sábado, 30 de novembro de 2013

A ROSA AMARELA








A ROSA AMARELA



Era uma vez uma rosa amarela. Nada de especial, em ser uma rosa amarela, já que há muitas por aí... e existem vários tons de amarelo: claros, escuros, alaranjados... amarelos como o sol, iluminados, ou amarelos pálidos e sem vida. Mas no fundo, todos os amarelos são amarelos.



Mas voltemos à nossa rosa amarela: ela tinha sido plantada por um habilidoso jardineiro em um lindo jardim, onde havia várias outras espécies de rosas e de flores. Cada uma mais linda que a outra, em cores e perfumes tão variados, que ficaria muito difícil elaborar uma lista. Cada espécie ficava em um canteiro diferente, e os canteiros eram muitos, muitos... havia canteiros de margaridas brancas, monsenhores brancos e monsenhores amarelos, papoulas vermelhas, roxas e amrelas, lírios brancos e lírios amarelos, agapantos roxos, miosótis azuis, violetas lilases e violetas cor de rosa, enfim, cada flor com suas iguais. Mas a nossa rosa amarela – a especial, que dá título a esta história – tinha sido plantada pelo jardineiro bem no meio de um canteiro de rosas vermelhas. E eram lindas rosas vermelhas! Suas pétalas pareciam aveludadas.



A rosa amarela, que havia sido plantada mais tarde, nunca tinha se dado conta de que era diferente, e viveu feliz até que seus botões começaram a abrir-se. Imediatamente, as rosas vermelhas passaram a evitá-la; não viam que elas mesmas também tinham lindos botões vermelhos que se abriam ao mesmo sol e ao mesmo vento. Achavam que a rosa amarela era diferente, atrevida (como ousava espalhar sua luz amarela em um jardim onde só havia vermelho?), e assim, as rosas vermelhas passaram a comentar que a rosa amarela era muito esquisita, orgulhosa e estranha.



A rosa amarela bem que percebia que havia alguma coisa errada, pois quando ela florescia, as outras rosas não vinham correndo para dizer o quanto seus botões eram bonitos, como elas faziam entre elas. Mas quando as rosas vermelhas floresciam, a amarela estava sempre lá, dando uma força, elogiando a beleza e o perfume das rosas, e desejando que cada vez mais rosas vermelhas se abrissem. 



Mas quando a rosa amarela preparava um novo botão, imediatamente as vermelhas começavam a dizer o quanto ele parecia pequeno e pálido, ou que havia alguma coisa errada com o perfume. Isto, quando elas sequer diziam alguma coisa. 



Mas um dia, a rosa amarela sentiu vontade de abrir um botão bem bonito, grande, de cores e perfume bem fortes. Quem sabe, assim agradasse as rosas vermelhas? E ela passou bastante tempo tentando fazer exatamente aquilo: agradar as rosas vermelhas. Mas não obteve sucesso: era sempre censurada e deixada de lado pelas suas irmãs rosas. Por mais que fizesse, estava sempre errada, e era sempre inadequada.



Certo dia, a rosa amarela decidiu que ia tentar ser vermelha. Queria ser igual às outras, pois desejava ser aceita no grupo. Começou a observar os outros canteiros, e percebeu que as papoulas vermelhas recebiam um adubo diferente. Quem sabe, se ela se alimentasse dele, não ficasse vermelha também? Assim pensando, esticou suas raízes aos poucos (embora o esforço fosse dolorido e incômodo, pois não era natural) e conseguiu que uma das extremidades alcançasse o canteiro de papoulas vermelhas. Com o tempo, ela percebeu que seus novos botões iam ganhando um novo colorido, que primeiramente, apresentou-se em ranhuras vermelhas entre o amarelo de suas pétalas, e depois, as ranhuras foram ficando cada vez mais espessas até cobrirem seus botões de um vermelho doentio.



Vendo seu esforço para agradá-las, as rosas vermelhas tornaram-se mais condescendentes (mas no fundo, sabiam que a rosa amarela era uma rosa amarela, e não a aceitavam de verdade). E a rosa amarela passou a dar flores vermelhas, mesmo sentindo muita dor, apenas para agradar às outras. E sangue escorria de suas pétalas a cada novo botão. Seu caule, antes uma haste firme e reta que crescia em direção ao sol, envergou-se para o lado do canteiro de papoulas, tornando-se retorcido. Assim, ela diminuiu de tamanho, o que deixou as rosas vermelhas ainda mais satisfeitas.



Um dia, o jardineiro ia passando, quando a rosa amarela o abordou, dizendo:



-Você cometeu um erro! Me fez nascer amarela no meio de um canteiro de rosas vermelhas que jamais me aceitaram como sou! Veja só, olhe para mim! Tenho me sacrificado durante anos tentando ser vermelha como elas, e acabei ficando atrofiada. 



O jardineiro ficou triste, e respondeu:



-Minha filha, plantei-a no meio do canteiro de rosas vermelhas porque eu queria que você se sentisse especial; ao mesmo tempo, eu quis dar a elas um presente. Quis colocar entre elas uma rosa diferente, através da qual elas pudessem aprender coisas novas, e ensinar a você o que elas mesmas já tinham aprendido. Mas vejo que elas não souberam desfrutar da sorte de possuírem uma flor diferente crescendo entre elas, e não ficaram agradecidas. E também percebo que você não é feliz, tentando ser o que não é... elas nada aprenderam, e nem você.



-Tudo o que eu queria, é ter nascido rosa vermelha, para ser igual às outras e sentir-me aceita por elas!



-Bem, agora é tarde para isso... mas veja, minha flor: você teve uma oportunidade única, de tornar-se uma rosa especial entre elas!



-E elas me odeiam por isso! Me desprezam, e não me incluem em suas atividades. Nem mesmo depois que consegui tornar-me vermelha.



O jardineiro deu um profundo suspiro, e olhou o jardim de rosas. Pensou no quanto as rosas vermelhas tinham sido cegas, egoístas e injustas com a rosa amarela. Sentiu que elas, na verdade, eram rosas preconceituosas e cheias de inveja e ressentimentos. Não sabiam desfrutar uma beleza diferente delas mesmas, e nada tinham aprendido ou ensinado através daquela convivência. A rosa amarela, por sua vez, envergonhara-se de sua beleza diferente e especial, e ao invés de crescer em sua plenitude, aceitando a si mesma e valorizando as próprias qualidades, tornara-se retorcida e pequena tentando ser o que não era apenas para agradar as outras rosas. Sendo assim, o jardineiro tomou uma decisão:



-Querida rosa amarela, vejo que vocês ainda não estão prontas para florescer com plenitude nos jardins do céu. Mas seu tempo nesta terra ainda não terminou, e assim, resta-lhe uma alternativa: posso transplantá-la para um novo canteiro.



-Seria bom... 



-Mas todos os outros canteiros estão completos, e então, você teria que aceitar a solidão. Você viverá em um canteiro onde será a única rosa, sozinha para o resto de sua vida. O que você prefere: continuar vivendo neste canteiro, tentando ser rosa vermelha ou aceitando ser rosa amarela, mas na companhia das outras rosas que nunca aprenderam a amá-la e aceitá-la, ou ser replantada em um novo canteiro solitário?



A rosa pensou, e pensou... olhou para suas companheiras, que continuavam a ignorá-la. Ponderou bastante antes de tomar uma decisão: não conseguiria mais tentar ser como não era, pois a dor de tal esforço já a estava sufocando. Se voltasse a crescer e retomasse sua cor, ali onde estava, as outras rosas passariam a novamente perturbá-la e recriminá-la como antes. Muito triste, ela precisou comunicar ao jardineiro a decisão mais difícil de sua vida: ser transplantada para o jardim solitário. 



Quando o grande dia chegou, as rosas vermelhas acharam estranho aquele movimento todo, de pás, carrinhos com adubo e transplantes, e mais uma vez, reclamaram da decisão tomada pela rosa amarela, que passou a ser o assunto de todas as conversas; elas diziam o quanto ela era mal-agradecida e orgulhosa, e que ela se achava melhor que as vermelhas, e que elas estiveram sempre certas: a rosa amarela era mesmo estranha, orgulhosa e anormal, pois preferia a solidão a conviver com rosas tão maravilhosas quanto elas. 



A rosa amarela ouvia tudo aquilo, e entristecia... Do seu jardim solitário, ela observava as atividades das rosas vermelhas – que faziam questão de serem bem ruidosas em suas risadas, a fim de que a rosa amarela as ouvisse e se sentisse triste e humilhada. Mas aos poucos, as rosas vermelhas percebiam que o espaço antes ocupado pela rosa amarela deixava um feio buraco escuro bem no meio do canteiro. E nada jamais cresceria ali, pois era o espaço que deveria estar sendo ocupado pela rosa amarela. Mesmo assim, elas fingiam nada perceber.



Enquanto isso, a rosa amarela, aos poucos, passou a contentar-se em viver só; logo, seu caule tornou-se novamente ereto, forte e alto, e suas flores, amarelas como o sol. Sozinha no meio de um canteiro, ela passou a ser mais feliz, pois podia, finalmente, ser o que havia nascido para ser: uma rosa amarela.





O jardineiro a tudo observava, e lamentava profundamente, pois nada daquilo tinha feito parte dos seus planos. Mesmo assim, compreendia a decisão da rosa amarela. E já preparava, para o futuro, um novo jardim onde todas as rosas voltariam a viver juntas novamente; quem sabe, numa outra vida, elas pudessem evoluir?




terça-feira, 26 de novembro de 2013

EVA - FINAL



Aos 27 anos,  conheci Lorena, quando começamos a trabalhar no mesmo escritório. Algo diferente aconteceu; senti que com ela, não seria como havia sido com as outras que vieram após Eva. Encantei-me por seu sorriso, e apaixonei-me pelo seu jeito simples de ser. Devo dizer que ela tinha 23 anos quando nos conhecemos. Mamãe ficou exultante de felicidade quando a levei em casa e a apresentei como minha namorada, e as duas tornaram-se amigas inseparáveis. Meu pai também a aprovou na hora.

Nosso relacionamento foi ficando cada vez mais forte, e apaixonei-me completamente por ela. Jamais a comparei com Eva, como fazia com as outras garotas; Lorena é única! Ela me ajudou a esquecer Eva completamente, e me fez renascer. Hoje, Lorena é para mim como uma lufada de ar fresco, uma luz e uma razão para viver, e o  desejo de ser cada vez mais feliz. Não consigo imaginar a minha vida sem ela.

Namoramos durante três anos. Casamo-nos quando fiz 30 anos, e ela, 26.

Mas o destino é algo implacável, contra o qual não podemos lutar. Ele nos leva até aonde precisamos ir, e não admite desvios. Nem sempre desejamos seguir seus caminhos, mas se tentamos desviar-nos deles, ele novamente os estende diante de nós; só nos resta seguir por aqueles caminhos impostos pelo destino, e aprender o que ele nos quer ensinar.

Lorena fez questão de passar a lua de mel em Paris.

Relutei o quanto pude; mas ela foi implacável, dizendo que sempre desejara conhecer a Cidade Luz. Quando eu já estava quase convencendo-a a irmos para a Itália, ela veio com a novidade: seus pais nos presenteariam com a passagem e estadia de quinze dias no Ritz, em Paris. Eu nada mais pude dizer. Comecei a aceitar a ideia, e pensei: mesmo que eu encontrasse com Eva, o que seria uma possibilidade bastante remota, o que significaria? Eu não a amava mais. Com certeza, ela seguira sua vida e era feliz. Nada mais havia em comum entre nós, e provavelmente, se nos reencontrássemos, seguiríamos nossos caminhos como se nada houvesse acontecido. Porque o tempo também faz com que os grandes amores tornem-se pó.

Assim, tomamos o voo para Paris. No terceiro dia após nossa chegada, encontrei-me com Eva.

Era assim que teve que ser.

Era  manhã de sábado, ainda  cedo, e eu saíra para dar uma caminhada pelo Louvre, bairro onde fica localizado o Hotel Ritz. Deixara Lorena adormecida. O dia anterior tinha sido intenso, pois queríamos aproveitar cada momento de nossa estadia em Paris. Estava um pouco frio naquela manhã de outono, e eu escolhera um casaco acolchoado e um cachecol.

De repente, reparei em uma senhora e uma menina caminhando de mãos dadas; a menina, aparentando estar entre quatro e cinco anos de idade, era muito bonita - parecia uma daquelas crianças de calendários antigos: olhos azuis vivos, cabelos loiros cacheados, lábios de um rosa forte, cor talvez emprestada pelo clima frio. Encantei-me por ela. Quando ergui os olhos, olhando na direção da senhora que a acompanhava, vi que  também era muito bonita, apesar da idade. Aquele pensamento "apesar da idade" ficou ecoando em minha cabeça. Ela não era muito alta, e levemente rechonchuda. Usava óculos, e tinha cabelos grisalhos curtos em corte channel,  presos por uma fina tiara dourada. Pensei no que Lorena dissera sobre a maioria das mulheres europeias não tingirem os cabelos e aceitarem bem a idade que tinham. De repente, meu coração bateu mais forte.

A realidade caiu sobre mim como uma pesada pedra: a mulher era Eva! Eu não me enganaria nunca, tinha certeza absoluta que era ela.

Parei no meio da calçada, e ela também me reconheceu. Ficamos ambos parados diante  do outro, até que ela sorriu levemente, e disse, como se fosse muito comum que nos encontrássemos ali todos os dias:

-Como vai, Elton?

Respondi-lhe num sussurro:

-Bem. E você?

Ela sorriu, e apresentou-me a menina:

-Esta é Marie, minha netinha.

A menina fez uma pequena reverência com os joelhos, e sorrindo, cumprimentou-me:

-Bon jour, monsieur!

Repeti o cumprimento, sorridente. Olhei novamente para Eva, e percebi que o tempo tivera seus efeitos em seu rosto. Fiz os cálculos, e concluí que ela teria 55 anos. Ainda era uma linda mulher, mas parecia ter envelhecido mais do que seria natural a uma mulher de sua idade. Também estava mais pesada. Ela pareceu perceber meu olhar examinador, e disse:

-O tempo passou para todos nós, Elton. Mas você está muito bem!
-Você também, Eva. Você continua linda, como sempre.

Fui sincero em meu elogio, e ela sorriu.

Lembrei-me de tudo o que acontecera no passado, mas não com  a mesma intensidade ou sofrimento. Pensei que o tempo também nos ajuda a dar às coisas sua verdadeira dimensão, e que do fundo do meu coração, eu a perdoava. Ela me olhava também sem nenhuma dor. Estávamos de pleno acordo. Perguntei-lhe:

-Como estão seu marido, e sua filha?

Uma sombra de tristeza passou pelo seu rosto, mas ela logo sorriu, e dissipou-a:

-Ingrid está bem... mas Jean faleceu, infelizmente... por isso fui embora daquela forma, Elton. Ele estava doente. Precisava de mim. Precisava de alguém que cuidasse dele. Dois anos depois que partimos, ele se foi, e jamais lamentei por estar ao seu lado naquele momento. Não poderia ter feito diferente.

Então era aquele o segredo... fiquei muito triste por ele. Eu nada disse, mas meus olhos demonstraram o quanto eu lamentava profundamente. Compreendi o motivo pelo qual Eva envelhecera mais do que seria natural; o sofrimento nos faz envelhecer rapidamente. De repente, ela sorriu:

-Mas Ingrid está muito bem, e além de Marie, tem um menininho. E eu casei-me novamente.

Aquela informação surpreendeu-me. Achei que seria acertado contar a ela sobre mim.

-Eu também. Estamos... em lua de mel.

Ambos rimos. A menininha olhava-nos, sorrindo também. Um sol fraco brilhava entre as nuvens escuras, e folhas secas forravam a calçada. Olhei-a nos olhos, e vi que a Eva que eu amara ainda estava lá, em algum lugar, tentando esconder-se de mim. Tive certeza, pelo olhar que ela descuidadamente deixou escapar, de que Eva ainda me amava, e que de certa forma, eu sempre a amaria. 

Ela apertou a mão da menininha, que a olhou, e depois olhou-me. Não havia mais nada que pudéssemos dizer um ao outro. Notei que ela estava tentando conter o choro, e também senti vontade de chorar, mas segurei minhas emoções, e sorri. Ela respirou fundo, dizendo:

-Bem, Elton... foi um prazer revê-lo. Precisamos ir agora. Adeus.

E Eva passou rapidamente ao meu lado, e quando eu disse-lhe adeus, ela já ia caminhando atrás de mim. Eu não sei se ela olhou para trás alguma vez, pois eu mesmo me afastei depressa. 

Sentei-me em um café, e fiquei ali, absorto em minhas lembranças, colocando a cabeça no lugar. Estava um pouco melancólico, não pelo que acontecera, mas pelo que eu jamais saberia como teria sido. Mas eu tinha uma nova vida. Eu tinha um novo amor. Meu pai teria dito que a vida escreve certo por linhas tortas, mas jamais contei a ninguém sobre aquele reencontro.

Nunca mais retornei a Paris, e nunca mais soube de Eva.




segunda-feira, 25 de novembro de 2013

EVA - Capítulo VIII




Quando olhei para o lado e não vi mais Eva, corri pelas escadas até chegar ao salão da galeria, onde todos riam e se divertiam. Olhei pelo salão ainda no sopé da escada, procurando por ela. Não a vi, e desci correndo o último lance. Distraído pela batida de carros, não vi quando ela se fora. Percorri o salão; mamãe, ao ver meu semblante angustiado, veio em minha direção, e precisei disfarçar, dizendo que não estava muito bem. Ela disse que no dia seguinte marcaria um médico para mim, pois vinha notando que há algum tempo eu não estava bem. Protestei, mas ela insistiu, encerrando com "Nem adianta discutir, está decidido!"

Senti-me uma criança. Papai veio em meu socorro, e me segurando pelo braço, levou-me para um canto afastado, aproveitando a chance quando um casal aproximou-se e começou a conversar com mamãe.

-E então, filho, vocês conversaram?

-Ela... sumiu! Você a viu passar, pai?

Ele assentiu com a cabeça.

-Despediu-se de nós há alguns minutos. Disse que precisava ir. Eles saíram às pressas.

Levei as mãos ao rosto em desespero, e ele olhou instintivamente na direção de mamãe:

-Filho, disfarce... sua mãe não deve saber, ou você quer estragar a noite dela?

Concordei.

-Mas vocês conseguiram conversar?

-Sim, ela... ela disse que me amava, pai. Daí houve um acidente na rua, eu me distraí por alguns segundos apenas... e ela sumiu. Achei que tudo tinha sido acertado, que ela ficaria comigo. Não entendo por
que ela fugiu!

Meu pai permaneceu calado, com a expressão do rosto muito séria. Levou a mão ao bolso do paletó, e vi que ajeitou um papel em seu interior. Perguntei o que era, e ele disse que não era nada importante, apenas uma nota da venda de um quadro.

Ainda fiquei na galeria por algum tempo, pois desejava que mamãe ficasse feliz e que a noite fosse perfeita para ela. Mas não consegui disfarçar muito a minha miséria, o que fez com que ela mesma sugerisse que eu fosse para casa deitar-me.

Fui caminhando. as ruas estavam quase vazias àquela hora, e as lojas, fechadas. Passei à pé pelo prédio de Eva, e olhei para sua janela. Havia luzes lá dentro. Encostei-me em um muro e fiquei imaginando o que estaria acontecendo. Talvez estivessem todos felizes, fazendo planos para o natal. Logo, os dois iriam para a cama onde tínhamos estado juntos tantas vezes, e fariam amor a noite toda. Aquele pensamento era ridículo, mas uma mente apaixonada imagina mil coisas.

 Lembrei-me de que mamãe os tinha convidado para nossa casa, e desejei ardentemente que eles aceitassem. Eu sofreria, mas pelo menos, poderia tê-la diante dos meus olhos, e quem sabe, conversaríamos melhor? Fiquei parado ali, as mãos nos bolsos, até que todas as luzes do apartamento se apagaram. Eu estava absolutamente arrasado! Uma ansiedade que eu nunca havia sentido me fazia sentir arrepios subindo pela minha coluna, e minhas mãos formigavam. Aquela noite foi uma das piores de minha vida, pois sentia-me impotente até a manhã seguinte. Queria ter ido até o apartamento de Eva e desfeito aquela farsa, dizendo ao seu marido que ela era minha, pois ela havia dito que me amava.

Nos dia seguinte, véspera de natal, telefonei para Eva várias vezes, mas ninguém atendeu. Eu já tinha a desculpa pronta de dizer, caso seu marido ou filha atendessem, que ligava em nome de meus pais, para confirmar a presença deles em nossa festa natalina. 

Na tarde daquele 24 de dezembro, meu pai entrou em meu quarto e estendeu-me um pedaço de papel. Peguei-o, curioso e confuso. Sem nada dizer, ele saiu e fechou a porta trás de si.

Abri, e vi que tratava-se de uma carta de Eva:

"Querido Elton,

Pedi ao seu pai que lhe entregasse esta carta, arriscando que ele a lesse e ficasse sabendo de tudo. Graças a Deus, ele não me fez nenhuma pergunta quando a dei a ele e pedi-lhe que a entregasse a você depois que nós tivéssemos ido embora.  Mas mesmo que ele a tenha lido, nada mais importará, pois já estaremos longe quando você a tiver nas mãos, e nunca mais nos veremos.

Existem circunstâncias em minha vida que me impedem de viver o nosso amor. Acredite, eu disse a verdade quando disse amá-lo, mas é impossível ficarmos juntos.

Quando pensar em mim, lembre-se dos momentos em que estivemos unidos, da beleza daqueles momentos, da verdade que você leu em meus olhos, e eu, nos seus. Nada mais posso dizer. Prometi silêncio, e costumo cumprir minhas promessas. Espero que um dia você possa saber de toda a verdade, e então, me perdoe, querido. É triste saber que, caso esta hora chegue, será tarde demais para nós dois... mas pelo menos, você deixará de odiar-me. Por favor, não me odeie! Guarde em seu coração o melhor sentimento que você puder ter por mim, pois eu guardarei sempre o melhor por você. Me perdoe, Elton, se você puder.

Eu serei sempre, sempre sua, mesmo longe.

Com amor,


Eva."


Lágrimas quentes caíram de meus olhos, queimando meu rosto. A visão turvou-se, e transido de dor, corri escadaria abaixo, chamando por meu pai. Lembro-me de ver o rosto de minha mãe, consternada, e seus lábios que se moviam, mas eu não entendia o que ela dizia. Meu pai segurou-me pelos ombros (acho que eu estava gritando) e quando um copo com um líquido veio na direção do meu rosto, dei-lhe um tapa, e ouvi o vidro espatifando-se contra a parede. Mamãe, de olhos arregalados, perguntava ao meu pai o que tinha acontecido comigo.

Finalmente, caí de joelhos no meio da sala. Meus pais me olhavam, e mamãe chorava copiosamente. Meu pai a abraçava e dizia a ela que conversariam a respeito, e pedia-lhe que se acalmasse. Eu mesmo, aos poucos, fui me esforçando para ficar mais calmo e recuperar  a razão, mais por pena de meus pais do que por mim mesmo. Levantei-me do chão e pedi desculpas a eles, voltando para o meu quarto. Mamãe fez menção de seguir-me, mas papai a deteve, dizendo-lhe que me deixasse um pouco sozinho.

Ouvi a voz de mamãe lá embaixo, totalmente alterada; dizia coisas como "Aquela vadia,"  "Como ela pode?" Eu pensei em descer e defender Eva, dizendo que a culpa fora toda minha, mas achei melhor deixar que mamãe se acalmasse. Parecia furiosa... Alguns minutos depois, meu pai entrou em meu quarto. Perguntei como mamãe estava, e ele disse que dera-lhe um comprimido para dormir, e que ela estaria bem na hora da festa de natal. Sentei-me na cama:

-Por que você não me entregou o bilhete ontem, pai? Eu teria conseguido falar com ela! Quando deixei a galeria, havia luzes no apartamento. Eu poderia ter subido lá, e...

-Por isso mesmo, filho. Achei melhor esperar até que eles tivessem ido embora. Eu e sua mãe já sabíamos da decisão de Eva em voltar para casa. Ela nos pediu que tratássemos da venda do apartamento, mas sua mãe me disse que não quer fazer nenhum favor para ela, agora que... mas não se preocupe, isso vai passar, e eu farei a transação para eles. Mas Elton, o importante é que você fique bem agora. 

-Como, pai? Como eu posso ficar bem? Você não entende?  (eu chorava muito).

Meu pai me abraçou, dizendo que toda dor de amor passava, assim que a gente vivesse um novo amor.

A noite do dia 24 de dezembro foi uma das mais tristes de minha vida. A festa de natal transcorreu como sempre, os amigos e vizinhos mais chegados, o amigo-oculto, a ceia elegante e cuidadosamente preparada. Tentei ficar firme por mamãe, que me olhava a todo instante, e percebi o quanto ela estava sendo forte e fazendo o que achava que tinha que fazer. Após a festa, quando todos os convidados tinham se retirado, ela me abraçou forte, e chorei em seu colo.

O tempo foi passando. A dor de um amor perdido é a mesma para todos, eu acho. Janeiro chegou, e depois, fevereiro. Em abril, papai conseguiu vender o apartamento de Eva. Nunca mais tocamos no nome dela em nossa casa, mas eu pensei nela durante todos aqueles anos que se sucederam, todos os dias, embora cada vez menos intensamente. O tempo conserta as coisas. O tempo ajuda a superar o insuperável.

Os anos passaram, e terminei a faculdade. Consegui meu primeiro emprego. Mamãe organizou novas exposições, firmando-se como artista plástica. Meu pai aposentou-se. Tive algumas garotas, mas Eva estava sempre nos meus pensamentos, e eu não levava nenhum relacionamento à sério. Às vezes, quando eu chegava em casa e era a noite de biriba de mamãe, eu passava pelas mulheres e lembrava-me de Eva, pois fora assim que nos conhecêramos. mamãe morria de medo que eu passasse a interessar-me apenas por mulheres mais velhas, e nunca mais apresentou-me suas amigas. Mas isto não aconteceu. Eu me apaixonara por Eva não por ela ser mais velha que eu, mas porque eu vira nela a mulher dos meus sonhos.

O segredo que ela jamais me contara - o motivo por ter ido embora tão de repente - ainda me atormentava. Meus pais juravam que não sabiam do que se tratava, e que não sabiam aonde eles estavam vivendo ou sequer tiveram notícias deles. Tudo que meu pais tinham era um número de conta corrente, para a qual  eles transferiram o dinheiro da venda do apartamento.


domingo, 24 de novembro de 2013

EVA - Capítulo VII




Eu precisava falar com alguém, e ao tentar escolher entre meus amigos, entendi que nenhum deles saberia me entender. Alguns seriam capazes de rir de mim. Mas meu pai sabia de tudo, e talvez pudesse ajudar-me. Tomei um táxi e fui para casa, na esperança de que ele estivesse lá, e fiquei aliviado ao constatar que eu estava certo.

Quando entrei em casa, tive a impressão de que meu pai esperava por mim, pois encontrei-o parado diante da porta, de braços estendidos. Ao ver minha consternação, ele fez sinal para que eu o abraçasse, e eu obedeci.

-Você está sofrendo sua primeira dor de amor, meu filho... acontece com todos nós. Mas a vida passa... e olha, Eva não é mulher para você.

Ele me conduziu até a mesa de jantar, e puxou uma cadeira para mim e outra para ele. Ficamos conversando baixinho, lado a lado na casa vazia, enquanto o ruído do relógio na parede da sala ecoava pela casa. Eu queria saber o que realmente acontecera no apartamento de Eva, e nem precisei perguntar.

-Elton, Eva é uma mulher... complicada, digamos assim.
-O que aconteceu lá, pai?

Ele coçou a cabeça, me encarando, parecendo querer testar minhas reações:

-Acho melhor esquecermos o assunto.

Eu neguei com a cabeça:

-Pai, não posso simplesmente varrer uma história como a nossa - minha e de Eva - para debaixo de um tapete, como se não tivesse sido nada... foi... é intenso, é bonito, é real!... Preciso saber.

-OK, Elton... seja forte.

Assenti com a cabeça, e ele continuou:

-No carro, Jean e Ingrid disseram-me algumas coisas sobre Eva que eu não sei se são de seu conhecimento. Você sabia que ela esteve internada em um hospital psiquiátrico nos últimos seis meses antes de chegar ao Brasil, e que ela chegou aqui fugida de casa?

Pensei que eu fosse engasgar, tal a força das batidas de meu coração. Meu pai compreendeu que eu não sabia de nada, apesar de eu não ter respondido:

-Pois bem, filho; Eva apaixonou-se por outro homem, bem mais jovem, quando vivia em Paris; mas o tal homem só estava interessado em uma aventura, e no dinheiro dela. Quando a história tornou-se pública, ele a deixou e desapareceu de vista. Ela simplesmente surtou.

Fiquei novamente pensando se Jean conhecera o tal jovem, e perguntei ao meu pai:

-Pai, como Jean ficou sabendo? 

-Eva contou tudo a ele, e pediu o divórcio.

-Você acha que Jean conheceu o tal rapaz?

-Bem, não sei por que isso viria ao caso agora, filho... mas respondendo à sua pergunta, Jean nunca pôs os olhos nele, pois ele fugiu. Desapareceu. Infelizmente, Ingrid o viu algumas vezes, quando seguiu a mãe.

Pelo menos Ingrid não mentira, embora tivesse omitido a parte em que Eva havia passado seis meses internada em um hospital psiquiátrico. Meus sentimentos se misturavam e se entrelaçavam, e eu ia do repúdio à paixão mais forte que alguém poderia sentir. Não sabia o que pensar. Ou o que fazer. E disse ao meu pai. Ele me aconselhou a esquecer Eva.

Tomei um comprimido e fui dormir. Disse à minha mãe que estava com dor de cabeça, e papai confirmou. Acordei apenas meia hora antes da abertura da exposição de mamãe; tomei um banho, vesti-me e dirigi-me para a galeria. A tarde morria em cores maravilhosas, e algumas estrelas já brilhavam.

Da calçada,  vislumbrei a entrada iluminada da galeria, e escutei a música e os risos. Respirei fundo, desejando que Eva não estivesse presente, mas assim que entrei, encontrei-a de braços dados com Jean e Ingrid. Eva estava mais linda do que eu jamais a vira: usava  brincos que faiscavam, e tão longos que chegavam-lhe aos ombros nus. Cortara o cabelo, que estava também mais claro e cacheado, na altura da nuca. Um vestido creme de cetim descia-lhe pelo belo corpo, contornando-lhe os quadris generosos e o abdome perfeito. Calçava um par de sandálias prateadas, cravejadas de pedras brilhantes, e as unhas dos pés estavam pintadas de vermelho vivo. Usava uma maquiagem um pouco mais pesada do que a de costume: sombra cinza-prateada, olhos delineados em negro, mas o mesmo batom rosado de sempre. A primeira coisa que me veio à cabeça quando a vi, foi a vinheta dos filmes da Metro, na qual aparece uma mulher segurando uma tocha, pois o vestido e o corte de cabelo eram idênticos.

Quando me viu, Eva sorriu para mim, e Ingrid e Jean fizeram o mesmo. Aliás, Jean parecia o homem mais feliz do mundo. Ingrid ergueu levemente o copo que segurava, como se me fizesse um discreto brinde. Eu fiquei olhando a cena da família feliz, indignado: como Eva podia agir como se nada tivesse acontecido entre nós? Tive vontade de acabar com a farsa! Mas pensei em mamãe, e permaneci calado.

Cumprimentei-os com um aceno de cabeça e adentrei a galeria, procurando por meus pais. Quando me viram, abriram os braços, sorridentes. Mamãe estava muito bonita em um vestido preto novo, colar de pérolas e batom vermelho-escuro. Abracei-os, tentando parecer jovial, e olhando em volta, elogiei tudo. Também fui cumprimentar alguns conhecidos. Logo, papai veio ter comigo, estendendo-me um copo de uísque:

-Tudo bem, Elton?

Entre os dentes, respondi-lhe:

-Tudo péssimo, pai. Ela está aqui com ele.
-Eu sei. 
-Preciso falar com ela.
-Mas filho...
-Preciso falar com ela, pai. Nem que seja para por um ponto final em tudo.

Ele concordou com a cabeça, me olhando nos olhos.

-Você conseguiria distrair Jean e Ingrid, e dar um jeito de eu encontrar-me com Eva , pai?

Ele pareceu pensar por algum tempo. Do outro lado do salão, mamãe mostrava um de seus quadros, orgulhosa, acompanhada de seu marchand. 

-Ok, Elton; vê aquelas escadas? Elas levam ao terraço, dois andares acima. Não há ninguém lá, pois não está aberto à exposição. Vá até lá e espere, e verei o que posso fazer.

Subi as escadas discretamente, sem ser visto. Abri a porta e um vento fresco aliviou o peso que eu sentia em meu rosto que parecia queimar. Lá embaixo as pessoas passeavam pela calçada; as lojas estavam abertas até mais tarde, devido à aproximação do natal, e a atmosfera era festiva. Um papai noel magro e mal-ajambrado badalava seu sino na esquina, à porta de uma loja, rodeado de crianças. Pensei que as crianças eram as criaturas menos críticas da face da terra: bastava um pouco de magia, mesmo que falsa, e elas transformavam todo o mundo em um lugar realmente mágico. Quis voltar a ser como elas.

A ansiedade crescia enquanto eu esperava por Eva, que eu nem sabia se viria. Mais de quinze minutos havia se passado. Meu uísque terminara, e fiquei segurando o copo vazio, ansiando por mais um. A fim de refrescar-me, coloquei o gelo na boca e deixei-o derreter devagar. 

Após quase trinta minutos, ouvi a porta ranger, e ao virar a cabeça, deparei com Eva, de pé, olhando para mim. Quase perdi o fôlego diante de sua beleza, levemente iluminada pela lâmpada acima da porta. Parecia uma cena de filme. Ela atravessou a escuridão da laje até mim andando devagar, e eu tive vontade de apertá-la em meus braços. Sentia meu corpo tremer, apesar do calor. Um vento mais forte soprou, desmanchando-lhe o cabelo, deixando-a ainda mais bonita. Ela parou diante de mim, e eu tive que fazer um esforço enorme para não chorar. Vi que seus olhos brilhavam devido às lágrimas que ela tentava conter. Tentei ser objetivo, e perguntei-lhe o que mais eu não sabia sobre ela. Eva virou-se de costas para mim, e começou a chorar. Entreguei-lhe um lenço, pondo as mãos em seus ombros, que se encolheram ao meu toque. Comecei a massageá-los devagar. naquele instante, compreendi que o mundo inteiro poderia danar-se, que ela poderia mentir para mim o resto da vida, e não faria a menor diferença, desde que ficasse comigo.

Ela deitou a cabeça em meu peito. Nós nos beijamos. Ela murmurou:

-Tudo o que você sabe é verdade. Estive mesmo em uma clínica psiquiátrica. Tive dois amantes, e o último deles se parecia muito com você, é verdade, foi o que mais me atraiu no início, mas depois, eu vi o quanto vocês dois eram diferentes. Você tem caráter, Elton. Você é bom.

-Você me ama, Eva?

Ela separou-se de mim, olhando-me nos olhos. Não respondeu. Eu não aguentava de ansiedade! Repeti a  pergunta:

-Preciso saber se você me ama, e sua resposta é tudo o que importa para mim. De nada valem seu passado, suas ex-dores, seus ex-amantes, só quero saber o que sente por mim!

Ela baixou a cabeça, mas eu ergui seu rosto em minha direção com as duas mãos, obrigando-a a olhar-me.
Aquele últimos segundos pareceram anos, enquanto nos olhávamos, e com lágrimas descendo pelo rosto, finalmente ela balbuciou:

-Eu... eu amo você, Elton.

Lá embaixo, na avenida, risadas de crianças chegaram até nós, e toda a tensão que eu sentia aliviou-se. De repente, o mundo tornou-se um lugar belo e acolhedor novamente, e tudo fez sentido. Eu a estreitei em meus braços, sorvendo a intensidade daquele momento. A lua minguante sorria no céu. Mas notei que era um sorriso triste, invertido. Achei que aquilo era um mau presságio, e apertei-a mais forte, e escutamos buzinas zangadas soarem na rua, seguidas por um som de batida de carros.  Nós nos debruçamos para ver melhor.

Felizmente, ninguém ficara seriamente ferido, e após alguns minutos, os carros seguiram seu caminho, depois que os motoristas trocarem cartões de visita e um aperto de mãos. Olhei para o lado, e Eva não estava mais comigo.





quinta-feira, 21 de novembro de 2013

EVA - Capítulo VI




Percebi, pelo olhar de Ingrid, que eu ficara visivelmente pasmo; Ela me olhava como se eu fosse um rato de laboratório, e ela, uma cientista que fazia experimentos com as minhas emoções. Pigarreei, e senti meu rosto arder em brasas. Caminhei até a janela, mexi na cortina, fingi que olhava alguma coisa lá fora para recuperar-me. Depois, virando-me para ela, afirmei:

-Eu não sei o que você quer dizer com isso, Ingrid. Nós dois mal nos conhecemos e você me trata desta maneira?

Ela sorriu com todo o sarcasmo de que foi capaz, e com seu forte sotaque francês, adicionou algumas punhaladas:

-Eu posso não conhecer você, mas conheço bem a minha mãe. E vocês se conhecem. Minha mãe deixou Paris após meu pai descobrir que ela estava tendo um caso com um rapaz mais jovem. E ele se parecia muito com você. Apesar de meu pai tê-la perdoado, pois ele perdoaria qualquer coisa de minha mãe, pois a adora, ela decidiu separar-se e vir para o Brasil. Quando meu pai descobriu, e o amante de minha mãe ficou sabendo de tudo, deixou-a. Foi quando ela veio para o Brasil, mas desde então, ela não responde as cartas de meu pai, ou dá qualquer notícia. Há mais de um mês que meu pai apenas pensa nela, em como levá-la de volta para casa. E agora, olhando para você, eu sei o motivo pelo qual ela não deseja voltar.

-Você está dizendo que sua mãe teve um... um caso com alguém que se parecia comigo, e então tira conclusões apressadas sobre alguém que nem conhece? E ainda abre para um estranho a intimidade de seus pais, de sua família? Não posso aceitar que...

Naquele momento, meus pais e Jean entram na sala, e nós disfarçamos. Mamãe anunciou que estava indo para a galeria, e papai, que levará Jean e Ingrid ao apartamento de Eva. Ingrid sorriu para mim mais uma vez com ironia e sarcasmo, enquanto se despediu de mim dando-me um beijo no rosto. Todos saíram, e fiquei só com meus pensamentos na casa vazia.

Comecei a lavar a louça do café da manhã, pensando em tudo o que Ingrid me dissera; seria verdade? Se fosse, Eva estaria comigo apenas porque eu fazia com que ela se lembrasse de seu ex, porque éramos fisicamente parecidos? E... será que Jean o conhecia, e ao olhar para mim, chegara às mesmas conclusões que Ingrid?

Pensei seriamente naquela história toda, e no resto de minha vida; mas nada poderia decidir, antes de saber qual decisão Eva tomaria. Eu ainda estava disposto a ficar com ela, aceitando-a do jeito que a conheci, com seu passado e um lindo futuro pela frente. Enfrentaria um exército por aquela mulher, o primeiro amor de minha vida! A criatura mais bela e completa que eu jamais vira, e que me cativara desde o primeiro momento em que pus meus olhos nela. De nada me importavam o julgamento que fariam de nós, ou a diferença de idade. Para mim, o amor era o que se tinha no momento, e dele, não se podia cobrar nada. E se era amor, valeria a pena. Mas será que Eva pensava da mesma forma que eu?

Transido de angústia, saí para correr um pouco. Minha vontade, era ir até lá e confessar a todos que Eva não iria a lugar algum, pois nós nos amávamos; mas ao ter aquele pensamento, constatei que eu não poderia falar por ela; Eva me amava ou não? Corri durante quase uma hora, e cheguei em casa exausto e suado. Enquanto tomava banho, o telefone tocou, e ainda ensaboado, corri para atender, pensando que pudesse ser Eva. Era Ingrid.

-Eu estou em um telefone público, Elton. Será que você poderia me encontrar agora?

Olhei o piso encharcando-se com a água que descia pelas minhas pernas e pingava de meu cabelo. Respirei fundo, e concordei. 

Trinta minutos depois, eu e Ingrid estávamos sentados em uma lanchonete próxima ao apartamento de Eva.
Eu estava muito curioso para saber o que acontecera no apartamento. Ingrid me estudava cuidadosamente, deixando-me ainda mais desesperado. Parecia sentir prazer através de minha angústia. Após tomar um pouco de seu suco, pigarreou, olhando o relógio de pulso. Perdi a paciência:

-Bem, você me chamou, e eu estou aqui; o que você quer de mim?

Ela apoiou o rosto em uma das mãos, enquanto com a outra, brincava com o canudinho do suco.

-Desculpe-me, Elton. Mas é que você é mesmo muito parecido com o ex...

-Olha, não quero saber desse papo, OK?

Ela pareceu confusa, e concluí que minha fala talvez não tivesse sido clara:

-Não quero saber desta conversa. Nem sei porque você me chamou aqui. Hoje é a exposição de mamãe, e eu deveria estar lá, ajudando-a a arrumar tudo.

Ignorando a minha fala, Ingrid disse:

-Aposto que você está curioso para saber o que está acontecendo lá em cima. No apartamento. Pois bem: meu pai apertou a campainha, mamãe abriu, os dois começaram a chorar. Ele tentou abraçá-la, ela não correspondeu, ela me abraçou, eu chorei... seu pai disse que achava melhor ir embora, e foi. Eu deixei os dois sozinhos após algum tempo, pois percebi que precisavam conversar. E eu desci, e liguei para você.

Olhei para ela, tentando demonstrar indiferença, e encolhi os ombros.

-Não adianta negar, Elton. Assim que pus os olhos em você, eu entendi.

-OK, vamos supor que eu e sua mãe tivéssemos um relacionamento...
-Vocês tem um relacionamento.
-O que você quer de mim, Ingrid?
-Que você a deixe em paz, é claro. Eu acho que meu pai seria bem mais feliz aprendendo a viver sem ela, mas ele não acha. E eu amo meu pai. Quero vê-lo feliz. Você não quer ver seus pais felizes?
-Você diz que ama seu pai; e sua mãe? Você a ama?
-É claro que sim!
-E não quer vê-la feliz?

Ela deu de ombros, tomando um gole de suco.

-É claro que sim. E tenho certeza que ela não será feliz entregando sua vida a um moleque irresponsável como você, que daqui a... talvez... cinco anos, a deixará por uma moça jovem. Você percebeu que minha mãe está envelhecendo, e que lhe restam bem poucos anos de beleza?

Eu fiquei enfurecido por ela ter me chamado de moleque; tínhamos praticamente a mesma idade! Mas tentei me controlar e não ser grosseiro.

-OK, Ingrid. Eu também estou envelhecendo, e você, e todos nós estamos! Olhe em volta! Daqui a cinco anos, todas estas pessoas estarão mais velhas, não apenas sua mãe.

Ela cortou minha frase com sua voz metálica:

-Ela não te ama. Ela só está com você porque lhe lembra alguém que ela amou. 
-E como você pode afirmar?
-Ela falou com você sobre ele? Ela disse que seu nome é Marco?
-Não!
-Ela mentiu para você. Isto não é o suficiente? Se ela te amasse, teria dito a verdade.
-Ela não mentiu! Ela apenas decidiu levar a vida adiante, e nem me interessa o passado de Eva. E eu não vou ficar aqui discutindo com você na ausência dela. 
-Pois saiba que Marco não foi o primeiro amante de mamãe.

Ela disse aquilo, e mais uma vez, ficou desfrutando de minha dor. Então Eva havia tido outros amantes?! Eu não podia acreditar naquilo...

-Meu pai nem sabe do primeiro. Mas eu sei. Eu vi!

O rosto dela assumiu um ar de muita dor, enquanto falava-me de suas lembranças.

-Eu estava indo para casa da escola. Estava quase chegando em casa. Eu tinha doze anos. Vi quando um carro parou, e um casal beijou-se demoradamente. Eu era uma criança, e aquilo despertou-me a curiosidade; parei à distância para ver melhor, meio-escondida atrás de uma árvore. Mal pude acreditar quando eles se separaram, e vi que a mulher era minha mãe! E quase na frente de casa, sem se importar com os vizinhos, ou com quem pudesse ver e contar ao meu pai...

Ela começou a chorar. Estendi-lhe um guardanapo de papel, mas ela o recusou, enxugando as lágrimas com as costas da mão.

-Meu pai estava ausente da cidade, a trabalho. Eu não sabia o que fazer, então corri para longe de casa. Não sabia como encará-la. Eu fugi de casa, andei pelas ruas durante quase dois dias... a polícia esteve à minha procura. Meu pai chorou muito quando me encontraram, e eles me abraçaram. Nunca toquei no assunto com ninguém, a não ser agora, com você. Depois, tudo voltou ao normal. Eu tentei esquecer.

Eu parecia estar vivendo o maior pesadelo de minha vida. Aquela moça na minha frente não estava representando. O que ela dizia era verdade. Eu precisava de alguém para conversar. Eu estava muito mal. Não sabia o que dizer ou o que pensar. De repente, senti ânsias de vômito, e levantei-me da mesa, correndo para o banheiro do shopping, onde deixei meu café da manhã. Lavei o rosto com água fria, e quando voltei à mesa, Ingrid tinha ido embora.




domingo, 17 de novembro de 2013

EVA - Capítulo V





Eu e Eva continuamos nosso relacionamento com muito cuidado durante aquela semana, pois por mais que eu dissesse que não me importava com as opiniões alheias e que estaria disposto a assumi-la completamente (como se um garoto de 21 anos que nem tem emprego pudesse fazê-lo), ela me fez prometer que manteríamos segredo. Depois daquele primeiro almoço, só concordava em encontrar-se comigo dentro de seu apartamento, onde tomávamos um pouco de vinho, comíamos, conversávamos e... bem, isto também, a maior parte do tempo. Eva achava que ainda não era hora de revelarmos nosso relacionamento, pois queria que a exposição de mamãe passasse; não pretendia deixá-la triste ou preocupada em um momento tão importante.

Mamãe estava tão ocupada com os últimos preparativos para sua exposição que nem percebeu que as visitas de Eva em nossa casa tinham rareado. Para ela, enquanto eu ajudasse sua amiga e a levasse a passear pela cidade, estava tudo bem. Papai percebeu minha mudança, e certo dia, indagou-me a respeito, mas eu fugi de uma resposta direta, embora desse a entender que ele estava certo: eu e Eva estávamos tendo um caso. Ele pareceu preocupado, mas também decidido a não enfrentar o assunto; talvez pensasse que não passava de uma aventura, e que não valia a pena causar um conflito desnecessário. Papai detestava conflitos e enfrentamentos, fugindo deles o quanto podia.

 Chegou o dia 22 de dezembro, e a exposição dar-se-ia no dia seguinte. Eu me sentia ansioso para acabar com aquele segredo, pois queria poder andar livremente pelas ruas com Eva, sem precisar encontrá-la às escondidas como se estivéssemos fazendo alguma coisa errada. Queria apresentá-la aos meus amigos, e ver a reação deles. Também pretendia mudar-me para o apartamento dela, onde viveríamos como dois namorados, saindo todas as noites, dormindo abraçados em sua enorme cama king size, tomaríamos banho juntos em sua hidromassagem e descansaríamos em sua varanda, de onde veríamos, todas as tardes, o por do sol. Eu imaginava o quanto minha vida mudaria, e o quanto seríamos felizes juntos. A idade de Eva não fazia a menor diferença para mim. 

Pelo contrário; passei a procurar nas revistas fotografias de mulheres mais velhas, e admirar a beleza e a personalidade que havia nelas. Quando caminhava pelas ruas, eu às vezes sentava-me nos shopping centers e passava a observar as pessoas - principalmente, as mulheres mais velhas - enquanto faziam compras ou conversavam.  Algumas meninas de minha idade olhavam para mim, mas elas não me interessavam em absoluto; em compensação, suas mães passaram a me fascinar! Sempre que eu podia, conversava com uma delas, fosse para fingir que pedia informações, perguntar as horas ou oferecer-me para ajudá-las com seus pacotes e bolsas. Elas eram gentis e desconfiadas, economizando sorrisos, mas quando percebiam que estavam sendo cortejadas, elas assumiam um ar de vaidade e satisfação; era como ver uma flor desabrochar de repente.

Apaixonava-me por suas curvas generosas, pelas rugas que emprestavam-lhes personalidade e dignidade, pelas roupas mais discretas e elegantes e, acima de tudo, pela conversa interessante que tinham, mesmo durante os breves cinco ou seis minutos em que eu falava com elas.

Na manhã do dia 23 de dezembro, despertei, e como sempre, ainda de pijamas, ia tomar o café da manhã. Ao abrir a porta do quarto, ouvi vozes diferentes na casa. Parei, para ouvir melhor, mas não consegui identificar o que eles diziam, mas percebi o sotaque estrangeiro, e meu coração gelou! Eram as vozes de um homem e uma mulher. Voltei ao quarto, vestindo jeans e camiseta, e respirando fundo, fui até as vozes. Quando cheguei à porta da sala de jantar, os rostos de meus pais e dois estranhos, uma moça que era a cópia exata de Eva, apenas anos mais jovem, e um senhor elegante e bem vestido, de cabelos grisalhos, olharam para mim. Percebi que a moça era linda, e ele (tive que admitir) também tinha seu charme.

Meu pai adiantou-se e fez as apresentações, os olhos presos em meu rosto, a fim de captar a minha reação:

-Elton, estes são Jean e Ingrid, marido e filha de Eva.

Os dois se levantaram, e hesitante, caminhei até eles, apertando-lhes as mãos. Meu coração parecia que ia sair pela boca  a qualquer momento. Olhava o homem nos olhos e pensava nas coisas que eu e sua bela esposa vínhamos fazendo nos últimos dias. Pensava em quantas vezes os dois as tinham feito, e naquela linda moça que ambos tinham trazido ao mundo. Olhava a mão dele segurando a xícara de café, e imaginava que aquela mão havia percorrido o corpo de Eva muitas e muitas vezes. 

Mamãe matraqueava alegremente, sem nada perceber, falando da maratona que tinha sido decorar o apartamento de Eva, enquanto papai apenas acompanhava a conversa, fazendo um ou outro comentário de vez em quando ou sorrindo polidamente, mas sem tirar os olhos de mim. Eu permanecia mudo, observando. Ingrid também estava calada, e não tirava os olhos de mim.

Os dois falavam português corretamente, embora a moça tivesse um forte sotaque que apenas conferia-lhe ainda mais charme, embora houvesse nela alguma coisa que eu não gostava muito. Jean era simpático, mas não pude deixar de notar que sua camisa estava um pouco larga para seu corpo extremamente magro, e que havia olheiras escuras sob seus olhos; a barba por fazer dava-lhe um aspecto cansado. Achei que talvez ele tivesse perdido peso recentemente, devido à ausência de Eva, e aquele pensamento encheu-me de apreensão. Eu precisava saber o que eles estavam fazendo ali, embora eu já tivesse quase certeza. Atrevi-me a perguntar:

-Então, senhor Jean... acredito que vocês estão aqui para visitar Eva?

Ingrid sorriu, e havia uma certa ironia inexplicável em seu sorriso. Ele me olhou, e seus olhos muito azuis e muito tristes marejaram quando ele me respondeu:

-Não, meu caro. Na verdade, estamos aqui para levar a nossa Eva para casa.

Eu deixei cair a colher, que esbarrou na beirada da xícara, lascando-a. Mamãe olhou para mim, confusa. Eu não respondi, e fez-se um silêncio constrangedor. Mamãe olhou-me, preocupada:

-Filho... você ficou muito pálido de repente! Está sentindo alguma coisa?

Neguei com a cabeça, incapaz de falar. Papai veio em meu resgate:

-Bem, querida, sabe como é... os meninos dessa idade adoram noitadas, e de manhã elas cobram seu preço. 

Mamãe continuou, alegremente:

-Espero sinceramente que vocês voltem a se entender, Jean. E também que mantenham o apartamento no Brasil, e que nos visitem nas férias. Desejo que tudo fique bem. 

Jean sorriu tristemente, respondendo:

-Senhora Graça, vocês são muito gentis. Mas eu e minha filha nem sequer sabíamos que Eva tinha comprado este apartamento. Ainda não deliberamos o que fazer com ele, mas se for desejo de Eva mantê-lo, é claro que concordarei. Também gostaríamos muito de recebê-los em nossa casa em Paris a qualquer momento, e somos muito gratos por cuidarem bem de nossa Eva.

Pelo jeito que ele falava, entendi que ele não aceitaria de Eva um 'não' como resposta, e que faria de tudo para levá-la de volta para a França. Fuzilei-o com o olhar, e desejei ter o poder de fazê-lo desaparecer daquela sala e das nossas vidas. Deparei com os olhos de Ingrid pregados em mim. Ela me olhava insistentemente, e muito séria. Baixei meus olhos, sentindo culpa e vergonha, e também um imenso medo de perder Eva. De alguma maneira, senti que Ingrid sabia

Mamãe continuou tagarelando por mais algum tempo, falando dos lugares que acharia que eles adorariam conhecer no Brasil, enquanto Ingrid e eu trocávamos olhares confusos e significativos. Finalmente, aquele café da manhã terrível terminou, e mamãe sugeriu que eu levasse os dois até o apartamento de Eva, desculpando-se por causa dos preparativos para sua exposição - à qual, certamente, ambos estavam "definitivamente convidados." Gelei por dentro. Felizmente, mais uma vez papai veio em meu resgate:

-Graça, querida, pode deixar que eu mesmo os levarei lá em meu carro. Com certeza, você precisará da ajuda de Elton por aqui.

Respirei fundo, e agradeci meu pai com um olhar aliviado. 

Minutos depois, enquanto o gentil senhor usava o banheiro, mamãe e papai pediram-me que entretivesse Ingrid ("Por que você não mostra a ela sua coleção de discos, querido?") enquanto eles se aprontavam para o dia.

Sentei-me com ela na sala de estar, sem saber o que dizer, e irritado pela intensidade do seu olhar. Uma guerra silenciosa estabelecera-se entre nós,  e eu nem sabia o motivo. Mas ambos sabíamos que jamais haveria nada de cortês ou amigável entre nós. Eu queria quebrar o silêncio, mas nada parecia poder estabelecer alguma comunicação trivial e educada. De repente, de maneira cínica, e com seu sotaque carregado, ela murmurou:

-Você se parece muito com ele. - não pude deixar de perceber o quanto ela estressou a palavra 'ele' no final da frase. Olhei para ela desafiadoramente, e com voz cortante, indaguei:

-Ele quem?

Ela sorriu levemente, enquanto respondia e desfrutava de minha reação como uma sádica desfrutaria de seu torturado:

-O ex-amante de mamãe. É por isso que ela separou-se de meu pai e veio para o Brasil.

(continua...)



terça-feira, 12 de novembro de 2013

EVA - Capítulo IV




Passei o dia todo no trajeto entre a minha cama e o banheiro do meu quarto. Arrependi-me amargamente por ter bebido tanto, logo eu, que tinha o estômago fraco. Minha mãe tentou dar-me um chá, mas só de sentir-lhe o cheiro, a náusea aumentava ainda mais. Eva passou o dia todo me ignorando, mas polidamente, pediu que minha mãe me estimasse as melhoras por ela.
No dia seguinte, já me sentindo melhor, fui tomar o café da manhã com a família; Eva já tinha saído. Ela estava claramente me evitando. Mas o que tinha acontecido entre nós não podia continuar sendo ignorado! Eu sabia que tinha significado algo para ela também, e não ia deixar aquele momento ser simplesmente enterrado no tempo. Assim, resolvi ir até o apartamento dela.

Toquei a campainha, e vi pela greta da porta quando ela se aproximou e do olho mágico; não abriu. Insisti, e comecei a bater e falar alto no corredor, e finalmente, ela abriu e fez sinal para que eu entrasse. Olhando em volta, vi que os sofás tinham chegado, e o quadro que mamãe dera tinha sido pendurado. Havia também um tapete enrolado no canto, ainda embalado.

Ela fez sinal para que eu me sentasse, e eu o fiz, sem tirar os olhos dela. Eva usava um vestido azul sem mangas muito simples, que ela costumava vestir quando ficava em casa, e como sempre, com sua elegância e escolha certa de acessórios, ela conseguia fazer com que uma peça totalmente sem graça parecesse uma roupa cara de grife quando a usava.

-Elton, acho melhor esclarecermos algumas coisas...

-Eu também. Você tem me evitado.

-Bem, é claro que tenho, afinal, depois de tudo o que aconteceu! Só quero deixar claro que eu sinto muito, e sei que também tive uma parcela de culpa... mas de hoje em diante, tudo será diferente, pois percebi que eu vinha monopolizando você, e sua atenção, em um momento da vida no qual eu me sinto triste, carente e solitária, era como uma carícia em meu ego.

-O que? Então você quer dizer que estava ... me usando?...

Ela se levantou, caminhando até o meio da sala. Seus saltos ecoavam no piso.

-Não, não é isso! Apenas quero dizer que deixei com que as coisas se confundissem. Se eu tivesse mantido uma certa distância emocional, tudo estaria bem. Gosto muito de você, Elton, e por isso, é muito importante para mim que você me entenda... é impossível ficarmos juntos porque...

Levantei-me e fui até ela, segurando suas mãos.

-Eva, eu já sei o que você vai dizer; vai falar da nossa diferença de idade. Vai dizer que as pessoas vão nos apontar na rua, e que minha mãe vai nos odiar... e que todos serão contra... mas eu estou pronto para enfrentar o mundo por você.

Ela sacudiu a cabeça, rindo; aquele gesto me irritou, mas eu me calei, enquanto ela levava a mão à cabeça:

-Não, nada disso... olhe só, Elton! Como você pode deixar que as coisas sigam por este caminho? Você é tão... maravilhoso, e ao mesmo tempo, tão... infantil! Nós mal nos conhecemos! Fazem apenas algumas semanas desde que cheguei, e você acha que está apaixonado por mim... ora, veja!

Aquilo realmente me ofendeu, e cerrei os lábios. Senti que meus olhos lacrimavam.

-Aquele beijo que eu dei em você foi infantil, Eva? Foi coisa de garotinho? E você correspondeu!

-Eu já explique! Eu estava, aliás, eu estou carente demais... confundi as coisas. Não existe e nem pode existir nada entre nós, Elton. Você não passa de um rapazote, e eu sou uma mulher madura.

Ela me olhou friamente. Num impulso, eu andei até ela e sem nada dizer, passei meus braços em volta do seu corpo, beijando-a com paixão. Ela tentou desvencilhar-se de mim, mas eu era mais forte, e continuei beijando-a à força. Ela se movia entre meus braços, até que finalmente soltou-se, dando-me uma bofetada no rosto. Instintivamente, levei minha mão à bochecha que queimava. Ela tapou a boca, em sinal de arrependimento, e veio até mim, mas eu andei para longe dela. Fiquei de pé à janela, de costas para ela, pois não queria que me visse chorar.

Ouvi quando ela suspirou profunda e tristemente, sentando-se novamente no sofá. Olhei para trás; Eva estava com o rosto entre as mãos, os cotovelos apoiados nos joelhos. Aproximei-me, ajoelhando-me em frente a ela.

-Eu amo você. Não precisa tentar entender, eu sei que faz pouco tempo desde que nos conhecemos, Eva, mas o que eu posso fazer? Nunca senti isso ou nada parecido por nenhuma das garotas que conheci. Você é quem eu quero! E se as pessoas falarem, o que me importa? Eu estou apaixonado por você, e aconteceu no primeiro dia em que nos vimos. E acho que será sempre assim, Eva. mesmo que você não me queira.

Ela olhou para mim, e vi a dor em seus olhos.

-Você compreende, Elton, que eu sou vinte e cinco anos mais velha que você, e que quando eu tiver...
-Já fiz estas contas, Eva.
-Mas e seus amigos, você terá vergonha de mim, e eu...
-Se você está falando assim, então é porque também me ama! Você também pensou nessas coisas todas! Por que pensaria, se não me amasse também?

Eva baixou os olhos para as mãos, e depois olhou-me novamente.

-Olhe bem para o meu rosto, Elton! Olhe bem de perto! Minha pele já não tem o vigor e a firmeza de antes. Meu corpo também já não é tão firme e flexível quanto...
-Você é maravilhosa!
-Mas eu tenho rugas, eu estou envelhecendo, e logo isso será óbvio!
-Você é maravilhosa!
-Eu... eu tenho muitos cabelos brancos! Sabe, eu tinjo...
-Você é maravilhosa!

Aos poucos, sentei-me ao lado dela, sem deixar de olhá-la, e beijei-a novamente. O que aconteceu depois, nem é preciso contar... apenas digo que foi a experiência mais maravilhosa que eu já tivera, e confesso, que já tive, até os dias de hoje.

Eva era uma mulher linda, apaixonada, carinhosa e experiente, e parecia sentir uma sede de muitos anos.

Mais tarde, fomos almoçar juntos na cidade. Escolhemos um restaurante afastado do centro, onde achamos que não haveria nenhuma possibilidade que alguma amiga de mamãe, vizinho ou conhecido nos visse. É claro, Eva pagou a conta. Eu me senti constrangido, e disse a ela que logo encontraria um emprego e as coisas mudariam. Se fosse preciso, desistiria da faculdade, e ela protestou veementemente. Também lhe disse que eu falaria com meus pais naquele mesmo dia, e que se eles não concordassem, me mudaria para o seu apartamento.

-Você está indo rápido demais, Elton. As coisas não podem ser assim. Eu não posso simplesmente dizer à Graça que seduzi o filho de 21 anos dela enquanto ela me recebia em sua casa!

Segurei a mão dela. Percebi que quatro mulheres em uma mesa vizinha nos olhavam. Eva percebeu, e corou, escorregando a mão para longe da minha. Vi que ela estava prestes a chorar, então servi-lhe um pouco de água.

-Eva, nós precisamos nos acostumar com este tipo de reação. Precisamos enfrentar tudo se quisermos ficar juntos.

Ela sorriu levemente. Percebi o quanto Eva se sentia desconfortável em público, agora que éramos amantes. Pensei em sua vida passada, de mãe e esposa. Tentei compreendê-la, concluindo que ela logo se acostumaria, quando eu a fizesse a mulher mais feliz do mundo.

-Eu penso em minha filha, Elton... qual será a reação dela?
-Se ela a ama - e tenho certeza que sim - gostará de saber que a mãe é feliz; senão, ela já tem sua própria vida, em outro país. Você precisa reconstruir a sua!

Ela assentiu. Olhou-me novamente nos olhos, e segurou minha mão sobre a mesa. Escutamos as risadas abafadas na mesa próxima, e ela baixou novamente os olhos. Olhei diretamente na direção das mulheres, erguendo meu copo como se lhes fizesse um brinde. Elas se calaram. Eva sorriu, desta vez, seu mesmo maravilhoso e aberto sorriso.

(continua)




quinta-feira, 7 de novembro de 2013

EVA - Capítulo III



Quando o corretor de imóveis se foi, um silêncio constrangedor ficou entre nós dois, ecoando com as últimas palavras que ele dissera. Eva foi até a janela e ficou olhando o parque lá embaixo, onde crianças brincavam. Fui atrás dela, e percebi que ela chorava, e que não era por causa do que o corretor havia dito. Era algo bem mais profundo. Achei que aquele momento era íntimo demais para que eu fizesse qualquer pergunta, e fingi não perceber. Minha vontade era estreitá-la em meus braços e varrer para longe qualquer coisa que pudesse estar causando-lhe aquela tristeza repentina... ou será que era uma tristeza que ela carregava consigo há muito tempo? Pensei que talvez fosse saudades da filha. Jamais admitia que pudesse ser também saudades do marido e da vida que ambos tinham na França, pois doeria demais.

Naquela noite, ela anunciou, durante o jantar, que compraria o apartamento. Meu pai abriu uma garrafa de vinho, e todos ficaram felizes por ela - menos eu, é claro. Significava que ela iria embora logo. Talvez dentro de algumas semanas?... Mas minhas dúvidas foram resolvidas com o avanço da conversa; fiquei sabendo que ainda demoraria, até que os papéis do apartamento ficassem prontos, e este fosse mobiliado a fim de que Eva pudesse finalmente mudar-se. Fiquei mais animado, e até juntei-me ao brinde.

Faltavam apenas duas semanas para o Natal. Eu e Eva passávamos as tardes em lojas de móveis e decoração. O ex-proprietário, após a assinatura do contrato, deixara-lhe as chaves para que ela pudesse mobiliar o apartamento. Algumas vezes, mamãe juntava-se a nós; fazíamos compras, visitando shoppings, e depois terminávamos as tardes em cafés, onde ríamos muito, comíamos brioches e doces e tomávamos Expressos. Mamãe adorou o apartamento, e presenteou Eva com um de seus quadros. Era uma pintura abstrata cujas cores combinavam perfeitamente com a decoração que Eva tinha em mente.

A exposição de mamãe estava marcada para o dia 23 de dezembro - uma data atribulada, mas era o que a galeria tinha disponível. Lembro-me daquele dezembro como um dos meses mais felizes de minha vida.

Certa tarde, Eva e eu estávamos sozinhos; o apartamento acabara de ser pintado, mas ainda estava vazio. Ainda havia algumas latas de tinta, jornais, brochas e pincéis espalhados pelos cantos. O sol estava se pondo em cores deslumbrantes, e Eva convidou-me para ir até a varanda assisti-lo com ela. Naquela tarde, ela parecia feliz e tranquila. Eu via os efeitos de cores que o sol poente produzia na pele dela e no cenário que nos cercava. Tudo estava tão vivo! Lá embaixo, os carros começavam a acender os faróis, e um bem-te-vi gritou em um telhado próximo. De repente, eu senti que precisava beijá-la; se não fosse naquela hora, poderia nunca mais ser, e eu tive aquela certeza!

 Meu coração batia descompassadamente. Ela não desconfiava da miríade de emoções que tomavam conta de mim. Seus cotovelos descansavam sobre o parapeito da varanda, as mãos fracamente entrelaçadas, o olhar perdido na paisagem, o sorriso leve e tranquilo no rosto. 

Eu sabia que teria que fazê-lo; era a minha chance. Tudo estava perfeito! Tínhamos aquela linda tarde, estávamos sós, escurecia... consciente da efemeridade daquele momento, que passava rapidamente - uma estrela acabara de surgir - eu coloquei meu braço em volta de seus ombros, puxando-a para junto de mim, e ela apoiou a cabeça em meu ombro. Atrevidamente, levei a mão até seu queixo, erguendo seu rosto para mim, obrigando-a a olhar-me nos olhos. Ela pareceu um pouco confusa, mas não resistiu quando eu toquei seus lábios levemente com os meus, intensificando aquele beijo pouco a pouco, até que tornou-se um beijo apaixonado. Ela virou-se para mim, e abraçou-me com força.

Quando nos separamos, já estava quase totalmente escuro - apenas um tom avermelhado,  uma faixa cor de fogo, permanecia no horizonte, emoldurando a paisagem. Eva empurrou-me de repente, quebrando a magia. Olhei para ela, doloridamente surpreso com sua atitude.

-Não, não pode ser, Elton! Nunca mais, eu disse, nunca mais faça isso!
-Mas Eva, eu...
-Não diga nada! Vá embora. É errado!

Foi como se suas palavras tivessem o poder de um punhal. Permaneci imóvel, e ela repetiu, desta vez, mais alto:

-Vá embora!

E mais docemente:

-Por favor.

Tentei argumentar, mas Eva encaminhou-se até a porta, abrindo-a e fazendo sinal para que eu saísse. Passei por ela de cabeça baixa, e ela bateu a porta trás de mim.

Eu ainda estava sob os efeitos mágicos de tudo o que tinha acontecido, mas sabia que nada mais seria como antes entre nós. Não estava arrependido, mas muito confuso e magoado! Fui para casa sozinho. Quando cheguei, meus pais estavam sentados no sofá da sala de TV, e ouviram quando fechei a porta. Mamãe veio atrás de mim:

-Eva, eu... (ela percebeu que eu estava sozinho): Elton, onde está Eva?

Eu não consegui responder logo, mas pensei rápido e inventei uma desculpa:

-Ela... ficou no apartamento arrumando umas coisas. Virá mais tarde.
-Você deixou-a sozinha? Podia ter ficado com ela, vindo mais tarde...
-Olha mãe, eu já estou cansado de paparicar a Eva pra você, OK?

Ela pareceu chocada:

-Elton, meu filho, o que aconteceu?!

Olhei por cima dos ombros dela e vi o olhar de papai preso no meu. Ele sabia. Virei-me e comecei a subir as escadas, dizendo:

-Nada, mãe, eu só estou um pouco cansado, e não me sinto muito bem. Vou para o meu quarto. Não quero jantar hoje.

Subi as escadas, e escutei-os conversando baixinho. Entrei no meu quarto, fechando a porta com força, e joguei-me de bruços na cama. Eu não conseguia coordenar meus pensamentos. O beijo dela ainda queimava meus lábios, e eu sentia o perfume dela nas palmas das minhas mãos. Eu ficava revivendo aquela cena paradisíaca até o momento em que que eu acordara tão bruscamente daquele sonho. Ouvi batidas na porta do quarto. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, meu pai entrou.

-O que aconteceu, Elton? Não o que eu temia, espero.

Sentei-me na cama, olhando-o desafiadoramente.

-Não, foi só um beijo. E eu praticamente a forcei.
-E ela?...
-Me colocou para fora.
-Bem, pelo menos alguém tem juízo nessa história... mas e agora, filho?
-Agora? Não sei. Agora, depois, sei lá, pai.
-Você se arrependeu?
-Não!!! Eu... eu fiz o que eu queria ter feito.  Quero dizer, quase tudo o que eu queria ter feito. Ou quase nada... só sei que agora eu não sei mais como vou olhar para ela... ela me desprezou.
-Elton, ela apenas agiu como uma pessoa adulta. Pense bem: você, um garoto, e ela, uma mulher madura, mãe de família, que está se sentindo solitária... aconteceu, e acho que ela também foi culpada. Uma mulher não é beijada se não quiser.

Aquilo fez sentido. Então Eva quis ser beijada! E significava muito para mim saber disso.

-Você acha, pai?
-Acho o quê?
-Que ela quis ser beijada?...

Ele deu um suspiro de impaciência, erguendo as mãos:

-Ah, não foi isso que eu quis dizer, Elton! O que aconteceu foi errado, entende? Ela quis, pois sente-se carente, mas sabe que está errado. Deus queira que sua mãe nunca fique sabendo, pois isto poderia destruir a amizade das duas! Não se brinca com o coração das pessoas, Elton. Não brinque com o de sua mãe. Ou o desta pobre mulher, sei lá.

-Mas pai, e o meu? Quem se preocupa com o que eu estou sentindo?

Meu telefone tocou na mesinha de cabeceira. Meu pai atendeu, e passou para mim:

-É seu amigo Carlos. Com certeza vai te convidar para alguma coisa. Aceite, filho, vai ser bom pra você.

Passei a noite toda com os amigos em uma discoteca. Bebi mais do que devia. Vomitei na calçada, chorei nos ombros de uma menina que eu nunca mais vi e nunca tinha visto antes. Uivei para a lua feito um lunático, bebi mais um pouco, saímos por aí andando à pé na noite, vomitei novamente, urinei no muro do vizinho e cheguei em casa quando o primeiro galo cantou.

(continua)


A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...