terça-feira, 7 de maio de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 6




 PARTE 6 – FAMÍLIA


No dia seguinte, após uma noite praticamente em claro, Eduína decidiu colocar toda aquela história sobre a mesa. Carregou os álbuns de retratos um a um até a sala de estar, colocando-os sobre o sofá. Guiomar esperava por ela de pé, ao lado da mesa da sala de jantar onde o café da manhã tinha sido servido, e Eduína podia ouvir Beatriz limpando o andar superior da casa. As duas mulheres se cumprimentaram com um aceno de cabeça e um bom dia sussurrado, e Eduína sentou-se à mesa. Guiomar serviu-lhe o café em silêncio. 

Após comer, Eduína dirigiu-se à porta, e só então se deu conta de que Félix não estava por perto. Indagou:

-A senhora sabe onde o Félix está?

Guiomar lançou-lhe seu sorriso escorrido, dizendo:

-Oh, acredito que ele esteja por aí, pelo jardim. A senhorita já visitou a floresta? É muito bonita.

Eduína percebeu que a sugestão de Guiomar continha alguma segunda intenção, e sem responder, saiu para o jardim dirigindo-se à floresta que ficava nos fundos da casa. Encontrou Félix distraindo-se com algumas borboletas que voejavam por ali, e assim que ele a viu, correu para perto dela. Eduína ajoelhou-se para festejá-lo, e quando casualmente olhou para o lado, ela viu um pequeno cemitério antigo.

Ela o percorreu vagarosamente, sentindo a atmosfera sombria que a enregelava. Apertou o casaco contra o corpo, tentando conter o frio repentino. Nas lápides, havia fotografias amareladas das mesmas pessoas que ela tinha visto nos álbuns. Eduína, que era boa fisionomista, conseguiu até mesmo lembrar-se dos nomes. De repente, ela deparou com a lápide de sua mãe. Passou a mão sobre a fotografia tentando remover o lodo que crescia sobre ela. De repente, Eduína sentiu a presença de alguém de pé atrás dela, e virou-se rapidamente. 

Era um homem jovem e alto e esguio, aparentando talvez trinta anos de idade, cabelos castanho-avermelhados ondulados e olhos verdes. Vestia um suéter preto de gola alta e calças igualmente pretas. Ele a olhava como se a conhecesse, um sorriso disfarçado entre os lábios, e ela pensou que as pessoas dali (como ela) não eram muito de sorrir. O que ela mais reparou nele, foi o ar de arrogância que ele destilava. Eduína sentiu um arrepio quando os olhos dela se prenderam aos olhos dele, e para manter o controle da situação, pigarreou:

-Quem é você? O que quer aqui?

Naquele momento, Félix correu na direção do rapaz, esfregando-se em suas pernas e sendo acariciado por ele. O rapaz olhou para as pontas dos sapatos caros, esfregou as calças para retirar os pelos do gato e erguendo os olhos novamente, respondeu, apontando em direção à rua:

-Sou Feliciano. Moro na casa 11.

Ela concordou com a cabeça, respondendo: 

-Eu sou...

Ele a interrompeu:

-Eduína. Como vai você?

Eduína não respondeu, nem devolveu o cumprimento. Ao invés disso, mudou de assunto:

- As pessoas são sempre assim por aqui? Invadem as casas alheias?

Feliciano fitou-a longamente antes de responder.

- Não estou invadindo. Costumo vir aqui desde criança para brincar no jardim, bem antes de você aparecer... Sempre morei nesta rua. Aliás... lamento por sua bisavó.

-Eu nem a conhecia, não lamente. E ela me deixou uma fortuna, afinal. Eu nem sequer conheci a minha mãe (ela apontou para o túmulo de Viviane). Ela me abandonou quando nasci. 

Ele concordou com a cabeça.

- Você é sempre tão direta e prática? Talvez o verbo não seja ‘abandonar.’ Quem sabe, ela só estava tentando livrar você de um destino pesado?

-Como assim? O que você sabe de mim? O que sabe sobre essas pessoas?

Ele respirou fundo, e encolhendo os ombros, olhou-a com ar desafiador:

- Absolutamente tudo. Ou quase tudo, talvez. Como já disse, sempre morei aqui e venho brincar nesta casa desde criança. Conheci muito sua mãe – linda mulher. Conheci também a sua avó e sua bisavó quando jovens. E também seu avô, bisavô, tataravós, tios... primos... pai.

Ela riu, confusa pela narrativa dele e pelo ar divertido com o qual ele a encarava; sentiu-se invadida, e retrucou:

-Bisavós e tataravós? Você só pode estar louco! Como pode ter conhecido essa gente toda se a maioria deles morreu antes de você nascer?

Ele franziu as sobrancelhas, demonstrando surpresa:

-Então você ainda não sabe...

Os dois se encararam em silêncio, e ela gostou de sentir que ele estava constragido enquanto via a autoconfiança dele escorregar até o chão. Não, ela ainda não sabia. Mas alguém teria que contar alguma coisa a ela, a qualquer momento.

Ele pareceu lembrar-se de algo de repente, e já se afastando em direção à rua, disse:

- Bem, eu preciso ir agora. A gente se vê por aí. Querendo aparecer, já sabe, estou na casa 11. Sempre estou em casa a partir das 6 da tarde, e moro sozinho.

Ela nem teve tempo de perguntar mais nada, pois ele simplesmente deixou-a de boca aberta, a frase não dita sobre a língua. Ela engoliu suas palavras, olhando para os túmulos silenciosos e cobertos de lodo. Pensou: “Eu tenho tempo.”

Ao voltar para dentro de casa, Felix não a seguiu; desapareceu entre os arbustos que ladeavam o caminho que dava para a floresta, logo atrás das fileiras de túmulos. Ao abrir a porta, Eduína deparou com Guiomar e Beatriz murmurando no sopé das escadas, mas assim que a viram, Beatriz encaminhou-se para a cozinha, e Guiomar, erguendo o rosto e segurando as mãos na frente do corpo, encarou-a:

-Algum pedido em especial para o almoço, senhorita?

Ela dirigiu à Guiomar um olhar frio:

-Pare de me bajular, senhora. Pode me chamar pelo meu nome. Não, não quero nada de especial, façam o que quiserem fazer. 

Guiomar concordou com um aceno de cabeça, e já se preparava para deixar a sala quando Eduína a parou:

- Afinal, quando é que vocês vão me contar o que eu preciso saber? Vão ficar fazendo mistério até quando?

Guiomar pensou que a moça era bastante mau humorada, igual à mãe. Fazendo um gesto para que Eduína a acompanhasse até a mesa da sala de jantar, onde os álbuns de fotografias ainda a aguardavam, Guiomar esperou que a moça se sentasse e pedindo licença, sentou-se na frente dela, pegando um dos grossos álbuns e abrindo-o, virando-o na direção de Eduína:

- Estes são...

Eduína não deixou que ela completasse a frase:

-Meu bisavô, minha bisavó, Viviane,a mulher que me pariu, e este ao lado dela é Lázaro. Mas este outro aqui nessa outra foto, que parece ter vivido há uns cem anos, também se parece com Lázaro. 

Os olhares de ambas se encontraram. Guiomar percebeu o sorrisinho zombeteiro e ao mesmo tempo, curioso de Eduína. A moça tentava demonstrar o domínio da situação, mas estava demasiadamente confusa, e o ataque, para os membros daquela família, era sempre a melhor defesa. Diante do silêncio de Guiomar, Eduína fechou o álbum com força, levantando uma nuvem de poeira:

- Então... eu sou uma pessoa bastante prática, e não gosto de perder tempo. Vai falar ou não?

Guiomar deu um de seus sorrisos, curvando os lábios para baixo:

- A senhorita tem tempo... Eduína. Todo o tempo desta vida, e de outras.

Eduína apertou os olhos; não gostava de metáforas.

-Desembucha, senhora. Ou vou ter que contratar outra pessoa.

Guiomar deu uma sonora gargalhada, jogando a velha cabeça para trás. Eduína sentiu um arrepio percorrer sua espinha, mas piscando para que as lágrimas não caíssem, revelando seu medo repentino, manteve ambas as mãos cruzadas sobre a mesa. Esperou que Guiomar parasse de gargalhar, e seu riso cessou tão de repente quanto começou. 

-Quer saber a verdade, não é, senhorita? A verdade, é que vocês voltam.

Eduína começou a tamborilar os dedos sobre a madeira escura, a ponto de perder a paciência. O tic-tac do relógio cortava o silêncio da sala, mascarando o canto dos pássaros nas árvores lá fora, parecendo aumentar de intensidade e ocupar toda a sala. Ela instintivamente levou as mãos aos ouvidos, cobrindo-os momentaneamente. A velha senhora aproveitou-se de  seu momento de fraqueza e completou:

-Sua família não parece gostar muito do... “outro lado.” Vocês morrem, mas sempre voltam. E morrem de novo, e voltam outra vez. Assim como Beatriz, assim como eu. Assim como Félix. Isso acontece há mais de quatrocentos anos. Ninguém sabe como começou. Alguns pensam que é simplesmente o sangue da família. Mas então as pessoas que vieram trabalhar nesta casa começaram a voltar também. Então concluiu-se que talvez seja o solo, o ar da rua, as árvores, alguma coisa na água... na verdade, ninguém sabe. Talvez uma maldição? Só sei que não nos foi dado o direito de morrer. E nem a você. Em algum momento a partir dos trinta anos de idade,  deixará de envelhecer. Isso pode acontecer aos trinta, aos quarenta e cinco... ou aos noventa, como aconteceu comigo há cento e quinze anos, quando já trabalhava na casa há mais de setenta. Se não ficar doente antes, poderá viver por mais de cem anos sem que sua aparência mude. E a cada cem anos, talvez envelhaça dez. quem sabe, viva até os trezentos? O único porém, é que isso não nos torna imortais. Nós morremos. Adoecemos, como qualquer um, sofremos acidentes ou cometemos suicídio. Mas sempre voltamos. E temos consciência disso.

Eduína murmurou:

-Então a senhora quer me dizer que tem mais de cento e oitenta e cinco anos?

A velha senhora concordou com a cabeça, parecendo divertida com o olhar confuso da moça.

Eduína estava fascinada, e não conseguia tirar os olhos da velha senhora. Sabia que cada palavra que ela proferia não era exagero ou fantasia, mas a mais pura verdade. Ela continuou:

- Esta é a sua primeira vida. Você foi um acidente de percurso, sua mãe não tinha  a menor intenção de tê-la. O mesmo posso dizer a respeito de Feliciano, o velho jovem com quem você conversava lá fora. A mãe dele sofreu um estupro há quase cento e cinquenta anos, e engravidou dele. Naqueles tempos, abortos eram complicados. E a senhorita... bem, sua avó fez de tudo para que sua mãe a matasse antes de nascer, mas ela a teve longe daqui, e deu-a à adoção ao casal que cuidou da senhorita, contanto que cuidassem de você até que pudesse cuidar-se sozinha. Na verdade, eles não morreram naquele acidente. Foi tudo uma grande montagem. Eles estão vivos, quem sabe, em algum lugar do Caribe?

- Meus pais adotivos... estão vivos?

-Sim. 

Eduína ergueu-se da cadeira, e começou a andar de um lado ao outro da sala, enquanto Guiomar permaneceu sentada à mesa. Eduína tentava lidar com aquela enorme quantidade de informação totalmente inusitadas, pensando na cremação dos pais adotivos e no velório, onde algumas pessoas estranhas apareceram, mas não falaram com ela. É claro que os corpos podiam ter sido substituídos por outros antes da cremaçãoela lembrou-se de terem pedido a ela que deixasse a sala de velório a fim de finalizar alguns documentos.

-Bem... você disse que nós voltamos. Então minha mãe vai voltar?

-Sim. Ela vai voltar.

-Quando?

Guiomar encolheu os ombros:

-Difícil prever. Pode ser amanhã, ou daqui a dez anos. Ou quem sabe, hoje mesmo? É imprevisível. A senhorita gostaria de rever seus pais adotivos, ou falar com eles?

Eduína considerou o assunto antes de finalmente responder:

-Na verdade, não. Não sou uma pessoa sentimental, e tenho certeza de que eles também não são. Nunca sentimos amor verdadeiro uns pelos outros, era como se o tempo todo eu soubesse... nós nos respeitávamos, é claro, gostávamos uns dos outros, mas eu jamais soube o que é amar. Não sei o que esse sentimento significa.

A velha senhora colocou ambas as mãos sobre a mesa, traçando com as pontas dos dedos os veios da madeira:

- Todos nesta família têm um certo grau de sociopatia. Alguns mais, outros menos.

Eduína estava fascinada; sentou-se novamente ao lado de Guiomar, chegando o rosto bem próximo dela, que recuou instintivamente:

- E os outros? Onde estão? Como eles voltam?

Guiomar fez um gesto com a mão:

-Por aí. Pelas casas, ou pelo mundo. Mas quando eles ficam muito tempo fora, começam novamente a envelhecer após um ou dois anos. 

-A senhora quer dizer que se eu sair daqui, se eu for embora por muito tempo, volto a ser uma pessoa “normal?” (Ela fez o gesto de aspas com os dedos). 

A mulher concordou com a cabeça, acrescentando:

- Mas mesmo assim, ao morrer, vai voltar. Com a mesma aparência que tinha antes. Você não gostaria de passar a eternidade com a mesma aparência que eu tenho, gostaria?

Eduína percorreu com os olhos o rosto completamente enrugado da mulher, e negou com um gesto de cabeça. Então era por aquele motivo que havia tanta gente idosa em volta dela!

-Geralmente, a fim de não envelhecerem demais, os mais corajosos acabam cometendo suicídio. Como sua mãe. 

-Então ela não adoeceu?

-Sim, ela adoeceu. Na verdade, uma doença mental. 

-Por que Beatriz mentiu para mim sobre minha mãe?

Guiomar deu uma gargalhada:

-Beatriz é muito sentimental, não queria chocá-la, então inventou que Viviane morrera dando à luz a senhorita. Mas na verdade, ela se suicidou. Envelhecer a apavorava.

Eduína pensou que nada que pudessem lhe dizer a chocaria, e não entendeu o gesto de Beatriz. Mas seu pensamento rápido e prático logo levou-a a outras reflexões mais importantes.

Se aquilo era mesmo verdade – e ela sentia eu era – ela poderia viver eternamente, e manter a aparência jovem suicidando-se antes de envelhecer, ou então escolher envelhecer e voltar à vida com a aparência de alguém maduro. Pelas histórias que lhe contaram, sua mãe deveria ter cometido o suicídio algumas vezes. Quem sabe, também Feliciano, o belo jovem que se apresentou a ela naquela manhã? 

Ela precisava pensar, entender tudo aquilo. Virou-se para Guiomar, que a esperava pacientemente sentada à mesa, as mãos abertas sobre a madeira antiga:

- Como podem ter certeza de que eu tenha herdado a condição da família, se fui criada longe daqui e essa condição talvez esteja ligada à permanência das pessoas neste lugar?

Guiomar olhou-a com frieza:

-Ninguém nunca afirmou que a senhorita tem a condição. Mas precisamos da senhorita para que as pesquisas científicas possam ser concluídas e para que possamos nos livrar dessa maldição que nos assola.

Naquele momento, Eduína conseguiu vislumbrar um ar de desespero no semblante de Guiomar.

-O restante dos membros da família não têm mais filhos por decisão própria, e Feliciano e a senhorita são os únicos membros jovens da família.

-Mas Feliciano foi criado aqui!

-Sim. Ele tem cento e vinte anos. Foi criado aqui até os seis anos de idade e depois enviado para uma das propriedades da família fora da Rua dos Ausentes, onde cresceu. Mas quando ele voltou para cá, há alguns anos, de repente começou a envelhecer. Não sabemos se devido ao tempo em que ficou fora, mas ele parece ter conseguido.

-A senhora fala sobre isso como se envelhecer fosse um mérito!

Guiomar ergueu-se da mesa de repente, ficando de costas para Eduína:

- Nunca pense que não morrer jamais seja uma bênção! A vida é cansativa. Após alguns anos, tudo se torna apenas tédio, amargura, e... um enorme cansaço. Deseja-se morrer. Morrer é necessário! E quem sabe, a senhorita ou Feliciano possam ter em sua genética a resposta ao mal da vida?

-Mas e se eu decidir não envelhecer mais, aceitando a “maldição” da família? Não acho que seria ruim demais ser bilionária e jovem para sempre, mesmo que eu precise sair de cena de vez em quando durante alguns anos!

Naquele momento, Beatriz surgiu na sala, assustando a moça ao gritar:

-A senhorita não sabe o que diz! Acredite, a vida precisa ter um limite! Nós nos deixamos envelhecer na esperança de que a morte pudesse nos alcançar, e agora estamos condenados a viver para sempre em corpos envelhecidos, e a voltar a viver neles para todo sempre após dias ou anos! Poucos conseguiram permanecer mortos por muito tempo. Mas existem pessoas que não voltaram antes de cem anos, mas eventualmente, eles voltaram, velhos e acabados! Eu sou um deles, e afirmo que a eternidade não é um presente!


(continua)







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