Todos os lugares e personagens e fatos deste conto são fictícios.
A Ilha Sem Barcos - Parte I
Liana e Décio, de mãos dadas, olhavam as águas borbulhantes e profundamente azuis que se agitavam em bolhas conforme o motor do barco avançava sobre elas, e após a passagem, a trilha de rastro borbulhante ia, aos poucos, reintegrando-se às ondas. Era um dia frio e caía uma chuva fina que encharcava a madeira do barco ainda mais que os respingos da água do mar. Ian, o timoneiro, vestia uma blusa de lã muito grossa de cor cinzenta que parecia ter sido feita à mão por alguma mulher e presenteada a ele em uma data especial. Seus cabelos muito loiros e longos apareciam sob o chapéu, e a água da chuva percorria os cachos em espiral e ficavam suspensas como pedrinhas de diamante nas pontas do cabelo.
Liana, ao contrário, vestia um longo sobretudo impermeável negro e muito elegante, e seus longos cabelos ruivos estavam totalmente escondidos sob a boina vermelha. Seu marido Décio (eram recém-casados em lua-de-mel) tinha os cabelos castanhos cortados rentes ao crânio, destacando o formato bem-feito de sua cabeça e a beleza máscula do seu rosto, onde descansavam um par de belos olhos verde-musgo, cuja cor era ainda mais ressaltada pelo verde-escuro de seu casaco pesado de feltro. Seu queixo quadrado e forte perdia a dureza ao desmanchar-se em um sorriso todas as vezes que Liana apontava alguma ilhota distante ou fazia alguma observação sobre a beleza desolada das nuvens enegrecidas sobre suas cabeças. Na verdade, Liana falava sem parar a fim de disfarçar seu desconforto, pois nunca gostara muito de barcos. Não pode recusar, entretanto, quando o sogro ofereceu-lhes de presente a caríssima viagem de um mês pelas Ilhas Hidra como presente de casamento - além do belo chalé decorado que os esperava quando estivessem de volta à casa.
As Ilhas Hidra eram um arquipélago de quinze pequenas ilhas no mar do Norte, famosas não apenas pelas belezas naturais de suas falésias, que transmutavam-se em cores que variavam do areia mais claro ao vermelho mais intenso conforme a luz do sol incidia sobre elas, mas também por suas florestas tropicais, spas caríssimos e culinária impecável. Não eram visitadas por turistas de classe média, pois as Ilhas Hidra eram consideradas turismo de primeira-classe. Naquela época do ano - início da primavera e portanto, fora da temporada de turismo - eram tranquilas e pouco frequentadas, o que, segundo o sogro, cairia como uma luva para uma viagem de lua-de-mel.
Liana apertou a cintura do marido, aconchegando-se mais a ele; o frio do final da manhã era intenso. Ele apertou o corpo da esposa em resposta, e retirando seu cachecol, passou-o em volta dela. Naquele momento, a voz de Ian chegou-lhes: "Vejam! É Pérola!"
Liana suspirou de alívio; Pérola era a primeira ilha do Arquipélago de Hidra. Ao desembarcarem, despediram-se de Ian - que passaria a noite na ilha e partiria de manhã, voltando dentro de três dias para levá-los à próxima ilha - e dirigiram-se ao hotel em um táxi. A chuva cessara, mas o céu pesado permanecera. O frio ainda era intenso, e o casal não via a hora de chegarem ao hotel e comerem alguma coisa quente. O motorista do táxi era um senhor simpático, aparentando sessenta e tantos anos, e após colocar as malas no carro, apresentou-se:
"Bem-vindos a Pérola! Meu nome á Pepe. É sua primeira vez na ilha?"
Liana sorriu, estendendo-lhe a mão:
"Muito prazer, Pepe. Sou Liana, e este é meu marido Décio. E...sim, é a nossa primeira vez nas Ilhas Hidra."
Enquanto apertava a mão de Décio, Pepe olhou-os por um instante e compreendeu logo que eram um jovem casal em viagem de lua-de-mel; afinal, quem iria visitar as ilhas naquele tempo gelado? Miramar, o único hotel da região, estava vazio, e além do casal recém-chegado, havia um outro que deixaria a ilha na manhã seguinte e também Nena, uma senhora idosa que morava no hotel.
Entraram no carro, e Pepe foi dirigindo devagar, aproveitando para mostrar alguns pontos interessantes da ilha - embora, infelizmente, a grande maioria das encantadoras lojinhas que vendiam produtos da região -pequenos presentes, roupas e jóias de pérolas - estivessem fechadas e só voltassem a abrir no verão.
A estradinha que levava ao Hotel Miramar era estreita e sinuosa, e as curvas, precisas e rápidas. Lá embaixo, a vista era deslumbrante, pois o mar agitado explodia suas espumas brancas pela orla deserta, e o céu de chumbo dava à paisagem um ar quase surreal. Após quinze minutos, chegaram ao Hotel e despediram-se de Pepe, que deixou-lhes um cartão caso precisassem de seus serviços. Explicou que naquela época, os motoristas de táxi iam trabalhar no continente, e apenas ele ficava na ilha.
O casal chegou à recepção e olhou em volta: Miramar era um hotel pequeno, montado em uma antiga mansão - possuía apenas dez quartos - e tinha o ar aconchegante de uma casa residencial. Amaram tudo o que viram: as paredes pintadas de creme e salmão, os lustres de cristal que pendiam do teto, as poltronas estofadas com tecidos floridos, os tapetes antigos em ótimo estado de conservação, as conchas enormes sobre o balcão da recepção, a imensa lareira onde crepitava um fogo que emitia um delicioso calor pelo cômodo.
Foram recebidos por Cecília, a proprietária, uma bela mulher aparentando cinquenta anos. Ela deu-lhes as boas-vindas e ajudou-os a levar as bagagens para o quarto, abrindo as cortinas quando eles entraram e chamando-lhes a atenção para a paisagem maravilhosa da qual desfrutariam; Liana chegou à sacada, e não pode deixar de soltar uma exclamação ao encostar o rosto no vidro: "Que lindo!" Décio juntou-se a ela, e Cecília observou-os sorrindo, lembrando-se da primeira vez que ela mesma, como hóspede daquele hotel, tivera a mesma reação, há vinte e cinco anos.
Contou-lhes sua história, como fazia sempre que recebia novos hóspedes:
-Quando cheguei a esta ilha pela primeira vez, com um grupo de amigos, eu tinha apenas vinte anos. Fiquei absolutamente encantada. Passei a vir todos os anos, e inclusive, hospedei-me aqui em minha lua-de-mel também. Mas infelizmente, fiquei viúva aos vinte e cinco anos... e ao mesmo tempo, soube que o hotel estava sendo vendido; não hesitei em comprá-lo, e desde então, passei a administrá-lo. Não é muito lucrativo, mas não consigo imaginar minha vida sem ele! Aqui eu vivi os melhores anos de minha vida...
Décio e Liana se entreolharam ao perceberem os olhos marejados de sua anfitriã. Liana dirigiu-lhe um sorriso de solidariedade:
-Que bela história!
Décio exclamou:
-Parabéns! Você tem um lugar maravilhoso aqui.
Cecília sorriu, secando uma lágrima:
-Bem... obrigada! Mas desculpem-me, eu sempre falo demais... acredito que desejem descansar antes do almoço. Vou deixá-los em paz. Gostaria de dizer que qualquer coisa que precisarem, podem chamar-me na recepção, os números estão sobre a cabeceira. Nesta época, dispenso quase todos os funcionários, e ficamos apenas eu e uma camareira. Portanto, provarão do meu tempero! Espero que gostem.
-E o que teremos para o almoço, Cecília? - perguntou Décio.
Ela ergueu a cabeça, e com orgulho, anunciou:
-Vocês comerão a melhor mariscada de suas vidas, acompanhada de salada de camarão, arroz e vinho branco.
Liana sentiu sua boca aguar.
Quando ficaram a sós, Liana começou a encher a banheira, e utilizando-se dos sais e espumas que encontrou no banheiro, preparou-lhes um excelente banho quente, onde permaneceram mergulhados pela próxima hora e meia.
Enquanto isso, na cozinha, Cecília dedicava-se à preparação do almoço com esmero, enquanto cantarolava uma velha canção da ilha. Picava os temperos: coentro, cebolas, alho. Olhava o cozimento dos mariscos e camarões, com cuidado para que não passassem do ponto, e jogava um pouco mais de água de coco no molho. O vapor do fogão deixava as vidraças da cozinha embaçadas, e um aroma delicioso espalhava-se pelo corredor.
Percebeu uma presença atrás de si e deu com Nina, a velha moradora do hotel. As duas se entreolharam. Nina segurava sua belíssima bengala com cabo de madrepérola, na qual sequer se apoiava, carregando-a consigo apenas pelo charme impactante que ela causava aos observadores. Tinha os cabelos cuidadosamente arrumados em um coque.
-Bom dia, Cecília. Novos hóspedes, não?
-Olá, Nina, Sim, acabaram de chegar. É sua primeira vez na ilha.
Nina largou a bengala em um canto da parede, e pôs-se a pegar pratos e copos no armário, e a levá-los para a sala de jantar do hotel. Ambas já se conheciam há muitos anos, e eram muito amigas. Era comum que Nina ajudasse Cecília fora da temporada, quando esta estava sozinha na cozinha.
-E que tal eles são? Mais um casal em lua-de-mel?
-Sim, Nina. Parecem simpáticos! O rapaz é um príncipe. Acho que nunca vi um homem tão bonito...
Nina cutucou-a, brincando:
-Controle-se, sua velha assanhada! Além do mais, ele é casado!
As duas riram:
-E com uma moça lindíssima. Seus nomes são Décio e Liana. Você vai gostar deles!
-E quanto tempo vão ficar?
-Bem, eles tem reserva para dois dias. Pretendem conhecer as outras ilhas, suponho.
-Apenas dois dias? Hum... mal... esta época é sempre difícil para o hotel. Qualquer um já teria fechado as portas... se não fosse por mim, você já estaria falida!
-Eu jamais fecharei as portas, Nina.
-Eu sei. É por isso que eu ainda estou aqui. Para onde mais eu iria? Algum asilo de velhos?
Cecília riu alto, enquanto escorria a água dos camarões, arrumando-os na travessa:
-Ora, você sabe muito bem que eu a levaria comigo aonde eu fosse. Pare de fazer-se de vítima.
Naquele instante, Cecília teve uma súbita tontura, e segurou-se na beirada da mesa. Nina caminhou até ela, olhando-a com preocupação:
-O que aconteceu, Ceci?... Você está bem?
Cecília não escutou a voz da amiga. Diante de seus olhos, descortinava-se uma paisagem diferente... uma paisagem que ela não desejava ver.
Hummm, gostei muito do que li por aqui, viu dona Ana , rsrs...
ResponderExcluirApreciei o modo como descreveu personagens e ambientes com riqueza de detalhes, deixando a imaginação do leitor voar... Ah, como gosto disso.
A história está muito interessante, porém há alguma coisa no ar... Algo misterioso, ainda escondido sob as dobras da tua escrita tão bem delineada.
Você deu um início fantástico à narrativa... Vamos ao cap. II... estou ansiosa e curiosa.