segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

SEGREDOS - Conto 3 - Receita de Família





"O segredo não é correr atrás das borboletas, é só usar inseticida."
 Por William Eduardo da Silva



RECEITA DE FAMÍLIA


Fátima recebera naquela manhã chuvosa de domingo a notícia de que sua avó estava hospitalizada. Clélia, a avó, era uma senhora viúva de 83 anos, embora aparentasse pelo menos dez anos a menos. Bem-cuidada, antenada, era uma avó do tipo que não gostava de croché, preferindo passar algumas horas aprendendo sobre as novidades da tecnologia, moda, os novos lançamentos em filmes e o que acontecia na vida dos famosos. 

Mas se havia alguma coisa que Clélia tinha em comum com outras avós, era o gosto pela cozinha. Portadora do caderno de receitas que estava na família há pelo menos três gerações, ela gostava de escolher o que iria preparar para as reuniões de família que aconteciam mensalmente em sua casa grande, confortável e modernamente decorada. As mulheres da família reuniam-se na enorme cozinha de Clélia, onde cada qual recebia uma tarefa na preparação das refeições, sempre seguindo as instruções de Clélia, e de modo que a receita fosse toda dividida em etapas individuais que dificultassem às mulheres descobrirem o preparo total das receitas. Aquelas eram ocasiões muito divertidas, apesar das pequenas fofocas e rivalidades comuns a todas as mulheres do mundo. 

Então, as pessoas reuniam-se à mesa entre 'hums' e 'ahs', alguns homens perguntando sobre o modo de preparo das receitas, mas Clélia sempre escondia alguns detalhes, mesmo sabendo que um dia o caderno de receitas - um livro grande e grosso, com capa de couro preta e todo escrito à mão pelas matriarcas da família a quem ele pertencera - passaria adiante. Porém, era tradição de família que antes deste momento, as receitas fossem mantidas no livro, não podendo ser copiadas. 

Além de Fátima, havia uma outra prima, Geise, que sonhava  possuir o caderno de receitas, e ela e Fátima tornaram-se grandes rivais. É claro que ambas eram rivais também por outros motivos que ficaram no passado, mas não convém falar deles neste momento... 

Fátima possuía um pequeno restaurante que não ia muito bem das pernas, e que, ela tinha certeza, poderia progredir se ao menos ela possuísse as receitas de família.

Enquanto se vestia para visitar Clélia, Fátima pensava no quanto as noites na casa da avó eram importantes para reunir a família; onde elas aconteceriam agora, caso a avó morresse? Seu apartamento não era grande o suficiente para acomodar as vinte e oito pessoas, e o de Geise, era menor ainda. A casa onde a avó morava, uma bela mansão em uma rua praticamente deserta, era alugada, embora ela já vivesse lá há mais de quinze anos, e seria devolvida aos proprietários assim que a avó morresse. Ela não acreditava que os outros parentes gostariam de assumir a responsabilidade.

Quando Fátima chegou ao hospital, de braços dado com o marido, deu logo de cara com sua prima e rival, além de alguns outros parentes. As duas fuzilaram uma à outra com o olhar, mas cumprimentaram-se educadamente. 

Após inteirar-se sobre o estado da avó, o marido de Fátima despediu-se, dizendo que precisava ir trabalhar, e pediu que se houvesse qualquer mudança, que o comunicassem. Fátima ficou sabendo que Clélia sofrera um AVC leve, e que após um pouco de fisioterapia e alguma medicação, ficaria bem.

E foi exatamente o que aconteceu! Dias depois, Clélia estava em casa novamente, pronta para mais uma reunião de família, embora todos percebessem que ela agora mancava um pouco da perna direita. 

Na noite daquela reunião, equanto desfrutavam da maravilhosa bavaroise de morango, todos foram silenciados de repente pelas batidinhas de um talher em uma taça; era Clélia que pedia a atenção de todos. Aos poucos, fez-se silêncio, e ela começou seu curto discurso:

"Meus queridos, hoje eu tenho uma importante revelação para fazer." Começou um zum-zum entre as pessoas que terminou assim que Clélia voltou a falar:

"Todos sabem que estive hospitalizada há algumas semanas devido a um AVC. Bem, seja como for, ainda estou por aqui, mas a minha estadia naquele hospital me fez refletir sobre algumas coisas. A que servirá como o assunto deste discurso, é justamente o destino do caderno de receitas da família."

Todos olharam para Fátima e Geise, que sentiram seus corações palpitando forte naquele momento. Clélia continuou:

"É de conhecimento de todos que as receitas deste livro vem sendo preparadas há muitos anos, por várias gerações de mulheres em nossa família. Mas qual é, verdadeiramente, o sentido destas receitas? Eu mesma responderei: Não é apenas a culinária em si, mas, principalmente, manter a família unida. Mas eu estou velha. Minha hora está chegando" (houve alguns protestos, que logo arrefeceram, e Clélia pode enfim continuar):

"A fim de manter a família unida, este livro deverá ser doado àquela que mais terá condições de levar nossa tradição adiante. Infelizmente, nos dias de hoje poucas possuem uma casa tão grande que possa acomodar a todos, e pensando nisto, eu me desfiz de minhas economias e comprei esta casa."

Ao ouvir a avó dizer aquilo, todos mostraram grande surpresa. Ninguém tinha conhecimento daquele fato, e imediatamente, cifrões começaram a passar diante dos olhos de algumas pessoas: quanto valeria aquela mansão, e com quanto cada família ficaria, após a venda? Mas o que Clélia declarou a seguir, fez com que as esperanças daquelas pessoas ruíssem:

"A pessoa que vou escolher hoje para seguir com a tradição de família, herdando o caderno de receitas, ficará também com esta casa, que deixarei em usofruto em testamento. E minha escolha foi baseada não em preferências pessoais, mas no que seria mais prático para todos. Escolhi alguém que possui menos responsabilidades, pois não se casou e não tem uma família própria, e além disso,  é mais jovem e tem mais energia." 

Fátima sentiu seu coração gelar. Suas esperanças de herdar o caderno estavam indo por água abaixo bem diante dos seus olhos, juntamente com as esperanças que tinha de reerguer seu restaurante, e achou a decisão da avó tão injusta, que chegou a odiá-la. Ela sequer importava-se com a casa, queria apenas o caderno. Do outro lado da mesa, logo em frente a ela, Geise a fitava com os olhos injetados de maldade e de triunfo. Clélia continuou, dizendo o que todos já sabiam:

"Minha escolhida é Geise."

Todos aplaudiram sua rival, enquanto Fátima, tentando disfarçar seu orgulho ferido, parabenizou a prima com um abraço desajeitado. Foi friamente correspondida, e ainda teve que ouvir algumas ironias ferinas.

 Muitos disseram-lhe que estavam torcendo por ela, e lamentavam, mas ela apenas agradecia-lhes com um sorriso discreto, nada dizendo, a fim de controlar o choro - que finalmente explodiu em cascatas, assim que ela entrou no banheiro e fechou a porta. No final daquela noite, Fátima foi embora sem despedir-se da avó, que morreu apenas dois dias depois. 

Geise mudou-se para  a casa grande e passou a administrar as reuniões, a cozinha... e o tão desejado livro de receitas. Fátima era obrigada a contentar-se em aceitar as tarefas que ela lhe designava, e eram sempre as mais monótonas: descascar legumes, bater claras em neve, lavar a louça. Enquanto executava suas tarefas, o ressentimento ia se tornando uma coisa amarga que ela destilava na comida pelas pontas dos dedos. Cada olhar que dirigia à prima, era cheio de imprecações mudas e desejos de que ela morresse seca e infeliz. A inveja e o ódio passaram a tomar conta de seu coração totalmente. Até mesmo as demais pessoas perceberam a mudança no caráter de Fátima. O marido passou a ser o receptáculo de suas frustrações; o pobre homem era tão maltratado, que passou a dormir no quarto de hóspedes. Finalmente, acabou saindo de casa. 

O restaurante acabou fechando - não por falta do livro de receitas, mas pela qualidade da comida, que caiu vertiginosamente, já que um chef que tempera seus pratos com ódio e ressentimento, envenena a todos. E Fátima culpava a prima Geise de tudo de ruim que lhe acontecia, achando-se vítima de sua inveja e maldade, quando o que acontecia era justamente o contrário.

Certa vez, Fátima leu no jornal um artigo um tanto estranho. Após relê-lo várias vezes, ela recortou-o, levando-o para a cama com ela, acordando várias vezes durante a noite a fim de lê-lo mais uma vez, até que o memorizou. Amadureceu a ideia por dias a fio, pensando nas consequências, vantagens e desvantagens. Estudou tudo meticulosamente. Planejou, previu erros, consertou, reajustou, até que construiu tudo com perfeição. Bastava-lhe uma simples oportunidade, e tudo o que queria seria dela. 

Um dia, ciente da amargura da prima, Geise achou que poderiam fazer as pazes. Afinal, ela já obtivera o que queria, e não via mais motivos para rivalidades. Assim, telefonou à prima. Ambas conversaram durante alguns minutos, e embora Fátima destilasse ódio pelos poros,  mantinha a voz sob controle, em tom casual e alegre, enquanto dizia à prima que rivalidades deveriam ser esquecidas, pois eram parte de uma família, e o desejo da avó (que Deus a tenha)  tinha que ser cumprido. Para selar aquele recomeço, Geise convidou a prima para tomar chá na mansão. 

Fátima chegou às seis daquela mesma tarde, ao crepúsculo. A rua estava deserta, como sempre. Vestia um terninho branco, com uma echarpe rosa-claro que fazia com que ela se parecesse com um anjo. A prima recebeu-a muito bem, e logo passaram para a sala de estar, onde a criada serviu-lhes o chá, antes de despedir-se, encerrando o dia de trabalho.

Durante a conversa, Geise confessou à prima que, no testamento da avó, havia uma cláusula determinando com quem o caderno deveria ficar se algo acontecesse a ela. Os olhos de Fátima brilharam: tinha certeza absoluta de que seria ela a contemplada!

Fátima e Geise esclareceram desentendimentos passados, e ambas perdoaram uma à outra por tudo o que as vinha afastando. Fátima fingiu chorar, e pediu à prima um copo de água com açúcar, e esta foi imediatamente à cozinha para pegá-lo. Aproveitando a ausência da prima, Fátima pegou o vidrinho dentro da bolsa. Custara-lhe muito dinheiro conseguí-lo. O vendedor garantiu-lhe que causaria uma morte sem sobressaltos, muito semelhante a um ataque cardíaco, caso a vítima fosse examinada. Pingou algumas gotas na xícara de Geise. Assim que ela voltou da cozinha, ela aceitou o copo d'água que a prima lhe estendeu. Ambas tomaram o chá em seguida.

Fátima olhava a prima com olhos injetados, enquanto sua garganta levava para dentro de seu corpo um destino que ela nem sequer imaginava. 

Quando Geise finalmente parou de debater-se, Fátima calçou um par de luvas de látex e lavou as louças do chá na cozinha, guardando tudo, e limpando suas digitais com uma flanela macia que trouxera na bolsa, queimando-a assim que chegou em casa. Antes de sair, apagou do telefone da prima os registros de chamada daquele dia. Resistiu à tentação de levar consigo o caderno de receitas, pois em breve, seria seu por direito. 

Naquela noite, Fátima deitou a cabeça no travesseiro sabendo que logo seria a mais nova proprietária do livro de receitas da família. Sendo a que mais desejava possuí-lo, além de Geise,  ela tinha certeza absoluta que a avó teria dado a ela o direito à herança, caso algo acontecesse à prima. Poderia reabrir seu negócio, e quem sabe, reconquistar seu marido. 

Alguns dias depois da morte da prima - que foi dada como ataque cardíaco - Fátima tomou conhecimento de que não era ela a escolhida pela avó. 

Passou então a fazer contas e mais contas: quantos vidrinhos daquele veneno seriam necessários para matar vinte e cinco pessoas, e quanto custariam?













4 comentários:

  1. Ana, parabéns por sua criatividade! Gostei demais do conto. A ficção não está longe da realidade, em relações familiares. Bjs.

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  2. Ana, não fica dando ideia a essa gente... Veneno!
    Isso é do tempo de Shakespeare!
    Abraço.

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