terça-feira, 4 de março de 2014

A Ilha Sem Barcos - parte II





A Ilha Sem barcos - Parte II


O almoço transcorreu com muita tranquilidade. Cecília sentou-se à mesa a convite dos seus novos hóspedes, juntamente com Nina e o casal que partiria na manhã seguinte, Mara e Luiz. Formaram um grupo animado, e quando o almoço terminou, passava das três da tarde. Lá fora estava escuro, e o vento passava cantando pelas gretas das vidraças. 

Nina olhava Cecília, como quem tenta ler em seus olhos e gestos o que a deixara tonta enquanto preparava o almoço, já que ela recusara-se a comentar. Teria sido mais uma de suas visões? Nina sabia que as visões de Cecília quase sempre concretizavam-se, embora elas se tornassem mais raras a cada dia, conforme o tempo avançava. Também lembrava-se de quando chegara ao hotel Miramar, há nove anos, e pela primeira vez, tivera a chance de constatar o quanto Cecília era sensitiva: naquela época, houve um naufrágio na costa no qual vários pescadores pereceram. Cecília tivera uma visão sobre ele, e embora houvesse tentado avisar aos pescadores, eles apenas riram de sua angústia e partiram para o mar, deixando Cecília de pé na praia, enrolada em seu xale negro, o olhar ansioso para as ondas, a mão apertando a própria garganta.

 A notícia chegou à noite. Homens com tochas andavam pela praia, entre destroços e corpos. Cecília, amparada por Nina, entre olhares preocupados e espantados de hóspedes e moradores da ilha, era consolada por Nina na cozinha do hotel com xícaras de chá quente e calmantes.

Depois daquilo, houvera outras ocasiões nas quais Cecília tivera suas visões; o mais angustiante, é que as pessoas não acreditavam nela, e o povo da vila começou a tecer comentários  a respeito dela alegando que era uma bruxa, o que fez com que se calasse sobre suas visões. Quando as tinha, tentava interferir nos acontecimentos ruins sem falar delas, mas raramente conseguia mudar o rumo dos acontecimentos.

Liana deixou escapar um leve bocejo enquanto tomavam café no salão. A lareira crepitava docemente, e apesar da conversa animada, o jovem casal passara muito tempo em viagem para chegar até Pérola. estavam visivelmente cansados, e às seis e trinta da tarde despediram-se e foram para o quarto. Mara e Luiz, o casal que partiria na manhã seguinte, também recolheu-se, pois Ian viria buscá-los na manhã seguinte bem cedo para levá-los ao continente. 

Na cama, Liana e Décio conversavam sobre o dia. 

-O que achou de Nina, Décio?
-Hum... não sei. Parece-me simpática. 
-E quanto a Cecília?
-Gosto dela. Mas ela tem um certo ar de mistério.
-Concordo.

Liana suspirou:

-Deve ser solitário, viver aqui. Quero dizer, para Nina.
-Lembre-se que o hotel ferve em época de temporada. Além disso, Nina já tem bastante idade, e os mais velhos preferem os lugares calmos e silenciosos, onde podem entregar-se às suas lembranças.

-Nossa, você está filosófico!

Ele riu, enquanto ela beijava-lhe o rosto.

-Bem, é que me parece óbvio que ela é uma velha milionária - afinal, a diária do hotel não é nada 'baratinha' - que não deve ter família, ou se tem, não se dá bem com eles. Com certeza, veio para a ilha a fim de passar seus últimos anos em paz.
-E com o que paga aqui, com certeza não deixará muita herança para ninguém... mas olhe como estamos maldosos! Discutindo sobre a vida de pessoas que nem conhecemos direito.

Eles se abraçaram.

-O que faremos amanhã, Décio? Se o tempo não melhorar e não pudermos ir à praia?
-Bem... eu tenho uma excelente sugestão: faremos o que viemos aqui para fazer.
-O dia todo?
-O dia todo!

Eles riram. Exaustos como estavam, logo adormeceram nos braços um do outro.

A noite caiu sobre o hotel silencioso. No corredor, apenas o velho carrilhão marcava as horas, entrecortando o ruído distante do mar e do tamborilar da chuva no telhado. Sombras projetavam-se nas paredes do hotel, quem sabe, espectros de tempos antigos. Em sua cama, Cecília revirava-se sem conseguir conciliar o sono. Tivera uma de suas visões, e sempre ficava muito angustiada naquelas ocasiões, principalmente quando a visão não estava clara. Ela só conseguia lembrar-se que era alguma coisa sobre os novos hóspedes. Ouvira o barulho do vento, e vira seus rostos flutuando no ar. A voz de Ian. Um grito. Ela virou-se novamente na cama. Precisava decidir o que fazer.
Não podia dizer-lhes simplesmente: "Olhem, sou uma mulher solitária que tem visões esquisitas, e vi algo sobre vocês que não sei o que significa." Teria que pensar. Quem sabe, quando a ocasião propícia se apresentasse, ela compreenderia melhor o que tinha visto?

Levantou-se da cama, e foi preparar uma xícara de chá de camomila. Ao chegar na cozinha, deparou com Nina sentada à mesa, e duas xícaras de chá quente. Ela sorriu:

-Você sempre se adianta. Como sabia que eu viria? Afinal de contas, sou eu quem tem as visões por aqui.
-Eu a conheço, Ceci. Sabia que precisava conversar. O que você sentiu?
-Não sei bem...

Cecília sentou-se, mexendo o chá com a colher, concentrada no movimento em espiral.

-Eu vi o rosto dos dois pairando no ar, em meio a muito vento. Uma grande ventania.
-Algum acidente? Mortes?...

Ela sentiu um calafrio, mas disse:

-Um acidente, talvez. Mas não haverá mortes. Posso afirmar com certeza.

Nina sorveu um gole do chá, aliviada.
-E o que você vai fazer a respeito?
-Ainda não sei...
-Ceci... se me permite uma opinião... acho que o destino de cada um é algo no qual não se deve interferir. A vida é o que é, e cada um passa pelas experiências que precisa passar.
-Mas você não acha que essas visões, esse dom que eu não sei de onde veio e que começou quando coloquei os pés nessa ilha, existem por algum motivo? Quero dizer... se eu as tenho, se elas me foram dadas, talvez por Deus, não seria para tentar prevenir acontecimentos ruins?
-Quem sabe?... Se você realmente crê que as suas visões lhe foram dadas, por que acredita que esse alguém que as deu a você não tenha ele mesmo o poder de interferir em seus próprios assuntos?
-Ora, eu sei que você é agnóstica, Nina.

Nina sorriu-lhe, estendendo a mão sobre a mesa para segurar a mão da amiga:

-Sim, é verdade. Não tenho uma religião, mas sei que o universo não é obra do acaso. Já vi muitas coisas nesses meus setenta e cinco anos para ser tão tola a ponto de acreditar que as coisas não fazem nenhum sentido. Mas quem sabe, essas visões sejam um dom seu, para que você use em seu próprio favor?

-Como assim? Eu nunca consegui ver nada sobre mim mesma.
-Talvez porque você lute muito contra elas. Deixe que venham!

Aquelas palavras bateram fundo em Cecília; era verdade. Ela lutava contra aquelas visões, ao ponto de repeli-las com todas as forças quando sentia que elas iriam chegar. Tinha medo delas. Não pelo que ela poderia ver a respeito dos outros, mas a respeito dela mesma. Desde que chegara à Pérola como proprietária do hotel, deixara para trás muitos acontecimentos tristes e pessoas das quais preferira fugir. O Arquipélago de Hidra era o seu refúgio. Ali, ninguém poderia encontrá-la. Ali, seus segredos do passado ficariam sempre adormecidos.

Olhou para a amiga, apertando-lhe a mão novamente.

-Bem, é tarde. vamos dormir.


(continua...)



4 comentários:

  1. Bom dia Ana.

    Belo conto, acredito mesmo que pessoas muito sensíveis acabam perdendo a paz por tudo o que vem a sentir, querendo com isso trancar alguns dons...
    Você foi muito clara e organizada, um belo conto, parabéns!

    Beijo, fica bem, lu.

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  2. Olá Ana! Gostei, muito boa a História. Gostaria de ler o inicio - parte I.
    Gostei! Abraços Robert Sheldon.

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  3. Li as duas partes, gostei, e estou ansiosa pela continuação.

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  4. Oi Ana, não me deixe muito tempo nessa agonia , tá? Hehehe...
    A segunda parte revela mesmo o mistério que vi nas dobras da tua escrita...
    Incrível, né? Eu sabia que havia algo a descobrir, algo pairando no ar... Mas não pensei em Cecilia, imaginei que há algo sobrenatural na ilha ou no Arquipélago. Mas vamos adiante amiga, estou curiosa até uma horas...

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