segunda-feira, 29 de agosto de 2016

FEITIÇOS DE AMOR - PARTE III





Depois que saí da casa de Dora, estava decidida a procurar Vó Duda e perguntar a ela imediatamente sobre o resto daquela história entre mamãe e Maya, mas quando cheguei em casa, mamãe nos advertiu que vovó não se sentia muito bem e que estava descansando no quarto, e que não deveríamos perturbá-la. Mamãe tinha o semblante cansado, olheiras profundas e cabelos descuidadamente amarrados com um elástico na forma de um rabo-de-cavalo mal feito. Olhei para sua pele e vi que ela estava pálida. Sem pensar duas vezes, cruzei a sala em direção a ela e abracei-a com carinho. Surpresa pelo meu gesto, ela ficou parada por alguns segundos e então me abraçou também, com força, e senti que seu corpo tremia enquanto ela chorava lágrimas há muito reprimidas. Ela disse:

-Minha querida Eleanor... me desculpe por estar fazendo vocês passarem por tudo isso...

Eu não entendi as palavras dela; afinal, a doença de vovó não era culpa de ninguém. Apenas alguns dias mais tarde, quando Tia Maya finalmente se juntaria a nós, eu descobriria do que ela estava falando naquele momento. Puxei-a em direção ao sofá, e segurando suas mãos, decidi tocar no assunto bem devagar, para não irritá-la; enquanto falava, fui testando seus limites:

-Mamãe... eu estou muito confusa, e Flora também. 

Ela não compreendeu:

-Oh, eu sei, minha filha... é muito difícil pensar na possibilidade de não termos mamãe aqui conosco um dia.

Fui cuidadosa:

-Sim, mãe, é muito difícil mesmo. Ela é quase tão nossa mãe quanto você, sempre cuida da gente. De todo mundo... mas não é só isso que está nos deixando preocupadas.

Naquele minuto, Flora entrou na sala, e quando percebeu para onde a conversa estava se encaminhando, sentou-se à mesa da sala de jantar e ficou escutando a nossa conversa, fingindo que estava ouvindo música no celular (mas eu notei que ela usava apenas um dos lados do fone de ouvido).

-Mas o que está deixando você angustiada, minha querida?

Fui mais direta daquela vez. Aprumei o corpo, e olhando-a nos olhos, soltei:

-Essa história entre você e Tia Maya. Gostaria de saber o que realmente aconteceu. Você e papai não tocam no assunto, vó Duda também não... e acho que a sua história faz parte da nossa. Eu queria – eu e Flora queríamos – saber da verdade.

Mamãe soltou minhas mãos, cruzando as suas sobre o colo. Notei que ela estava constrangida, e que tinha se fechado. Mas eu insisti:

-Mãe, você sempre nos ensinou que não devemos mentir ou esconder nada de você e do papai. Por que esconde as coisas de nós? 

Aquela observação surtiu efeito, e ela me encarou, desarmada. Levantou um pouco a voz, e chamou:

-Flora! Venha até aqui, por favor.

Eu sabia que ela ia nos contar a história toda. Lá fora começou a chover, e a sala estava acolhedora. 

Nós três estávamos sentadas juntas no sofá, mamãe no meio. Eu e Flora tínhamos virado o corpo na direção dela, que de vez em quando, parava seu relato para olhar para nós. 

-Vocês já sabem que Maya não é minha irmã, e sim, minha prima, mas que fomos criadas juntas depois que ela perdeu os pais em um acidente de carro. Éramos bem pequenas ainda. 

Nós duas concordamos com a cabeça. Eu queria que ela pulasse a parte que já conhecíamos, mas contive minha ansiedade. Ela continuou:

-Eu tinha apenas sete anos, e de repente, vi que entrava em nossa família uma outra menina, que meus pais passaram a mimar e proteger. Senti muitos ciúmes de Maya... como se ela estivesse me tomando meu lugar naquela casa. Acho que mamãe a protegia demasiadamente a fim de compensá-la pela perda dos pais, não sei... eu tive que dividir meu quarto com ela. E também alguns dos meus brinquedos. Era difícil aceitar... na escola, as minhas coleguinhas passaram a rodear Maya, talvez seguindo instruções da professora, e elas a protegiam, brincavam com ela o tempo todo e me ignoravam – pelo menos, era o que eu pensava. 

Mamãe deu uma pausa, e pelo jeito dela, percebi que ela estava revendo aqueles momentos distantes em sua mente. 

-E Maya era sempre tão... doce! Todos a adoravam. Era só ela chegar que os adultos a rodeavam, mimavam, protegiam. E eu era sempre esquecida em um canto; eu, que tinha sido sempre a queridinha de todos. Sem contar que ela era linda! Maya tinha cabelos negros e olhos verdes. Era muito mais bonita do que eu. Quando ficamos mocinhas, era difícil estar ao lado dela, pois todos os olhares se dirigiam a ela: alta, morena, cabelos negros e lisos, compridos até a cintura, olhos verdes... 

Eu e Flora nos entreolhamos, sem compreender direito, pois mamãe era e tinha sido muito bonita quando jovem. Tínhamos visto nas fotografias de família. Tia Maya era muito bonita também, mas não tanto quanto mamãe. Pensei no quanto a visão de mamãe sobre tia Maya tinha sido distorcida pelo ciúme. Não era nada fácil constatar que  a minha própria mãe tinha uma história tão pesada que nós desconhecíamos, pois ela era um ícone para as pessoas daquela vila, ajudando-as com seus chás e ervas, conselhos e cartas de tarô. Achei que deveríamos nos ater às palavras de Tia Joana, acreditando que ela mudara com o tempo, mas a perspectiva de receber tia Maya na nossa casa a deixava desesperada – o que com certeza, era sinal de que sua insegurança não tinha sido superada. Lá fora, um trovão forte ribombou, e as luzes do abajur piscaram. Flora se encolheu, aconchegando-se mais à mamãe. Ela sempre tivera medo de tempestades e raios. Mamãe confortou-a, passando um braço em volta dela, e continuou:

-Quando terminamos a escola, mamãe pensou que seria melhor se Maya fosse concluir seus estudos em uma faculdade distante; assim, teríamos tempo de amadurecer nossas desavenças... digo, minhas desavenças com ela, e quem sabe, sentiríamos saudades uma da outra. Confesso que quando ela se foi, alguns dias depois, senti falta dela... sabe, não brigávamos o tempo todo, realmente, houve momentos de paz nos quais eu, Joana, mamãe, papai e Maya íamos ao cinema, ou viajávamos para a casa de praia. A ausência dela, a sua cama vazia no quarto, o fato de não ter a quem contar as coisas que me aconteciam, fez com que eu sentisse falta dela. Foram quatro longos anos, e nas férias que ela passava em casa, nós até nos dávamos bem. Talvez porque eu soubesse que ela logo iria embora novamente, e eu voltaria a “reinar”. (ela fez um sinal de aspas com os dedos). Flora aprumou-se, e perguntou:

-Mas por que você tinha ciúmes dela? Sempre nos ensinou que ciúmes são coisa ruim...

-E são, querida... mas naqueles tempos, eu não tinha maturidade para perceber. Maya tinha perdido tantas coisas: sua casa, seus pais, sua vida. Eu não enxergava nada daquilo, apesar de mamãe e papai terem tentado conversar comigo tantas vezes. 

Naquela altura de sua narrativa, mamãe fungou e enxugou uma lágrima furtiva. Não pude me conter:

-Mas mamãe... se é assim, por que a senhora ficou tão furiosa quando Vó Duda quis trazê-la para casa?

Ela se levantou, e eu e Flora continuamos no sofá, enquanto víamos a silhueta de mamãe andando pela sala de um lado para o outro. Por trás dela, raios e relâmpagos se intercalavam, e a chuva batia pesadamente na vidraça. 

-Esta é a pior parte, meninas. Eu fiz algo terrível. Ter que encará-la novamente é como ter que encarar o que eu fiz. Nem sei por onde começar.

Flora, inadvertidamente, declarou:

-Pode pular a parte na qual você tomou o papai dela, mãe. Esta a gente já conhece.

Desferi-lhe uma cotovelada, mas era tarde demais: a “sutileza” de Flora estragara tudo. Mamãe demonstrou surpresa:

-Como vocês sabem?

Olhei para Flora, zangada, e disse:

-Explique você, Flora.

Ela enrubesceu:

-É que... a gente perguntou à Tia Joana... acabamos de vir de lá.

-E ela ... como ela se atreveu a tocar neste assunto, passando por cima de mim?

Resolvi intervir e tentar salvar a situação:

-Ora, a gente quase encostou ela na parede. Foram duas contra uma, mãe. E você e vovó não nos contam nada! A gente tinha que saber de alguma forma, tia Joana não teve culpa.

-E o que ela lhes contou?

-Ela só contou até esta parte, na qual você tinha tomado o papai de tia Maya, e disse que o resto era para você contar, se quisesse.

Mamãe suspirou aliviada, ajeitando o cabelo num gesto nervoso:

- Pelo menos isso. Acho que é tudo o que precisam saber. 

Eu e Flora protestamos ao mesmo tempo:

-Não, nada disso. Não vamos nos contentar mais com meias-verdades, mamãe. Se a senhora não contar, vamos procurar saber de outra forma. Eu vou perguntar à Tia Maya.

Ela sentou-se, as mãos nos joelhos, vencida. Lá fora, a chuva parou, dando lugar a um lindo entardecer, e víamos o sol se pondo entre nuvens coloridas. Tutti e Greco entraram correndo pela sala, pulando no sofá e ajeitando-se sobre nossas pernas. Logo, estavam ambos adormecidos. Eu e Flora ficamos acariciando suas cabeças. 

-Está bem – ela disse, após um longo silêncio. – Eu vou contar tudo.


(CONTINUA...)




2 comentários:

  1. Histórias de amor envolvendo família, são sempre muito delicadas e complicadas... O que será que fez à Maya?
    Suas histórias nos prendem e instigam nossa imaginação!
    Até o próximo... Felizes dias, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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  2. Imaginação instigada... palpitação de emoção!
    Um beijo

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