Capítulo 7 – A ETERNIDADE
Surpreendida pelo desabafo da mulher geralmente
calada, Eduína refletiu por um momento. Mas o que Beatriz disse não a convencia
de que viver para sempre, sendo rica e sem jamais envelhecer, poderia ser uma
ótima ideia. Perguntou, dirigindo-se à Beatriz:
- Beatriz, vocês dizem que nós voltamos. Mas
somos sepultados, alguns cremados, nossos corpos não são destruídos? Então,
como voltamos neles?
As duas velhas mulheres se entreolharam,
respirando profucndamete, e foi Guiomar quem respondeu:
-Não sabemos. Não conseguimos nos lembrar de
absolutamente nada entre o momento em que desaarecemos e o momento em que
voltamos. Chegamos aqui andando e ficamos um pouco confusos no início, até que
as lembranças começam a voltar. Não sabemos como voltmos aos nossos corpos.
Eduína ergueu-se da cadeira, caminhando e
gesticulando enquanto dizia:
-E se... pudéssemos escolher os corpos para os
quais voltaremos? Ou seja, corpos mais jovens e bonitos? Mais saudáveis? E se
pudéssemos escolher novos corpos e novas vidas, novas identidades?
Beatriz negou com a cabeça, e Guiomar disse:
- Já foi tentado. Os cientistas tentaram.
Usaram corpos de pessoas recém-falecidas, indigentes. Mas nada conseguiram
nesses anos todos.
-Talvez porque eles pensam que tudo isso é
apenas uma experiência física, algo apenas científico. Mas... e se tiver alguma
coisa a ver com mágica? Algum ritual?
As duas mulheres se entreolharam novamente, mas
nada disseram. Preferiram não dizer que algo fora tentado algumas vezes, e
apesar de terem sacrificado algumas vidas a procura de corpos jovens para onde
voltarem, tais vidas tinham sido desperdiçadas em vão. Nada tinha funcionado.
Lembraram-se do velho livro de rituais eu estava na família há séculos, mas que
ninguém conseguira decifrar totalmente. O livro encontrava-se na prateleira
mais alta da biblioteca, onde dificilmente alguém poderia encontrá-lo. Fora colocado
lá por Viviane.
Sob a
mesa, Felix estava em sua posição de iogue na sua cadeira favorita, os olhos
fechados.
Mais tarde, quando as duas senhoras foram
dormir, Eduína caminhava pela casa semi-escurecida olhando tudo. O silêncio era
entrecortado pelo ruído do relógio antigo de parede. Ela ainda não conseguia
entender o que estava acontecendo, mas sabia que mais cedo ou mais tarde, ela
conseguiria. Sentia que tinha uma missão naquela família.
Após oito dias morando naquela casa, Eduína
ainda não tinha reencontrado Feliciano, o belo jovem que conhecera no jardim e
que era seu vizinho. Tinha a impressão que ele estava fugindo dela, mas Beatriz
assegurou-lhe de que Feliciano estava ocupado cuidando dos negócios da família.
Da mesma forma, Lázaro passava de vez em quando para levar algumas compras do
supermercado, mas nunca falava com ela. Eduína precisava lembrar-se de aquela
figura encarquilhada era seu pai, mas como ele jamais se dirigia a ela, ela
agia da mesma forma. Não se sentia próxima a ele e nem queria estar.
Seu único amigo, aquele que a via sem a sua
armadura, era o gato Felix. Ele subia em sua cama e ficava olhando para ela,
enquanto ela olhava pela janela ou andava de um lado para o outro.
Ela não saía muito. Tinha ido até o final da
rua e conhecera todas as casas pelo lado de fora, já que deu a si mesma a
liberdade de invadir seus jardins, como Feliciano fizera. Reparou que todas as
casas eram muito antigas e bem conservadas e tinham a mesma arquitetura, com
apenas poucas diferenças. Também foi à cidade uma vez, e sentia os olhos das
pessoas presos nela quando ela passava. Mas Eduína não ligava que falassem dela
ou que a observasse, pois nunca tinha sido tímida. Ela retribuía – ou melhor,
enfrentava – os olhares de algumas pessoas mais insistentes até que elas
parassem de encará-la, e o fazia por pura diversão. Se havia alguma lenda sobre
aquela família, ela a alimentaria.
Certa vez, ela seguiu Lázaro até sua casa
depois que ele foi levar algumas compras. Ele ficou surpreso ao vêla andando
atrás dele, e franzindo as sobrancelhas, tentou entrar em casa antes que Eduína
o alcançasse, mas ela foi mais rápida, colocando-se entre ele e a porta. Lázaro
respirou profundamente, mostrado toda a sua habitual irritação. Eduína buscou
dentro de si sua melhor ironia antes de perguntar:
-Por que o papai anda sempre tão aborrecido?
No fundo, seu coração batia descompassadamente,
uma sensação nova para ela, mas seu rosto era pálido e frio como sempre.
Lázaro, sentindo-se desarmado de repente, respondeu com outra pergunta:
-Ah, então você já descobriu?
Ela não respondeu, permanecendo a encará-lo
desafiadoramente e lançando uma outra pergunta:
- Como é viver por tantos anos?
Ele sorriu levemente, um sorriso maldoso. Abriu
a porta de casa e fez sinal para que ela entrasse. Eduína entrou, reparando na
simplicidade da casa quase nua, sem tapetes, sem decoração. Lembrou-se da casa
onde vivera com seus pai adotivos, mas sem nenhuma saudade. Puxou uma cadeira
junto à velha mesa de madeira arranhada e sem toalha enquanto Lázaro arrumava
algumas compras no armário, de costas para ela. E repente, ele começou a falar:
-No começo, pensamos que viver por muitos anos
é bom. Mas depois de certo tempo, percebemos que passamos a conhecer bem as
pessoas, bem demais – suas atitudes não mudam muito, elas não parecem evoluir,
se olharmos de perto – e isso nos torna amargos e com cada vez mais vontade de
nos afastarmos delas, tão previsíveis são suas atitudes e palavras. Esta
cidade, por exemplo; um bando de fofoqueiros e curiosos. Eles nascem, crescem,
dão à luz a outros fofoqueiros como eles, morrem... e o ciclo se renova, ou melhor,
se repete. Não há graça, e após um certo tempo, torna-se apenas tédio. A vida
pode ser bem superficial.
Ele sentou-se em frente a ela, esticando-lhe um
copo de água que ela ignorou.
-Como tudo isso começou? As pessoas começando a
voltar, quero dizer.
-Não tenho certeza... talvez há uns trezentos e
tantos anos. Falam sobre um feitiço feito por Hélida, uma antepassada que gerou
uma maldição que comprometeu todos os descendentes da família e também a todos
que se envolvessem com eles. Ela viveu há mais de trezentos anos.
Eduína parecia fascinada.
- Uma bruxa... se um feitiço foi lançado, deve
haver uma maneira de desfazê-lo. E como elas voltam?
Ele fitou-a, deixando transparecer no seu olhar
cansado um misto de dó e indiferença:
-Elas apenas parecem, caminhando na estrada,
voltam para suas casas. E não sabem de onde vieram, não se lembram de como
voltaram. Ninguém sabe. Nem mesmo eu, que já voltei duas vezes. E elas voltam
sempre com a aparência que tinham quando morreram pela última vez, e por isso
muitos preferem se suicidarem ainda jovens. Como sua mãe e Feliciano. Mas não
se engane com a aparência dele, ele é tão velho quanto muitos. Quanto a
desfazer o feitiço... é o que muitos têm tentado fazer sem sucesso. Porque
apenas a bruxa que o lançou poderá desfazê-lo.
- E onde ela está? Não voltou?
-Não. Incrivelmente, Hélida não voltou. Mas o
seu corpo está guardado no porão da casa 9. Ela nunca se decompôs.
Ela franziu o cenho, desarmada pela primeira
vez diante dele. Trataria de revisitar a casa 9 após sair dali.
-Se vocês sabiam dessa... maldição, por que
decidiram me trazer ao mundo? E como minha mãe, que tinha a aparência tão
bonita, aceitou ficar com você, um velho encarquilhado e amargo?
Ele não demonstrou estar ofendido; pelo
contrário, os olhos dele pareceram estar vendo algo que ela jamais entenderia.
-Nossa história começou há muito tempo, quando
eu era um jovem atraente. Sua mãe... uma linda
mulher, sempre. Aguardar a volta dela é tudo o que tenho feito. É a
única coisa que me motiva um pouco. E saber que ela ainda me ama, mesmo sendo
como sou, mesmo eu não tendo a coragem de segui-la. Quanto a você...
Ele a olhou como se ela fosse um inseto.
-Você não passou de um acidente de percurso.
Sua bisavó não queria que você nascesse, e fez de tudo para tentar impedir sua
vinda ao mundo, pois não queria que sua linda bisneta tivesse um compromisso
com alguém como eu, um simples empregado. Mas Viviane e eu fugimos, e só
retornamos quando você nasceu. Mas ela não a trouxe de volta. Contratou pessoas
para cuidar de você. Seus pais adotivos. Chegando aqui, nós combinamos de nos
matarmos juntos, mas eu, mais uma vez, não tive a coragem. Eu traí a confiança
dela. Como das outras vezes.
Eduína levantou-se, afirmando:
-Eu quero ver Hélida. Agora.
Ele olhou-a por alguns instantes, antes de se
levantar e pegar um molho de chaves que estava pendurado junto à porta de
entrada. Retirou uma chave do molho, entregando-a à Eduína, que aprontamente a
segurou, perguntando:
-Você não vai comigo?
Ele riu, ironicamente:
- E por que eu iria?
Ela virou-se de costas para ele e saiu batendo
a porta.
A porta de entrada da casa 9 rangeu amargamente
quando Eduína a empurrou. Lá dentro estava escuro, e o cheiro de bolor era
desagradável. Ela procurou o interruptor, e uma luz fraca acendeu no teto do
salão. Eduína olhou em volta e percebeu que aquela deveria ser uma das casas
mais antigas da rua. Com certeza, a casa mais antiga que ela já entrara. Mesmo assim,
não estava mal cuidada. Talvez um pouco empoeirada.
Ela logo achou o caminho que a levaria para o
porão, uma portinhola na cozinha. Eduína sentia como se o tempo todo alguém a
estivesse vigiando, e não gostava daquela sensação, mas se queria descobrir
alguma coisa, deveria suplantar sua insegurança.
Deparou com um animal morto num canto da
cozinha, já ressecado: um rato. Mas apesar de detestar ratos, Eduína
simplesmente o ignorou.
Abriu a portinhola e começou a descer
vagarosamente as escadas de madeira estreitas que levavam ao porão – e contou
todas elas: trinta e nove degraus. O porão era um lugar enorme, cheio de
livros, mesas com frascos cheios de líquidos estranhos, esqueletos de animais,
plantas ressecadas e muitas teias de aranha. Finalmente, ela encontrou, em um
canto, o caixão de vidro onde estava o corpo de Hélida.
Aproximou-se dela vagarosamente, e ao chegar
perto, limpou o vidro empoeirado com as mãos e um pano velho que achou por lá,
e então deparou com uma das mulheres mais lindas que já vira. Hélida parecia
dormir. Tinha cabelos negros e longos, cuidadosamente arrumados em volta do
corpo, e sua pele parecia feita da mais rica porcelana. As duas mãos cruzadas
no peito eram finas e delicadas, unhas longas pintadas de vermelho vivo. Os lábios
pareciam terem sido esculpidos à mão por um competente artesão, e os cílios
longos e negros eram encimados por um par de sobrancelhas naturalmente
arqueadas. A mulher era uma verdadeira obra de arte!
Eduína percorreu com os olhos o vestido roxo antigo
bordado de negro, até os pés descalços e muito brancos. Depois, seus olhos
foram subindo devagar, concentrando-se nas pulseiras de pedrarias e nos anéis
de rubi ou esmeraldas, até chegar novamente ao rosto perfeito, onde dois olhos
verdes a fitavam.
(CONTINUA)
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