terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Série Segredos - Conto 5 - O que Ninguém Jamais Soube




A morte é sempre a melhor confidente - Ana Bailune




Bernadete fechou seu diário, dando um longo suspiro. Pousou a caneta na mesinha de cabeceira e apagou a luz. Ficou deitada no escuro, não conseguindo adormecer. Aquilo que acabara de escrever sobre um antigo acontecimento de sua vida causou-lhe uma sensação estranha, pois há muito tempo decidira não mais pensar naquilo. Ninguém jamais soubera daquele fato. As pessoas envolvidas nele já tinham morrido há muito tempo. Ela mesma, às portas da morte, aos noventa e seis anos de idade, sabia que de nada valeria ao mundo a sua confissão tardia. Mesmo assim, era como redimir-se de algo que fizera e que se alimentara de metade de sua alma. Algo que a afastou das demais pessoas, pois tinha um medo absurdo de ser descoberta, mesmo que todas as evidências jamais chegassem a ela. 

Aquela tarde mudara completamente o rumo de sua vida, levando-a àquela cama de hospital onde aguardava, sozinha, a sua hora. 

Enquanto olhava para o teto, escutando os ruídos abafados dos corredores do hospital e também aqueles que entravam sorrateiramente pelas frestas da janela- grilos que cantavam no jardim, como se fossem estrelas caídas que não conseguiam voltar para casa, motores dos carros que passavam, cortando a paz da noite ao meio e distantes latidos de cães - as imagens foram se redesenhando na sua frente, pelos dedos implacáveis da memória.

De repente, ela estava de volta àquela colina, naquela tarde gelada de Junho. Podia sentir o vento cortante sobre a pele do rosto, e também ouvir a voz de Violeta ecoando enfurecida, entrecortada pelo assovio do vento, e via seus olhos injetados de ódio, enquanto esta repetia as palavras que selariam o destino de ambas:

"Você nunca vai se casar com Peter! Ele é um homem de caráter, e tenho certeza absoluta que desmanchará o noivado, assim que souber do que tenho para contar a ele!" 

Bernadete apenas esticou o braço a fim de calar Violeta; fora um gesto impensado, repentino, sem intenções realmente maléficas. Bastou ao toque da ponta de seus dedos para que Violeta perdesse o equilíbrio e despencasse colina abaixo. Não houve gritos. Apenas um olhar apavorado e suplicante, enquanto Violeta, surpresa, mergulhava no abismo. 

Bernadete olhou em volta, e não viu ninguém. A colina estava deserta. Ela chegou na ponta do penhasco, e olhou para baixo. Viu o corpo quebrado da ex-amiga, acomodado sobre uma pedra em um ângulo estranho, beijado pelas ondas. Um pequeno córrego vermelho escorria de sua cabeça, mas era quase que imediatamente lavado pelas águas do mar. Logo, a maré subiria mais um pouco, cobrindo aquela horrenda visão com seu silêncio salgado. 

Bernadete apenas virou-se de costas e tratou de se afastar dali. Não disse nada a ninguém. O corpo de Violeta foi encontrado dias depois, já parcialmente comido pelos peixes. Supusera-se que ela havia caído do penhasco, onde costumava ir sempre a fim de pintar. Dias antes, encontraram seu cavalete, algumas tintas e uma pintura recém-começada junto ao penhasco.

Bernadete casou-se com Peter, como sempre sonhara. Porém, por culpa e  medo de ser descoberta, ela caiu  em um silêncio quase mortal, um estado de distância emocional que fez com que Peter a deixasse pouco tempo depois.  Desde então, ela tornou-se uma ermitã. Aos poucos, os amigos foram se afastando, até que ninguém mais se lembrasse dela. 

Alguns acreditavam que a causa de sua depressão profunda tivesse sido a morte repentina de Violeta, sua melhor amiga. Ninguém desconfiava do que tinha acontecido naquela tarde na colina. Ninguém sabia que, junto com Violeta, morrera um horrível segredo, algo abominável que causaria repulsa em qualquer um que o descobrisse.

A manhã chegou, e Bernadete não mais vivia. Sobre a mesinha de cabeceira de ferro branco, a enfermeira encontrou um pequeno caderno. Como não tivesse a quem entregá-lo (Bernadete não tinha parentes ou amigos e jamais recebera visitas), a enfermeira atarefada jogou-o em um saco plástico sem a menor cerimônia, descartando-o junto com o lixo hospitalar.





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