DOM OU MALDIÇÃO: E SE VOCÊ PUDESSE ENXERGAR A VERDADEIRA COR DOS SORRISOS DAS PESSOAS? SE FOSSE POSSÍVEL PERCEBER COM CLAREZA TODAS AS MENTIRAS QUE OS OUTROS CONTAM, COMO SERIA A SUA VIDA?
Desde muito pequeno, quando
começou a falar, João percebia coisas estranhas que ele não sabia explicar.
Notaram isto pela primeira vez enquanto a mãe ensinava-o a reconhecer as cores.
Ela pegou uma fotografia em um livro de histórias, e mostrando a ele os
desenhos pintados de árvores, princesas, animais e flores, ia apontando e
dizendo: “Azul.” O menininho olhava curioso, e repetia: “Azul.” João aprendia
rápido, e jamais esquecia. Os pais muito orgulhavam-se dele, pois falava
fluentemente com apenas um ano e meio, e de forma tão eloquente, que
surpreendia até mesmo ao pediatra que o assistia. Pronunciava corretamente as
palavras, distinguindo gênero, número e grau com perfeição. Também não fazia as
confusões normais que as crianças pequenas faziam ao utilizar os verbos; sabia
muito bem a diferença entre passado, presente e futuro.
João gostava muito de animais e
plantas. Passava horas brincando no jardim de sua casa, entretido com a
variedade de flores, perfumes, texturas e cores. Era gentil, e sempre tratava
bem os animais. Apesar de muito pequeno, ele sabia, de alguma forma, que eles
sentiam dor e outras emoções ‘humanas,’ como medo, tristeza, alegria e amor.
João entendia muito bem de emoções. Quando via alguém triste perto dele, ele parava
de brincar e ficava olhando para a pessoa, e então, se aproximava , sentava-se
ao lado dela e a consolava com carícias; certas vezes, se a tristeza fosse
forte demais, ele chorava. As lágrimas iam nascendo e rolando de seu pequeno
rosto, sem que ele conseguisse controlá-las.
Já ia esquecendo de mencionar;
quando nasceu, João já tinha dois irmãos: Tatiana, de cinco anos, uma menina
doce, esperta e bonita, que às vezes, tinha ataques de sonambulismo, e Pedro,
de sete anos, um garoto arteiro, o espevitado, como seu pai costumava chamá-lo.
O nascimento de João causou muito ciúme entre os irmãos, que se viram privados
da total atenção e dedicação de seus pais. Era difícil, para eles, lidar com as
reações exageradas e pirraças de seus filhos mais velhos. Por mais que
tentassem demonstrar que amavam igualmente a todos, os pais sempre os viam
enciumados e ranhetas em relação ao irmãozinho recém-nascido. Com o tempo,
Tatiana conseguiu vencer um pouco o ciúme, abrindo-se à chegada de João de
forma mais positiva, mas Pedro continuou guardando muitas reservas quando ao
irmão. Recusava-se a emprestar-lhe os brinquedos, e gostava de colocar seus
amigos contra o irmão mais novo. O grupinho de meninos se juntava e causava
muitos constrangimentos a João, que pequenino, não entendia que estava sendo
ridicularizado ao desfilar entre os meninos usando os vestidos da irmã; ele via
os garotos rindo, e gostava de agradá-los. Mas quando a mãe pegava Pedro
submetendo o irmão, ainda quase um bebê, àquelas sessões de bullying, ela o repreendia
e colocava de castigo, o que só servia para causar ainda mais ressentimentos em
Pedro. João passava pelo irmão sentado no corredor, rosto virado contra a
parede, e não entendia por que ele o olhava daquela maneira esquisita.
Bem, mas como já foi explicado
mais acima, algo estranho aconteceu enquanto a mãe ensinava João a reconhecer
as cores; de repente, ele olhou a mãe, perguntando:
-Mamãe, por que algumas pessoas
tem os dentes pretos e outras tem os dentes brancos quando tiram fotos?
A mãe ficou sem fala; não
entendeu a pergunta, e apenas sorriu, explicando que todas as pessoas tinham os
dentes praticamente brancos; algumas os tinham um pouco amarelados, mas dentes
eram geralmente brancos. Então, João correu até a estante, aonde havia uma
fotografia de família, tirada em uma festa de casamento, e mostrando-a à mãe,
foi apontando as pessoas cujos dentes eram negros. A mãe percebeu que as
pessoas que João apontava eram consideradas como as mais difíceis da família do
marido: Tio Jorge, um senhor autoritário, sempre preocupado em como ganhar e
jamais perder dinheiro; Tia Margarete, uma mulher bonita, cínica e extremamente
vaidosa, esposa de Tio Jorge, que adorava fofocar sobre a vida alheia e
aproveitar todas as oportunidades possíveis para sair em colunas sociais.
Joana, uma prima viciada em sexo, que apesar de casada, tinha vários amantes.
Todos sabiam, a não ser Teo, o marido – também apontado por João como alguém
que tinha dentes pretos: Teo era viciado em jogo e bebida, e quase dilapidara a
fortuna da família.
Enquanto o menino apontava as
pessoas que enxergava como tendo dentes pretos, a mãe ia ficando cada vez mais
constrangida. Então, ele apontou as pessoas de dentes brancos, normais: os
avós, alguns primos. Aquela fotografia era da família do marido, e como sua
família não estivesse na foto, Joana sentiu-se curiosa para saber quem, entre
eles, teria dentes pretos. Ao mesmo tempo, achou melhor não perguntar, pois não
queria causar ainda mais confusão na cabeça do menino.
Aquele episódio terminou com a
mãe zangada dizendo ao menino: “Jamais aponte pessoas com dentes pretos em
fotografias, OK, filho? É muito feio! Se você fizer isso de novo, eu o
colocarei de castigo!” João assentiu com a cabeça, os olhinhos arregalados e
cheios de lágrimas.
Os anos se passaram, e os irmãos
cresceram. Na escola, João era brilhante, enquanto Pedro só causava problemas.
Tatiana tornou-se uma beldade, e todos os garotos queriam namorá-la, e João
sabia quais deles tinham intenções sinceras a respeito da irmã, pois ele via
uma pequena fumaça negra saindo do alto da cabeça das pessoas quando elas
mentiam. A irmã ainda sofria de sonambulismo, e um dia, acordou no jardim da
casa, à beira da piscina. Depois daquele perigoso episódio, os pais colocaram
um alarme na porta do quarto da mocinha. Era sempre Pedro que ia acudi-la
quando o alarme soava. Com o tempo, estas ocasiões foram ficando mais e mais
raras.
Aos poucos, João foi aprendendo a
entender os sinais que sempre estiveram com ele ao longo de sua vida,
conseguindo estabelecer um padrão sobre seus significados. Por exemplo: as
pessoas de dentes negros em fotografias, eram pessoas sem caráter, que
ambiciosas, não se importavam com nada nem ninguém, a não ser elas mesmas;
quando mentiam, as pessoas emitiam, aos
olhos de João, uma fumacinha negra saindo do topo de suas cabeças; quando João
assistia ao noticiário na TV, percebia que alguns políticos e criminosos
tinham, ao mesmo tempo, os dentes negros, a fumaça negra e também olhos
vermelhos – sinal que ele aprendeu a interpretar como extrema crueldade. As
pessoas circundadas por uma aura cor de rosa eram extremamente vaidosas e
superficiais, mas geralmente, inofensivas (algumas das amigas de sua irmã eram
assim).
Assim, quando João queria saber
mais a respeito de alguma pessoa, ele as fotografava ou filmava. E as pessoas,
quase sempre vaidosas, adoravam deixar-se ser fotografadas e filmadas –
principalmente quando ele dizia que era para postar na rede social.
Infelizmente, era com muita
tristeza que João via, em várias ocasiões, a fumaça negra saindo do topo da
cabeça de seu irmão; principalmente quando ele pedia dinheiro ao pai para sair
com os amigos, e prometia que não estava mais usando drogas. A maioria dos
amigos do irmão também tinham fumaças negras, dentes negros e alguns, olhos
vermelhos.
Mas havia também, em raríssimas
ocasiões, pessoas com auras azuis; quando as encontrava, João sabia que estava
diante de seres de muita bondade, pessoas verdadeiras e altruístas, desprovidas
de maldade, arrogância ou vaidade extrema. Mas estas ocasiões eram bem raras.
Geralmente, pessoas assim estavam envolvidas com trabalhos de caridade
(caridade sincera e não alardeada como meio de autopromoção) e ajudavam muitas
pessoas a livrarem-se de suas fumaças e dentes pretos. Não guardavam ressentimentos,
não mentiam e nem ambicionavam acumular coisas materiais. E João sabia que
muitas das pessoas que se diziam caridosas e altruístas, comandando ONGS e
relacionando-se com Associações protetoras do meio-ambiente e vida animal, mentiam e tinham outros
propósitos.
A maioria das pessoas, eram
neutras; João não via nada especial emanando delas, a não ser quando mentiam (a
fumaça negra). Nesta classificação, estavam também , às vezes, seus pais e sua irmã
Tatiana.
Certa vez, quando sua irmã tinha
vinte anos, e João, quinze, ela chegou em casa radiante; era um almoço de
domingo. Estava acompanhada de um belíssimo jovem, que apresentou como seu
namorado. Ele estava se formando em Direito, tinha porte atlético, participava de clubes
locais como atleta (jogava tênis e tinha ganho alguns campeonatos estaduais no
passado) e pertencia à família rica e tradicional. O sonho de todas as sogras.
Sua mãe e seu pai não cansavam de paparicá-lo de todas as formas, enquanto
Pedro o tratava com cordial indiferença e Tatiana derretia-se toda ao olhar
para ele. Mas desde que pusera os olhos nele, João tivera péssimas impressões:
ele tinha a fumaça negra constantemente emanando de sua cabeça altiva; seu
olhar orgulhoso às vezes mostrava sinais de riscos finos e vermelhos na íris,
que apareciam como raios promissores (antes de conhecer César, João só
conseguia ver tais raios vermelhos em fotos e filmes); e ao examinar algumas
fotografias de um passeio em que os dois (ele e a irmã) mostraram, João viu os
dentes mais negros e brilhantes que já tivera a chance de enxergar!
João permaneceu calado durante
todo o jantar. Não conseguiu evitar seu desconforto na presença daquele rapaz
simpático, bonito e inteligente, que aos olhos dos outros, emanava brilho e
virtude. Quando o jantar terminou, João procurou a mãe, e tentou, em
particular, falar-lhe de suas impressões; a mãe o repeliu com energia,
afirmando que ele estaria apenas com ciúmes da irmã, o que era normal. César –
o rapaz em questão – era a pessoa mais adorável que ela já conhecera, e além disso,
de boa família. Enquanto ela falava, uma aura cor de rosa formava-se em volta
de sua cabeça.
O tempo passava, e logo os dois
ficaram noivos. João desesperava-se ao ver o casal, e desejava contar à irmã
(que já se aborrecera e brigara com ele pela maneira como João tratava seu
noivo) que César era a pessoa errada para ela. Mas a mãe o fez prometer várias
vezes que não ‘estragaria’ a vida da irmã com suspeitas infundadas; afinal, o
que eram impressões e intuições em um mundo concreto? A mãe, sendo a única que
sabia das intuições do filho e o proibira de falar delas com mais alguém,
temendo que considerassem seu filho ‘esquisito’, achava que com o tempo, elas
desapareceriam. Por isso, não mereciam a menor atenção.
Um dia, durante um almoço familiar
de sábado, a mãe, rodeada por uma aura rosa choque, mencionou que o pai estava
envolvido em um importante projeto na empresa; tão importante, que estava
trabalhando duro para vê-lo realizado, fazendo serões todas as noites. Rindo,
ela contou a César que às vezes, o marido chegava após a meia-noite, e
voltando-se para o marido pediu confirmação, toda coquete: “Não é verdade,
querido?” Naquele momento, enquanto o pai respondia “Sim”, dando alguns
detalhes superficiais e logo desconversando, João viu sair do topo de sua
cabeça uma negra fumaça. Ao mesmo tempo, César emanou um raio vermelho
brilhante de sua íris. Na mesma hora, o rapaz sentiu câimbras no estômago e
pediu licença para deixar a mesa.
Sentou-se em sua cama,
rememorando o local aonde acabara de estar: a mãe e a irmã, rodeadas de um rosa
choque nauseabundo, teciam elogios a César – que emanava fumaça preta enquanto
contava vantagens; o irmão, emagrecido, cheio de olheiras e um tanto taciturno,
também soltava faíscas vermelhas ocasionalmente ao olhar para as pessoas à
mesa; o pai – a pessoa que João mais amava – estava mentindo para sua mãe.
O dia passou, e João permaneceu
em seu quarto com a desculpa de que não estava se sentindo muito bem. Quando
César foi embora e seu irmão saiu para mais uma de suas noitadas, seguido por
um rastro de fumaça negra e prometendo que não estava mais usando drogas – o
rapaz esperou a mãe ir para a cama, e então, aproximou-se do pai:
-Pai, você mentiu para a mamãe.
Por que?
O pai parou de ler o jornal,
olhando para João, desconcertado:
-Não sei do que está falando, meu
filho. Pode explicar melhor? (João viu a fumaça negra se formando no topo da
cabeça do pai)
-Hoje, à mesa, você mentiu. Não
existe projeto nenhum, certo? Pai, você tem uma outra mulher?...
-O pai jogou o jornal sobre a
mesinha, e tirou os óculos, exclamando:
-Quem você pensa que é para me
fazer esse tipo de pergunta, João? Acha que eu lhe dou o direito de meter-se na
minha vida?
-Mas eu também estou em sua vida,
pai, e esta é a minha família! Por que?... Eu... só queria entender! Você vai
deixar a mamãe? Você... vai nos deixar?
O pai levantou-se, zangado, e
caminhando na direção do quarto, esbravejou:
-Nunca mais diga besteiras,
menino. Não ponha minhocas na cabeça de sua mãe. E não quero mais ouvir você
falar desse assunto!
João escutou a porta do quarto
bater e os pais conversando em voz baixa; depois viu, pela fresta da porta, a
luz apagar-se. Depois daquele episódio, o pai passou a evitar João, o que muito
o entristeceu. Chegava em casa cada vez mais tarde, e João percebia a tristeza
nos olhos da mãe – que continuava fingindo que tudo estava muito bem.
Um João infeliz teve que
assistir, meses depois, o casamento de sua irmã com o desclassificado do César.
Na igreja, percebeu que várias pessoas da família de César tinham as mesmas
características que ele. O ar durante a recepção era quase irrespirável.
Quando a irmã voltou da lua de
mel, querendo mostrar o pendrive com as fotografias e filminhos, João deu um
jeito de sair de casa. Não suportaria ver as verdadeiras cores daquela festa.
Tatiana ficou muito magoada, e César, fingindo bondade, disse a todos que
adolescentes eram assim mesmo, e que ele também já tinha vivido aquela fase de
ciúmes da irmã. Ela sorriu, abraçando-o. Mas César não suportava João e Pedro,
e apenas tolerava os pais de sua esposa. Quanto a ela, César sentia desejo e
posse, além de interesse na empresa do sogro, embora repetisse a todo momento o
quanto a amava.
O tempo quase trouxe à tona a verdade a
respeito de César; um dia, meses depois do casamento, a mãe telefonou à filha,
que já não aparecia para visitar ou dava notícias há alguns dias. Ela fingiu
estar muito ocupada na arrumação de sua nova casa, mas a mãe sabia que tudo já
tinha sido organizado antes mesmo do casamento, e que Tatiana dispunha de duas
empregadas domésticas. A mãe também notou a falsa alegria no tom de voz da
filha. Assim, decidiu fazer-lhe uma visita surpresa, chamando João para
acompanhá-la. Ele já sabia da verdade sobre o casamento da irmã, mas sempre que
tentava tocar no assunto, a mãe o repreendia.
Lá chegando, uma das empregadas-
uma senhora altiva e formal, que João detestou imediatamente - atendeu à porta
e perguntou se eles tinham hora marcada. João surpreendeu-se ao ver a mãe
enfrentá-la:
-Quem você pensa que é para me fazer
essa pergunta? Eu sou a mãe dela, e
você, uma simples empregada. Exijo que vá chamar Tatiana.
A mulher ainda tentou barrar-lhes
a entrada, dizendo que tinha ordens do patrão para não admitir ‘estranhos’ sem
hora marcada na casa, mas a mãe a empurrou com energia, dizendo que se ela não
fosse chamar Tatiana imediatamente, ela mesma iria procurá-la. A empregada
bufou de indignação, e subiu as escadas pisando pesadamente.
Mãe e filho ficaram de pé no
imponente hall de entrada (a empregada nem sequer os conduziu até a sala de
estar). Quase meia hora se passou até que a empregada retornasse, e de má
vontade, indicasse o sofá da sala, grunhindo que “Madame Tatiana já iria
recebê-los.” Mãe e filho esperaram, até que Tatiana surgiu à porta. Ambos
perceberam que ela tinha emagrecido um pouco, e estava pálida. Apesar do calor,
usava um vestido de mangas compridas, que a deixava muitos anos mais velha. Ela
demonstrou uma alegria forçada e coquete enquanto conversava com mãe e irmão,
afirmando que nunca tinha sido tão feliz na vida. Mas ambos perceberam que
havia muitas coisas erradas por ali.
João dirigiu-se à irmã,
perguntando o motivo de ela estar usando um vestido como aquela em um dia de
verão, e ela dissera que tinha sido um presente da sogra, e que gostava de
agradar o marido. Inesperadamente, ele pulou sobre a irmã, erguendo a manga do
vestido e mostrando marcas roxas em seu braço. Ela tentou negar, dizendo que
tinha adquirido as tais marcas enquanto varria sob a cama, mas ninguém
acreditou. Enquanto isso, rolos de fumaça negra emanavam de sua cabeça.
A mãe, indignada, disse que ela
deveria fazer as malas imediatamente, e que a levaria de volta para casa. João sentia na pele o medo e a angústia da
irmã. Tatiana respondeu:
-Eu não posso, quero dizer, não quero
ir, mãe. Estou bem, não se preocupe. É que César às vezes fica um pouco
nervoso, mas a culpa foi toda minha. Eu o desafiei... eu o irritei demais...
ele me trata muito bem, é um bom homem. Nada me falta...
-Tatiana, esta mulher mais parece
uma carcereira! Não queria nos deixar entrar na casa.
-Ela apenas não os conhece, mãe.
-Eu disse a ela que sou sua mãe!
Tatiana suspirou fundo, e sorriu,
tentando relaxar:
-Dora às vezes é muito
superprotetora... mas ela me trata muito bem.
João não resistiu, gritando com a
irmã:
-Você está mentindo! Por que?
Naquele instante, pela janela
aberta entrou um enorme besouro negro, de aparência ameaçadora e enormes antenas,
e começou a sobrevoar a sala indo pousar próximo à Tatiana. O animal era quase
tão grande quando um punho, e Tatiana deu um gritinho, o que fez com que Dora,
a empregada, entrasse na sala. Mãe e filho perceberam que ela estivera ouvindo
a conversa deles o tempo todo, tal a rapidez com que entrou. Tatiana mandou que
ela pegasse uma vassoura e colocasse o animal para fora. Mas João ficou com os
olhos presos no inseto, sentindo coisas terríveis... olhou para a irmã,
aproveitando a saída de Dora, e disse, desesperado:
-Tati, vamos sair por aquela
porta agora! Já! Deixe suas coisas aí, a gente compra tudo outra vez...
Tatiana levou uma das mãos à
garganta, mas nada disse. Os três se entreolhavam na sala silenciosa, e João
percebeu o desespero da irmã e a sua hesitação. O besouro soltou um ruído
horroroso, que fez com que arrepios percorressem o corpo de João. Ele se pôs de
pé, insistindo para que fossem embora. Sabia que já tinha conseguido convencer
a irmã. Ela segurou a mão dele, mas naquele momento, Dora voltou com a
vassoura, e César entrou na sala. Todos ficaram surpresos com a presença dele
àquela hora em casa, e João concluiu que Dora o tinha avisado. Tatiana olhou
para ele transida de pavor. O olhar que César dirigiu a ela estava cheio de
raios vermelhos. O besouro voou para fora antes que a vassourada de Dora o
atingisse.
César permaneceu olhando os visitantes
por alguns segundos, e de repente, sua face carrancuda abriu-se no mais lindo
sorriso, e ele estreitou a sogra nos braços, dando-lhe as boas vindas, mas
ignorou João. Convidou-os a sentar-se novamente com um gesto. Tatiana estava
muito tensa. João percebeu a troca de olhares entre César e Dora, e ela deixou
a sala, voltando com uma bandeja de chá gelado. A atmosfera era muito tensa, e
um ar de falsidade pairava sobre César. João começou a sentir as terríveis
câimbras no estômago.
A conversa tornou-se amena,
habilidosamente conduzida por César e seu ar sedutor e conciliador. A mãe tinha
quase relaxado, mas ainda mostrava as sobrancelhas franzidas. De repente, César
levou as mãos aos olhos, enxugando algumas lágrimas, e murmurando
repetidamente:
-Me desculpem, me desculpem, o
que eu fiz foi... foi terrível... jamais voltará a acontecer...
Todos se entreolharam. João
percebeu que além de negra, a fumaça que saía da cabeça de César tinha um fedor
nauseabundo. Ele nunca antes sentira cheiros acompanhando suas visões. Viu que a mãe olhava seu odiado
cunhado com um olhar confuso. Tatiana aproximou-se de César, abraçando-o, e
dizendo: “Está tudo bem, querido...” mas ele olhou-a nos olhos, e voltou a
secar algumas lágrimas com um lenço que tirou do bolso. Foi sentar-se perto da
sogra, e segurando suas mãos, confessou que tinha, sem querer, ferido Tatiana.
Disse amá-la demasiadamente, e sentir muitos ciúmes. Pedia perdão pelo seu ato
abominável: ele a segurara com força demais durante uma pequena discussão, e
ele nem percebeu que a estava ferindo. Mãe e filha passaram a consolar o algoz,
enquanto João tentou acalmar suas câimbras estomacais com um gole de chá
gelado. Sabia que a batalha estava perdida, e que se ele tentasse tirar Tatiana
daquela casa naquele momento, todos estariam contra ele.
Após servido um delicioso lanche
(Dora fingindo simpatia e solicitude daquela vez) mãe e filho deixaram a casa,
sendo conduzidos à porta pelo ‘feliz’ casal. João sentia uma amargura
inexplicável no peito, e ao olhar para trás após despedir-se, procurando no
rosto da irmã algo que justificasse seu sentimento, viu apenas um rosto feliz e
um olhar tranquilo. Ela abraçava a cintura do marido, que acariciava seus
cabelos. Engolindo em seco, João ainda tentou, a caminho de casa, convencer a
mãe de que algo estava errado, mas ela mais uma vez não acreditou nele, dizendo
que casais às vezes brigam, mas que César fora muito honesto confessando seu
erro e pedindo desculpas.
Três dias depois, o telefone
tocou às duas e trinta e cinco da manhã, despertando a família. Era César, aos
prantos. Tatiana havia caído e rolado as escadas. Ele mal falava coisa com
coisa, mencionando um dos ataques de sonambulismo da esposa. Sua fala,
entrecortada por soluções, deixava o pai, que atendera o telefone, ainda mais nervoso. Apenas João, que
via a fumaça negra saindo do bocal do aparelho de telefone, sabia a verdade:
César tentara matar sua irmã!
Ao chegarem ao hospital, a
família descobriu que o estado de Tatiana era gravíssimo. César, de olhos
vermelhos, andava de um lado ao outro do corredor, sempre consolado por seus
pais. Contou que chegara tarde em casa, após visitar os pais e participar de um
jogo de gamão com eles, e encontrara Tatiana caída nos degraus da escadaria que
conduzia ao segundo andar. Disse que Tatiana mencionara ter sofrido de sonambulismo
na infância, mas que ela mesma havia dito que os ataques cessaram há anos.
Tatiana morreu naquela mesma
noite. Apenas João sabia da verdade, mas concluiu que de nada adiantaria fazer
acusações sem provas. Foi aberto inquérito policial, e como César tinha um
álibi forte, confirmado por seus pais e por sua empregada Dora, e sendo a
família rica, importante e com excelentes advogados, a história terminou ali.
João não contava sequer com o apoio da mãe, a única que sabia sobre seus
pressentimentos e visões.
Uma semana após o funeral, César
e seus pais apareceram para uma visita.
Foram muito bem recebidos pela
família – até Pedro estava comovido com a presença deles. Principalmente depois
que César entregou-lhes alguns objetos da esposa falecida, contando histórias
sobre os momentos felizes nos quais tinham sido adquiridos. Dizia que achava
importante que a família os guardasse, como prova do imenso amor que ele nutria
por Tatiana.
Somente João percebia a aura de
fumaça negra que rodeava aquelas três pessoas, a falsidade explícita em seus
olhos. Foi quando de repente, ele viu que a aparência física daqueles três ia
se modificando diante de seus olhos, a fumaça negra sendo intensificada e
emitindo um cheiro de cadáveres em decomposição, enquanto a pele deles adquiria
um tom cinzento e os olhos vermelhos e os dentes negros davam-lhes aparência de
demônios. João piscou os olhos com força, sentindo seu estômago contrair-se de
dor. Não pode evitar erguer-se, interrompendo a conversa, gritando:
“Assassinos!” E depois daquilo, deixando a sala.
Atrás de si, o silêncio, seguido
de murmúrios de desculpas. Logo depois, enquanto estava sentado em sua cama,
chorando muito, sentiu a mão forte e pesada de César como garras em seu ombro
direito. Quando ele o tocou, João sentiu-se muito nauseado, e as câimbras
estomacais se intensificaram, obrigando-o a permanecer sentado e encurvado. Mas
ele conseguiu resistir ao desmaio que tentava nocauteá-lo. César, com voz
complacente, murmurou:
-Eu o desculpo, João. Sei que
deve estar sendo muito difícil para você.
Sem olhar para ele, João
respondeu:
-Pare de fingir, César. Só
estamos nós dois aqui.
-Não estou entendendo o que você
quer dizer, João; aliás, estou, mas fingirei que não, pois sei que você está
muito emocionado, e quando estamos emocionados, podemos dizer ou fazer coisas
das quais nos arrependemos mais tarde.
-Sim, eu sei. Inclusive,
assassinar pessoas. Você matou Tatiana, empurrando-a daquela escadaria. Eu sei.
Eu sei!
Retirando a mão do ombro de João
– o que deu ao jovem um grande alivio – César respondeu:
-Você sabe, cunhadinho? E como é que você vai provar? Você tem um nome
apropriado: João! João-ninguém. Eu tenho um álibi confirmado por três pessoas.
E você, o que tem? Nada! Apenas suspeitas infundadas. Apenas... ‘sentimentos...’
você acha que é apenas a sua mamãezinha interesseira que sabe sobre as suas
maluquices? Tatiana também sabia, e contou-me tudo. Todo mundo sabe que você
não passa de um esquisito, um desequilibrado emocional que não tem amigos e vê
pessoas com dentes negros, fumaças pretas e olhos vermelhos. E o que mais, seu retardado mental?
Tentando controlar-se, pois não
sabia que a mãe tinha traído seu segredo, João virou-se para César, deparando
com seu rosto de demônio. Engoliu o grito que chegou-lhe à garganta ao olhar
para ele e deparar com sua verdadeira aparência – a de sua alma imunda, e
esforçou-se para lembrar-se que César nada poderia contra ele naquele momento.
Tentando colocar frieza na voz, João continuou a conversa:
-Eu sei que você matou minha
irmã, seu assassino. Você não passa de um filho da puta.
César respirou fundo, e João
percebeu as ondas de cinismo que transfiguravam-lhe a face. Assassinos gostam
de falar sobre seus crimes, pois sentem um prazer mórbido em revelar suas
técnicas quando sabem que não serão descobertos.
-É verdade, meu amiguinho. Eu
matei sua irmã. Empurrei-a daquela escada porque ela não passava de uma
vagabundazinha de terceira classe que só queria saber de bater pernas na rua e
gastar o meu dinheiro. Imagine que naquela noite, eu tinha contratado algumas
prostitutas para me divertir um pouco no quarto de hóspedes, porque sua irmã
frígida não me dava mais nenhum prazer, e ela teve a ousadia de invadir minha
privacidade e expulsar minhas amigas! Sem contar as vezes em que ela me enchia
o saco quando eu chegava tarde em casa das minhas noitadas. Ora, eu lhe dava
tudo! Ela tinha uma casa confortável, dinheiro, joias, roupas. Eu precisava
apenas de alguém que marcasse presença ao meu lado nas reuniões da sociedade,
pois isto abriria portas para meus negócios. E a vadia da sua irmã não servia
nem para isso. Foram oito meses de tortura ao lado dela, pois logo após as
primeiras semanas de casamento, ela colocou as garras de fora com aquele papo
de “Você não me beija mais e sempre chega tarde em casa.” Eu não aturo esse
tipo de coisa.
João via o rosto do ex-cunhado
transfigurar-se em imagens cada vez mais temíveis. Ele era capaz de ver os
fatos que César narrava, desta vez, sem fumaças negras – pois ele estava
dizendo a verdade. Mas seus olhos estavam cada vez mais injetados e vermelhos,
a pele, cinzenta, e seu hálito, fétido. Seu riso negro e brilhante, de dentes
pontiagudos e terríveis, era o que mais causava-lhe pavor, mas João consegui
controlar-se.
-Você é um canalha sórdido,
César, e seus pais também são. Vocês nunca me enganaram! Vocês são pessoas
podres, mereciam estar atrás das grades, seu... seu...
César soltou uma risada, tapando
a boca com as mãos.
-Cuidado, cunhadinho, ou o
próximo será você. Adoraria mandar uma companhia para sua irmã, que,
coitadinha, deve estar se sentindo tão só no inferno... tsc... tsc... agora eu
vou lá para baixo; já fiz o social. Daqui a algum tempo, casarei com alguém que
saiba merecer a minha generosidade. E você, vai acabar em um manicômio.
-Você está me ameaçando de morte?
Você disse que eu poderei ser o próximo, é isso mesmo?
-Sim. Não leve como nada pessoal,
caro cunhado. É só um aviso. Suma da minha vida, e mantenha sua boca fechada, e
ficará tudo bem, ou então, daremos cabo de você, do seu irmão drogado e depois,
do papai e da mamãe.
Dizendo aquilo, César saiu do
quarto.
João respirava pesadamente, pois
tentava encontrar algum oxigênio no quarto. Correu até as janelas,
escancarando-as, e pode ver os três deixarem a casa. Antes de entrar no carro,
eles se voltaram e olharam para João.
Depois, quando o carro se foi,
João foi até a prateleira e pegou a câmera de vídeo que deixara ligada o tempo
todo, e apertando ‘play’, reviu toda a conversa entre ele e o cunhado. Era uma
confissão de assassinato, seguida de ameaças que ele prontamente mostrou aos
pais e ao irmão.
Com aquelas provas, eles
conseguiram levar o caso à julgamento e colocar César atrás das grades.
Seis anos se passaram. Aos vinte
e um anos, João sabia que o pai ainda estava com a outra mulher, com quem agora
tinha um filho. Sua mãe desconfiava, mas não queria saber a verdade, pois não
estava a fim de destruir as aparências de lar feliz e família unida que, mesmo
após a morte da filha, ela tentava mostrar aos outros. Muito menos, perder as
vantagens financeiras e o status que estar casada com um grande empresário lhe
proporcionava. Seu irmão Pedro finalmente deixara as drogas, dedicando-se aos
estudos e conseguindo um emprego. A morte da irmã tivera um forte impacto sobre
ele.
Cada um estava vivendo da maneira
como conseguia e sabia. Mas apesar de tudo, João ainda via sorrisos negros –
não apenas em fotografias, mas em situações reais, e aquilo era insuportável
para ele. Também visualizava fumaça negra emanando das pessoas que mentiam, o
que deixava a vida insuportável, tal a quantidade de mentirosos com que ele
cruzava diariamente. Evitava assistir ao noticiário na TV, pois os olhos
vermelhos e injetados das pessoas faziam com que ele se sentisse cada vez mais
desanimado quanto à natureza das pessoas e o futuro da humanidade. Também via
olhos vermelhos em algumas pessoas que encontrava na rua, até mesmo estranhos. Era
terrível para ele estar caminhando por uma calçada lotada em um lindo dia de
céu azul e ver os flashes de luz vermelha na multidão.
A aura cor de rosa, frequentemente
vista em sua própria mãe, e que ele antes pensava ser apenas sinal de uma inocente
superficialidade, mostrou ser também uma característica de pessoas egoístas que
passavam a vida envolvidas por vaidades; por exemplo, elas gastavam fortunas em operações
plásticas, fazendo de tudo para permanecerem jovens, pouco cuidando de seus
espíritos e das coisas que realmente
tinham importância. Não havia nelas solidariedade ou interesse pelo próximo. Eram
pessoas aparentemente agradáveis e alegres, mas indiferentes ao que se passava
ao seu redor, a não ser que estivesse relacionado com elas mesmas e seus
interesses. João tivera algumas namoradas assim, que o atraíram pela beleza física, mas não conseguira ficar muito tempo com elas.
Raramente, ele cruzava com alguém
de aura azul. Mas um dia em que estava especialmente aborrecido e enfadado, ele
viu, de repente, um brilho azul cintilante na multidão; decidiu segui-lo.
Tratava-se de um senhor já
avançado em anos, com cabelos longos presos em um rabo de cavalo e olhos
amendoados. Parecia um chinês, e quando ele entrou em um restaurante, João
seguiu-o e sentou-se em uma mesa diante da dele, de onde podia observá-lo
melhor. Notou que ele era gentil, tratando bem os garçons e sorrindo para as
pessoas nas mesas próximas. Encantava as crianças, e algumas se aproximavam
dele, olhando-o tímidas. O velho senhor logo notou que estava sendo observado
por João. Seus olhares se cruzavam, e após um sorriso, o senhor convidou-o para
sentar-se com ele.
João sentiu-se tão bem na
presença daquele homem, que logo os dois estavam conversando animadamente. A tarde
avançou, e quando percebeu, João já tinha contado ao estranho – que chamava-se Artur
– toda a história de sua vida. Artur escutou-o com interesse e atenção. Não
achou que ele fosse um louco quando João contou a ele sobre suas visões e
pressentimentos. Após seu longo relato – entrecortado por perguntas e sábias
observações de Artur, João suspirou fundo. Já era noite.
Já que estavam em um restaurante,
Artur sugeriu que pedissem o jantar. Ambos comeram em silêncio, tomando uma
garrafa de bom vinho. Ao terminarem, Artur assumiu um ar solene, e perguntou:
-João, o que você mais gostaria
que acontecesse em sua vida?
João nem precisou pensar muito, e
respondeu:
-Gostaria de não ter esse dom.
-Pelo que ouvi, este não é um
dom, mas uma maldição. Saber o que vai na mente das pessoas e conhecer suas
verdadeiras intenções pode tornar a vida insuportável! Gostaria muito de poder
ajudá-lo.
-E o senhor pode?
Artur balançou a cabeça devagar,
olhando-o profundamente:
-Infelizmente, não. Mas você pode
transformar esta maldição em algo que possa, quem sabe, ajudar as pessoas. E
embora sua vida no futuro tenda a ser sempre difícil, você poderá facilitar a
vida de alguns. Você me disse que nunca conseguiu namorar por muito tempo,
porque no final, elas sempre mentem. Não consegue andar muito tempo entre a
multidão, pois enxerga fumaças e dentes negros, olhos vermelhos... isto é
terrível, João! Fico imaginando a sua situação. Mas quem sabe, a sua maldição –
ou dom, como queira – possa ajudar as pessoas?
-Mas... como?
-Bem, você é um vidente!
Pela primeira vez na vida, João
ouviu alguém nomeando as coisas que ele sentia, e o que ele era. Após tomar
mais um gole de vinho, Artur completou:
- Você pode usar seu dom para
fazer previsões para as pessoas. E pode ganhar um bom dinheiro através disso!
-Você quer dizer... assumir minha
vidência, e ter filas e mais filas de gente à minha porta, interessadas em
previsões sobre seu futuro, e se seus maridos e esposas as estão traindo ou
não? Ah, Artur... não, obrigada.
Artur sorriu.
-Vejo que você realmente conhece demais
a natureza das pessoas, João. Sua resposta é muito sábia! Na verdade, eu sabia
que você daria esta resposta. Mas sabe, há uma outra solução... você pode vir
comigo, e eu o ensinarei tudo o que aprendi.
-E onde você mora?
O velhinho olhou para um lugar
que não estava diante de João, mas cuja imagem era forte diante dos olhos dele.
-Venho caminhando pelas ruas há
anos, tentando encontrar alguém que possa assumir a minha posição. Eu vivo em
um templo no Tibete. Lá, educamos crianças que farão um mundo melhor. Ensinamos
a elas valores verdadeiros, tentando edificar-lhes na alma sentimentos de
bondade sincera, verdade, compreensão, altruísmo e, é claro, amor. Você seria
de grande ajuda, pois nos ajudaria a identificar falhas de caráter nestas
crianças a tempo de que pudessem ser devidamente corrigidas.
-E de onde vem estas crianças?
-Elas vem de toda parte... são
abandonadas, viviam nas ruas, ou vem de lares esfacelados onde são maltratadas
pelos pais. Carregam muita dor dentro de si, mas nós estamos conseguindo fazer
um bom trabalho. Muitas delas partiram para o mundo e fundaram instituições
como a nossa, onde ajudam outras crianças como elas. Eu mesmo sou uma destas
crianças. E então, João, qual a sua resposta? Quer vir comigo?
João compreendeu que finalmente,
encontrara seu caminho e sua missão na vida.
Ambos partiram em poucos
dias. Artur ensinou a João tudo o que Ele
sabia. Mostrou a ele seu novo trabalho, que se não tinha qualquer recompensa
financeira, tinha uma outra recompensa muito maior. A amizade e o carinho entre
os dois era enorme.
Três anos mais tarde, quando
ambos olhavam o por do sol juntos, debruçando-se em uma das janelas do templo,
um enorme besouro de antenas impressionantes, que soltava um ruído triste,
entrou pela janela e foi pousar junto a Artur.
João recordou-se da última vez que vira aquele inseto, e de que logo
depois, sua irmã morrera, e ficou muito apreensivo. Artur percebeu a mudança em
João, que tornou-se taciturno e calado.
O sol já deitava seus últimos
raios, e a estrela Dalva apareceu diante deles. Artur apontou-a, e falando de
sua beleza, profetizou:
-Vê aquela estrela? É bela...
ninguém sabe como ela surgiu, ou quando vai desaparecer; mas ela está lá, e
brilhar é a sua função. Um dia, ela se apagará. Algumas estrelas brilham mais,
outras menos... mas todas tem o seu brilho, embora muitas não saibam como lidar
com ele, e acabem contaminando a si próprias e as que estão em volta. Mas mesmo
estas, um dia, aprenderão a brilhar. Assim são os homens: não sabemos por que
estamos aqui, e não temos certeza de onde viemos. Mas somos todos como aquela
estrela, cuja função é brilhar e encantar vidas alheias. E fazer nascer novas
estrelas, para que um dia, o céu esteja totalmente repleto delas, e não haja
mais buracos negros e meteoros cinzentos e ameaçadores. Esta é a sua missão:
criar estrelas para o céu da vida. E um dia, você se apagará. Mas haverá outras
estrelas... sempre haverá! E muitas vezes, estas estrelas se apagam no céu para
que possam voltar a brilhar para as pessoas na terra. Nunca se esqueça disso.
João concordou com ele. E quando
despertou na manhã seguinte, soube que Artur era uma estrela que já brilhava em
outro lugar.
Caríssima Ana, a sua explanação contém verdades insofismáveis e merece reflexão mais aprofundada. O que nos espelha, na verdade, não reflete o nosso verdadeiro eu, o que se passa no íntimo de cada um. E pelos ocasos da vida, devemos olhar a tudo e a todos com olhos cheios de amor, para cumprir com dignidade a vivência para a qual fomos criados. Meus aplausos por mais essa obra de inenarrável valor humanístico e um abraço com o carinho de sempre.
ResponderExcluirbrilhante simplesmente brilhante
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