abri as cortinas, pensando que se ela estivesse morta, eu estaria perdida. Escutei um gemido vindo da cama, e quando me aproximei, minha avó me encarava com os olhos arregalados e a boca torta. 

Era óbvio que ela tinha sofrido um derrame durante a noite. Olhando para ela, não senti nenhuma piedade ou afeição por aquela mulher que me tratara sempre com tanta frieza e crueldade desde que eu chegara até ali, há quatro meses. Nós nos encaramos e senti que ela aguardava de mim uma atitude, e então, gritei com todas as minhas forças, e Jandira entrou correndo:

-O que aconteceu?

Apontei para a cama, fingindo choque, e Jandira levou as mãos à boca antes de agarrar o telefone e chamar o médico, que chegou quase quarenta minutos mais tarde. 

Ele entrou no quarto, examinou minha vó, que não se movia ou falava, e disse:

-Ela teve um acidente vascular cerebral. Ainda não posso dizer o quanto a afetou, é preciso que Dona Helena seja hospitalizada imediatamente para fazer exames. 

Eu e Jandira nos entreolhamos, e acho que pude ler a insinuação de um sorriso no rosto dela, e não entendi bem o motivo, já que se minha avó morresse, nós duas sofreríamos as consequências de não recebermos um tostão sequer de sua herança, que como ela mesma dissera, seria destinada a obras de caridade. 

Uma ambulância chamada pelo médico levou minha avó para o hospital, e eu a acompanhei. Jandira me renderia durante a noite, quando eu voltaria à fazenda. 
Eu estava na sala de espera do hospital quando Gustavo chegou, sentando-se ao meu lado e segurando minhas mãos:

-Como ela está?
-Ainda fazendo exames.

Ele concordou com a cabeça. Olhando-me nos olhos, perguntou:

-Como você está?

Encolhi os ombros: 

-Estou bem... não vou mentir para você, Gustavo. Minha avó não gosta de mim, e eu não gosto dela. Não lhe desejo o pior, porém, mas a sua morte não me faria triste. 

-Entendo você.

Ele parecia que tinha um rio inteiro dentro dele, pronto a transbordar quando me olhava. Tinha a impressão de que havia alguma coisa que ele gostaria muito de me dizer. Finalmente, perguntei, após alguns minutos:

-O que você tem? Parece preocupado. E não é sobre a minha avó.

Ele concordou com a cabeça, dizendo:

-Sim, é verdade. Queria te dizer uma coisa, ou melhor, duas coisas. Mas talvez este não seja o melhor momento. 

Levantei-me e andei até a janela, e então virei-me para ele, que estava de pé atrás de mim. Gustavo era um homem muito bonito, e não pude deixar de me lembrar da noite anterior, quando eu estivera em seus braços e tinha sido dele. Um arrepio me percorreu.

- Cristina... eu... desmanchei tudo com minha noiva hoje pela manhã. 

Meu coração quase saiu pela boca e rolou pela sala até o outro canto. Levei a mão ao peito, tentando respirar melhor, pois não sabia o que aquilo representaria no meu destino. Se eu o amava? Bem, acho que sim, mas o conselho de minha avó martelava em minha cabeça: “Controle a sua paixão! Use a sua razão!” 

Olhei para ele; seu olhar ansioso e úmido perscrutava meu rosto, em busca de uma reação. 

-Cristina... eu sei que é demais para você, talvez eu devesse ter esperado para contar-lhe. Mas de qualquer forma, não importa qual seja a sua decisão, eu teria desmanchado o noivado de qualquer forma, pois não amava mais a minha noiva. Não seria justo levar isso adiante, ela merece alguém que a ame de verdade. Assim, não se sinta culpada por ela. Eu... eu amo você, desde o primeiro momento em que a vi. Pela sua beleza, pela sua força, sua sensualidade, sua verdade, sua simplicidade. Quero que você se case comigo.

Aquelas palavras me encheram de uma alegria verdadeira que há muito eu não sentia. Nunca ninguém tinha me dito que me amava com tanta verdade! Nem mesmo meus pais, nem mesmo Marcelo. 

Eu cedi aos meus impulsos e o abracei, e nós nos beijamos em seguida. Senti que eu o queria, eu o queria muito. Deixei a paixão dominar a razão. Eu disse “Sim” ao pedido de casamento várias vezes, e nós nos beijamos sem parar. 

Olhei-o:

-Mas você me disse que tinha duas coisas para me dizer. Qual é a segunda?

-Bem... sua avó mentiu para você. Ela fez um testamento – eu mesmo o redigi. Só não contei antes porque ela me proibiu de fazê-lo. Metade da sua fortuna será herdada por seu pai, e a outra metade, por você e Jandira. Ela reconheceu que seu avô é o pai de Jandira.

Pensei com frieza; então eu teria apenas vinte e cinco por cento de tudo o que eu almejava! Mas... quanto aquilo representava? Eu não sabia. 



Mais tarde, naquela noite, ao deixar o hospital, Gustavo visitou-me na fazenda e me mostrou a enorme fortuna que vinte e cinco por cento dos bens de minha avó representavam. 





(CONTINUA...)










domingo, 21 de julho de 2019

INOCÊNCIA - Capítulo XXVIII - Parte II





VII – A Grande Cartada

Era uma noite na qual Dr. Gustavo dormiria na fazenda. Minha avó teria que ir ao fórum na manhã seguinte, e como precisaria dos serviços dele, ele passaria a noite por lá a fim de leva-la à cidade junto com ele. Eu me perguntava o porquê de minha avó estar indo ao fórum; afinal, ela nunca saíra de casa naqueles quase quatro meses desde que eu chegara!

Naquela noite, eu estava disposta a jogar todas as minhas moedas de uma só vez: e se ela fosse lavar um testamento? E se eu estivesse sendo excluída dele?

A casa estava às escuras e eu estava em meu quarto mergulhada em meus pensamentos  quando escutei passos no corredor. Eu sabia que era Gustavo, pois minha avó nunca andava pela casa durante a noite, e Jandira dormia nas acomodações dos empregados – uma casa separada da casa principal. 

Eu tinha deixado a porta do meu quarto entreaberta de propósito. Usava uma camisola branca transparente, que eu tinha ganho de vovó. Era de segunda mão, mas estava em perfeito estado. Minha pele estava perfumada com uma colônia cara que surrupiara da penteadeira de minha avó, e eu tinha lavado e escovado meus cabelos com cuidado e esmero. Estava calor, e a janela aberta deixava entrar a luz estonteante e clara da lua cheia, que eu sabia estar iluminando cada curva do meu corpo e tudo o que a transparência da camisola revelava. Eu fingia dormir, jogada na cama displicentemente, as cobertas cobrindo apenas meus pés. 

Senti quando ele entrou e se aproximou de mim. Eu tinha escolhido aquela posição cuidadosamente, de modo que meus seios ficavam quase à mostra sob o tecido transparente da camisola, e a saia erguida até a coxa deixava que ele imaginasse o que estava sob o biquini mínimo que escondia seu sonho de consumo.  

Senti a cama ceder quando ele se sentou na beirada, e logo, a mão dele era passada sobre minha perna, levemente, subindo. Entreabri os olhos, e deixei que ele a colocasse onde queria. Ele se levantou e foi até a porta, trancando-a. Quando retornou, eu estava sentada na cama. Tentei fazer uma cara assustada, abraçando meu próprio corpo, fingindo vergonha. Ele disse:

-Não faça assim, Cristina... o que houve?

Choraminguei:

-Eu... não podemos, Gustavo... Dr. Gustavo! Você está noivo, e eu...

Ele me interrompeu, segurando meus pulsos e me fazendo abrir os braços. 

-Você é linda! É a mulher mais bonita que eu já encontrei. Quero você, e quero me casar com você!

-Não!!! Você é como o meu ex-patrão! Está só tentando se aproveitar de mim! Ele... ele me forçou! Eu... eu não queria! Ele me obrigou!

Ele pareceu chocado ao ouvir aquilo. 

-Cristina, shsh... tudo bem... se não quiser, não vou obrigar você a nada. 

Eu queimava por dentro. Todos os locais que ele tocara queimavam e latejavam. Comecei a chorar baixinho. Disse:

-Eu me apaixonei pelo senhor. Estou perdida! 

-Ele me abraçou, sentando-se ao meu lado na cama, recostando-se no travesseiro. 

-Eu também estou totalmente louco por você. 

Eu pude vislumbrar, através da claridade da luz do luar, que ele falava a verdade. Aquela visão me enlouqueceu. Mas eu não podia perder aquele jogo. Precisava me controlar, fingir inocência. Ele ergueu o meu rosto, beijando-o. Depois, me deu um longo e apaixonado beijo na boca. Eu sentia o coração dele bater contra o meu. Ele parou de tentar me seduzir, e percebi, através daquele gesto, que eu o tinha fisgado. Porém, meu desejo foi muito mais forte, e dando uma reviravolta, sentei-me de frente para ele, em seu colo, passando as pernas em volta dele. 

-Eu amo o senhor! Quero ser sua! 

Dali em diante, tudo aconteceu muito rápido e intensamente. Eu precisava fingir que não tinha experiência. Deixei que ele conduzisse tudo, mas na terceira vez, eu tomei as rédeas e fiz tudo o que eu queria. Ele murmurou: “Você aprende bem rápido!” 

Depois de tudo, ficamos ainda abraçados, até que o primeiro galo cantou, e ele achou melhor retornar ao seu quarto. Mas antes, me disse:

-Vou falar com sua avó hoje mesmo. Vamos nos casar.

Pensei naquela possibilidade; se me casasse com ele, deixaria de ser escrava de minha avó para tornar-me escrava de um homem. Eu queria a minha liberdade. Queria estudar, aprender, viajar pelo mundo e depois abrir meu salão de beleza. Não tinha vocação para ser esposa e mãe. Implorei a ele:

-Não, ainda não! Não faça isso! Ela é capaz de dispensar os seus serviços e proibir a sua entrada aqui. E depois... me colocaria para fora, eu estaria arrasada, minha reputação depois disso estaria na lama!

-Mas eu vou me casar com você.

-Não quero que você tome essa decisão no calor deste momento que vivemos. Foi maravilhoso, mas quero que esfrie a cabeça primeiro. Pense bem se é isso mesmo o que quer. 

E assim foi feito. Dias depois, ele me procurou. Era domingo, e dispensada dos meus serviços, eu estava no campo, longe da casa da fazenda, dando uma caminhada; e ele chegou, me abraçando por trás:

- Já pensei em tudo. Pensei muito, Cristina. Desmanchei meu noivado.

Meu coração deu um pulo, mas lembrei-me do conselho de minha vó para agir sempre com a cabeça, não com o coração. Nós nos sentamos à sombra de um velho carvalho, e segurando a mão dele, eu disse:

-Você sabia que minha avó não tem herdeiros? Sabia que ela deserdou meu pai por ele ter se casado com minha mãe? 

Ele concordou com a cabeça. Continuei:

-Ela ontem me disse que não tem a menor intenção de deixar nada para mim. Deixará sua fortuna para uma instituição de caridade. Disse que eu não mereço um centavo... você sabia que Jandira é filha de meu falecido avô?

Ele arregalou os olhos:

-Não, eu nunca soube disso... mas... agora que você falou... realmente, ela se parece com a foto dele na parede da sala. Se parece muito!

-Bem, ela foi tratada como empregada a vida inteira. Meu avô nunca reconheceu  a paternidade. E minha avó a puniu, fazendo-a trabalhar para ela a vida toda como se fosse apenas uma empregadinha. Jandira nunca estudou, mal sabe ler. Cresceu dentro daquela cozinha. Assim como eu, na casa de onde eu vim, e agora também. 

Enxuguei uma lágrima furtiva que caíra à força.  

-Mas a partir do dia em que for a minha esposa, você será a rainha da nossa casa, Cristina. E Jandira... ela poderá ir trabalhar para nós.



(Continua...)






terça-feira, 16 de julho de 2019

INOCÊNCIA - Capítulo XXVII - Parte II - O Tempo Passava...





VI– O Tempo passava...

Eu precisava ser forte e aguentar os humores de minha avó. Um dia, enquanto eu servia-lhe o chá da tarde na sala de estar, notei que ela me olhava de cima abaixo, de forma crítica. Ergui-me (estava ajoelhada no chão junto à bandeja) e me mantive o mais ereta possível, as mãos cruzadas na frente da saia. Ela disse:

-Você é uma linda mulher, Cristina. Uma linda mulher... e mulheres como você têm um grande poder. Podem usar de sua beleza de forma perigosa.

Senti meu rosto corar, mas olhei-a nos olhos:

-O que a senhora quer dizer, vovó? (fiz com que o “vovó) soasse bastante irônico):

-Quero dizer que já vi este olhar antes, em outras mulheres perigosas que conheci.

-Como minha mãe?

-Ela demorou um pouco a responder, tomando um gole de chá e fazendo um gesto de descaso com a mão:

-Sua mãe? Não... Flora não é assim. É a pessoa mais sincera que já conheci. 

- Talvez por isso a senhora não tenha gostado dela.
Ela me encarou, e por um momento, achei que jogaria sua fúria sobre mim; mas ela respirou profundamente, e tomando outro gole de chá, disse com a voz controlada:

-Não... eu não queria que ela se casasse com meu filho porque eles eram de mundos diferentes. A sociedade não perdoaria... naqueles tempos... as coisas eram bem piores do que hoje. E eu sabia que seu avô jamais aceitaria a situação, e ele podia ser bem incisivo quando queria... e foi! 

Notei que havia tristeza e sinceridade nas palavras dela. Pela primeira vez, tirara a sua máscara de mulher amarga diante de mim. Ela continuou:

-As pessoas se apaixonam e trazem grande sofrimento a todos. A paixão é a pior coisa que pode acontecer a alguém, pois nos deixa cegos! Melhor é fazer uso da razão, sempre. 

Ela me olhou bem dentro dos olhos:

-Se algum dia eu der a você um bom conselho, será este: controle a sua paixão! Use a sua razão. 

Depois daquilo, ela se levantou e foi fazer a sua cesta. Fiquei pensando no que ela havia me dito. Nunca mais tomei nenhuma atitude na minha vida movida pela paixão. Tudo o que fiz desde aquele dia, foi cuidadosamente calculado com frieza, para meu próprio benefício. E assim cheguei onde cheguei. 

Dias mais tarde, eu estava na cozinha, e Jandira me observava enquanto eu terminava de guardar a louça que ela tinha lavado. Notei seu olhar inquisidor, mas esperei que ela falasse:

-Desistiu do seu plano de ficar rica, Cristina?

-Não. E também não me esqueci de que você concordou em participar dele.

Ela encolheu os ombros:

-Não acredito que vá dar certo, mas eu também tenho meus motivos para querer parte desta herança. Afinal, sou filha de seu falecido avô. Aliás, pensando melhor, nós duas somos parentes.

-Já dizia a minha mãe: “Parente não se escolhe, se engole!” 

Ela riu amargamente, e eu me arrependi do que dissera. Tive pena de Jandira. Olhei para ela, e vi sua pele precocemente envelhecida e suas mãos calosas pelo trabalho duro da fazenda. Eu definitivamente não pretendia passar minha vida daquela forma. Não mesmo!

-Conte-me mais sobre Dr. Gustavo. Você conhece já viu noiva dele, afinal?

-Pessoalmente, não; mas recentemente, na semana passada, eu vi os dois juntos na cidade, quando fui fazer umas compras para D. Helena. 

-E ela é bonita mesmo?

Ela encheu o peito, dizendo devagar:

-Sim. Muito bonita! É uma moça fina, educada e muito bem vestida também. Simpática. Formam um belo casal.

Tentei não me irritar com ela. Continuei:

-Tenho certeza que ela é bonita. Mas eu sou mais bonita do que ela, e muito mais esperta. Que ela desfrute dos seus últimos dias de noivado. Gustavo vai ser meu. 

Ela balançou a cabeça, concordando:

-Pobre homem. Foi pego na teia de uma das tarântulas mais perigosas que conheci.

-Tarântulas não vivem em teias. Só as Viúvas Negras.

Os dias foram passando, e mergulhei numa certa melancolia. Nada acontecia de interessante naquele lugar. Eu trabalhava desde o raiar do sol até o começo da noite. Dedicava cada minuto do meu tempo a limpar, esfregar, capinar, plantar, regar, varrer, cozinhar, remendar, encerar, lustrar, polir... a fazenda nunca estivera em tão boas condições, segundo Jandira e até segundo a minha própria avó. A fim de matar o tempo, eu mergulhava no trabalho doméstico de corpo e alma. Tentava não pensar em meus pais. Tentava não pensar na minha cidade, naquela casa e nas pessoas que deixara para trás. Marcelo? Ele se tornara uma miragem. Às vezes eu me perguntava como eu podia ter passado tanto tempo apaixonada por alguém tão fraco e sem tutano. Ele nunca me procurou, desde que eu fora embora. Simplesmente tirou-me da vida dele – e eu sabia que ele sabia onde eu estava, pois certa vez comentara com ele que um dia iria conhecer minha avó. Se ele tivesse um pouquinho que fosse de bom senso, teria pensado em me procurar ali.

Meu jogo de gato e rato com Gustavo estava ficando cada vez mais interessante. Eu dava corda, e depois puxava. E ela já estava amarrada em volta do pescoço dele, que não conseguia tirar os olhos de mim ou disfarçar sua paixão nem mesmo diante de minha avó. Ela percebia tudo, e nos olhava com desaprovação. Às vezes, ralhava comigo e me mandava de volta para a cozinha, me tratando como empregada doméstica apenas para mostrar a ele quem eu realmente era, qual o meu status dentro daquela casa. Mas eu sabia mais. E queria mais. E teria tudo o que eu queria dentro em breve. 

(continua...)







segunda-feira, 1 de julho de 2019

INOCÊNCIA - Capítulo XXVI - Parte II - A Trama




V- A Trama

Naquela semana, minha vó tratou-me da pior forma possível. Mandou-me alimentar os porcos, lavar o chão da cozinha, faxinar toda a casa da fazenda, e até ajudar na plantação de batatas. Eu fiz tudo o que ela mandou. Fiquei exausta, e minhas mãos se encheram de calos, pois não estava acostumada a trabalhar nos campos. Os homens da fazenda faziam de tudo para amenizar meu sofrimento, e eu sabia que meu poder de sedução sobre eles era grande, mas as mulheres ficavam de olho em mim, e sempre que podiam, aumentavam minha carga de trabalho. Senti no corpo e na alma os seus olhares e palavras cheios de inveja e de raiva. Não rebati, pois a única coisa que me importava, era o meu plano.

Finalmente, duas semanas após todo aquele trabalho, Dr. Gustavo voltou à fazenda de repente, sem avisar. Ele pegou a todos nós de surpresa, e eu estava usando um macacão de brim surrado, pois estivera trabalhando na roça. Meus cabelos estavam suados, presos em um rabo de cavalo empoeirado, e minhas mãos, cheias de calos. Ao olhar para mim, vi pena nos olhos dele. Também percebi que quando minha avó finalmente foi à sala recebe-lo, ele a olhou com desprezo. Ela fez sinal para que ele se sentasse. Fiquei escutando a conversa atrás da porta. 

-Você veio sem avisar, algo de grave aconteceu?

-Não... na verdade, estava de passagem, visitando outro cliente. Achei que poderia economizar a visita da próxima quinta-feira. Desculpe-me vir sem avisar, se a senhora achar inconveniente, posso voltar outro dia...

-Não, mas não faça disso um hábito. Não gosto de surpresas. 
-Bem... passei apenas para trazer estes documentos para a senhora assinar.

Eu ouvi o ruído de papéis sendo remexidos, e de repente, eu soube: meu plano agora estava realmente definido! Bastaria que eu convencesse Dr. Gustavo a fazer minha avó assinar algum documento que me beneficiasse. Talvez eu pudesse usar a minha condição naquela casa para comovê-lo e trazê-lo para o meu lado, e é claro, com uma boa dose de sedução, ele cairia como uma mosca no meu plano. Me atrevi a entrar na sala, a fim de oferecer-lhes um pouco de suco de frutas. Minha avó olhou-me com desgosto, pois eu estava ainda usando o macacão com o qual estivera trabalhando durante o dia. Ela negou minha oferta com a cabeça, fazendo sinal com a mão para me dispensar como se eu fosse uma mosca que tivesse pousado no ombro dela. Mas eu consegui ver o que eu queria: ela assinava os documentos sem ler. Parecia confiar em Dr. Gustavo.

Ensaiei um olhar triste e lancei-o na direção dele, que me comia com os olhos enquanto vovó assinava os documentos, e deixei a sala de cabeça baixa. Fiquei escutando atrás da porta e ouvi o final da conversa:

-Prontinho, tudo em ordem... obrigada, Dona Helena. 

Minha avó resmungou:

-Antes de ir, Dr. Gustavo... gostaria de fazer-lhe uma pergunta.

-Pois não? 

-O senhor está noivo, não está? 

Ele demorou só um pouquinho para responder:

-Sim senhora. 

-De uma moça de excelente família, pelo que fiquei sabendo, e muito bonita também. Rica e prendada.

Ele demorou um pouco mais para responder:

-S-sim...

A voz de minha avó ergueu-se um pouco: 

- Se eu fosse o senhor, prestaria muita atenção ao que vou lhe dizer: conserve seu noivado com esta moça de bem. 

Fez-se silêncio. Eu soube imediatamente aonde minha avó queria chegar, e tive a certeza quando ela continuou:

-Notei seus olhares famintos para minha neta Cristina. Ela não é moça para o senhor. 

-Não sei o que a senhora quer dizer, Dona Helena. Eu...

-Não me interrompa, eu ainda não terminei! Cristina é minha neta sim, mas é filha de uma empregada doméstica. Uma mulher que levou meu filho para longe de mim, uma mulher sem classe e sem ter onde cair morta. Uma empregadinha da fazenda pela qual meu filho se apaixonou.

-Eu... eu ouvi falar dessa história...

-É, eu sei, a cidade inteira sabe. Não vá desgraçar sua vida também por causa de uma moça como Cristina.

Gustavo ergueu-se – escutei o couro do sofá ranger sob ele. Ele falou com a voz firme:

-Bem, Dona Helena, se me permite... já que a senhora teceu comentários livremente sobre a minha vida íntima e me contou um pouco da história da sua família... acho que a senhora deveria tratar sua neta com mais consideração e carinho, ao invés de coloca-la para fazer trabalhos forçados. Com certeza, Cristina é uma bela moça, e poderia ter um belo futuro se a senhora a ajudasse a...

Minha avó gritou:

-Eu não admito que um pirralho como o senhor venha me dar conselhos!!! Ora... onde já se viu tanto atrevimento? Seu pai ficaria muito aborrecido se estivesse ouvindo uma coisa dessas! Foi meu advogado por muitos anos, e nunca faltou-me com o respeito!

-Pois não, Dona Helena. Da mesma forma, gostaria que nossa relação continuasse a ser estritamente profissional. Se a senhora acha que fui desrespeitoso, peço desculpas; mas também não gostaria que a senhora se sentisse na liberdade de opinar sobre a minha vida íntima. Ou sobre a vida íntima de minha noiva. 

Achei que após aquele mal-entendido entre ambos, eu teria realmente a minha chance de dar início ao meu plano. Assim, fiquei lá fora, sentada nas escadas da varanda esperando Gustavo sair. O sol se punha em lindas cores. Eu aproveitei toda a ocasião – a beleza daquela tarde, meu estado lastimável após um dia de trabalho na fazenda, a discussão que ele acabara de ter com D. Helena. 

Senti a presença dele de pé atrás de mim, e fingi que secava uma lágrima. Quando ele falou comigo, simulei um leve susto:

-Cristina? Você está bem?

-Oh... sim, eu estou bem. Como vai o senhor?

-Senhor? Por que está me chamando assim?

Ergui-me, limpando a mão na barra da saia e deixando um bom pedaço da minha coxa aparecer de relance:

-Minha avó acha melhor desse jeito. O senhor já vai?

-Pare com isso, Cristina. Não me chame de senhor. Prometo que será um segredo só nosso. 

Os olhos dele faiscavam. Eu já tinha ganho aquela briga! Confesso que ele também me atraía muito, mas eu não podia deixar que as emoções me dominassem, ou poderia colocar tudo a perder. Tentaria manter a minha própria paixão sob controle até que eu pudesse usá-la na hora certa, a meu favor. E quando isso acontecesse, seria simplesmente como o rebentar de uma represa de águas selvagens. Dr. Gustavo aproximou-se, erguendo o braço na minha direção e pegando a minha mão, que estava suja de barro.

-Suas mãos não são feitas para esse tipo de trabalho, Cristina. Você é uma verdadeira dama!

Puxei a mão:

-Não, não sou... sei muito bem qual é o meu lugar nesta casa, e na vida. Sabe, eu sou filha de um casal de caseiros. Eles são empregados em uma casa de pessoas muito abastadas. E eu... bem, nasci por lá. Sou o que se pode chamar de cria da casa.

Naquele momento, tive uma lembrança realmente dolorosa, de quando Berta usara aquela expressão para referir-se a mim e humilhar-me diante de seu noivo. Mas eu me ergueria, e voltaria para aquela casa como alguém que venceu na vida. Eu teria tudo: meu salão de beleza, a fazenda de minha avó e se quisesse, o amor de Gustavo. Continuei o meu discurso:

-E o senhor está noivo de outra moça, e tenho certeza de que ela é realmente... bonita, educada, e... rica!

Ele me interrompeu:

-Ela é isso tudo sim, Cristina. E uma excelente mulher. Mas desde que vi você pela primeira vez, eu me pergunto se devo manter meu noivado com ela.

Corei de satisfação; estava sendo mais fácil do que eu pensava!

-Mas é claro que deve, Dr. Gustavo!  Eu jamais pensaria em... em roubar o noivo de outra mulher. Por favor, o senhor deve ir agora. Ainda tenho que ajudar a preparar o jantar. Minha avó gosta de jantar pontualmente às sete, e se não estiver tudo pronto até lá, ela... ela...

Ele me segurou pelo braço novamente:

-Ela o que, Cristina? Você está sendo maltratada? 

Tentei desvencilhar-me, mas ele me obrigou a olhá-lo de frente:

-Não! Eu não quis dizer isso... é que vó Helena é muito metódica. 

Vagarosamente, ergui meu olhar e plantei-o no dele. Meu cabelo caía sobre o meu olho esquerdo, e eu estava consciente do meu cheiro de fêmea, pois meu último banho tinha sido pela manhã, e depois eu tinha suado no campo o dia todo. Sabia que meus olhos deveriam estar muito azuis, brilhando em destaque na pele bronzeada do meu rosto. De repente, ele me puxou, e enlaçando-me pela cintura, roubou-me um beijo cheio de paixão e fogo. Senti a língua dele abrindo caminho entre meus lábios, e sua mão forte apertando meu quadril, enquanto descia e subia vagarosamente. Deixei-me beijar por algum tempo, ofegante. A paixão que ele demonstrava era correspondida, e eu não conseguia mais fugir daquilo.

Num esforço para recuperar o domínio da situação, eu o empurrei (lamentando ter de fazer aquilo) e entrei na casa correndo, sem olhar para trás. Encostei-me na parede do corredor para recuperar o fôlego, enquanto escutava os passos dele descendo as escadas da varanda devagar. 

(Continua...)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...