sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Armadilhas - capítulo IV






Capítulo 4 – O Estranho

Na manhã seguinte, ao despertar, levou algum tempo para acostumar-se com o novo cenário à sua volta.Como sempre, desde a morte dos pais, a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando abriu os olhos foi: “ todos morreram.” Sua tia Annette tinha lhe dito que um dia tudo aquilo iria passar, mas ela duvidava. Imaginava-se acordando daqui a muitos anos, a mesma frase martelando-lhe a cabeça.
Seus tios haviam lhe prometido que não procurariam por ela, dando-lhe alguns dias para que Eduarda pensasse em sua vida, como ela havia lhes pedido.
Assim, naquela manhã de Natal, a primeira de sua vida desde a morte de sua família, ela estava sozinha. E culpada por sentir-se tão em paz.

Ainda de camisola, desceu até a sala – parando no patamar da escadaria para contemplar as paredes pintadas, o tapete vermelho que forrava os degraus, o assoalho que brilhava, etc. Percebeu que gostava muito daquilo. A beleza e a limpeza faziam com que se sentisse bem.
Descalça, resolveu aproveitar a linda manhã ensolarada para verificar as reformas no jardim. Agora, tudo estava florido, e as roseiras exalavam perfume. Havia borboletas, pássaros, colibris. As ameixeiras de seu pai abundavam em frutos. O gramado macio formava um tapete uniforme sob seus pés. A fina corrente de água que jorrava da fonte fazia um ruido tranquilizador . O caminho estreito e curvo que ligava a parte da frente do jardim à parte dos fundos tinha sido forrado com pedriscos . Ela o percorreu, sentindo as pedrinhas arredondadas que estalavam sob seu andar. 
Mas ao chegar perto da garagem, onde a limusine reluzente ainda estava exposta, a capa plástica caída no chão, Eduarda teve um sobressalto. Parado a alguns metros diante dela, havia alguém. Ela hesitou, passando a caminhar mais devagar, tentando vislumbrar quem seria. Poderia ser seu tio Fernando? Mas não; ela já tinha visto aquele homem antes. 

Sim, era o mesmo homem da noite anterior, na praça. Mas como ele tinha entrado? O portão estava trancado... ela pensou, por um momento, em entrar em casa correndo e chamar a polícia, ou chamar seus tios, mas algo no olhar dele a fez parar. De repente, não teve medo. Sentiu que ele seria a última pessoa do mundo a querer causar-lhe algum mal.





Observou-o mais cuidadosamente: aparentava ter algo entre vinte e trinta anos – era difícil dizer, pois seu rosto era sereno, inocente e maduro ao mesmo tempo- e os olhos ( ela podia vê-los claramente agora, que estava há apenas alguns metros dele) eram grandes, de cílios longos e escuros e de um verde profundo, tranquilizador e ao mesmo tempo intrigante. O homem era um verdadeiro mistério, mas Eduarda tinha certeza de que não precisava temê-lo. Os cabelos fartos, pretos e ondulados, tinham sido arrumados para trás, num corte em camadas, que davam-lhe uma aparência extremamente máscula e sensual. Ela teve vontade de passar seus dedos sobre aquele cabelo.
Ele era alto e bem-formado. A boca era grande e bem-desenhada, e o queixo, quase quadrado, era suavizado por uma leve covinha. Ela constatou, surpresa, que ele era não apenas o homem, mas a criatura mais linda que já vira em sua vida.

Vestia uma camisa branca, simples, de mangas longas dobradas até o cotovelo, e calças pretas. Ele a olhava intensamente, em um meio-sorriso. Parecia conhecê-la- e aos seus pensamentos – há muito tempo. Em um único instante, ela sentiu como se tivesse chegado em casa após uma longa caminhada. Teve vontade de correr até aquele homem e jogar-se definitivamente em seus braços, como se eles fossem seu refúgio após meses vagando por estradas perigosas, entre pessoas hostis. Não sabia se o sentimento que a impulsionava era um sentimento fraternal, uma profunda amizade ou algo de mulher para homem, pois nunca em sua vida tivera realmente nenhum daqueles sentimentos. Sendo assim, não conseguia ainda distinguir o que sentia.
Ela caminhou mais rapidamente até onde ele estava, e viu-se correndo em sua direção. Ele, imóvel, estendeu os braços para ela e finalmente suas mãos se tocaram, entrelaçando-se.

O coração de Eduarda batia totalmente desenfreado. Tudo o que importava para ela era o contato morno daqueles dedos em volta dos seus, aqueles olhos presos nos seus e o aroma delicioso que emanava dele para ela , algo leve como um cheiro de baunilha misturado com uma fragrância amadeirada , talvez canela ou quem sabe, sândalo. Tudo o que ela tinha certeza a respeito daquele cheiro era que ele era suave , e que ela gostaria de senti-lo para o resto de sua vida.
Mas precisava recobrar o bom senso. Era uma moça sozinha diante de um estranho. Não sabia o que ele queria ou como tinha entrado ali. Queria ter medo, correr, mas o fascínio que ele exercia sobre ela era tão forte que ela mal podia mover-se. Apenas sentia que cada parte de seus dedos onde os dedos dele a tocavam pareciam formigar levemente, como se uma energia sutil e maravilhosa emanasse dele para ela. Viu-se perguntando, sem soltar as mãos dele:

- Quem é você?
Ele sorriu-lhe , e ao fazê-lo, ela pensou que fosse desmaiar. Se pudesse, nunca mais sairia dali, jamais voltaria a olhar para outro lugar, jamais sairia de diante daquele homem.
- Meu nome é Marcus. E você é Eduarda.
- Como sabe?
- Eu sei tudo sobre você. Estou aqui para lembra-la de coisas importantes. Esta é minha missão.
- Como assim, que missão? Você é alguma espécie de anjo?
Ele riu, puxando-a para mais perto dele. 
- Para você, o que significa ser um anjo?
- Não sei... talvez ser puro, bondoso, generoso... perfeito... e cumprir missões. 
- Você pode estar certa em algumas coisas, mas não tenho certeza se sou um anjo.
- Por que?
- Porque os pensamentos que me acometem quando olho para você não são muito puros, se examinados sob o ponto de vista do que você reconhece como pureza. Talvez eu seja generoso, quem sabe, bondoso... diante de seus olhos, posso parecer até perfeito. Mas talvez os anjos não sejam assim tão puros. Ou então, não sou exatamente um anjo.

Eduarda sentiu seu rosto em fogo. Pois ele estava se sentindo exatamente como ela.
- Eu não sei o que pensar.
- Se você pudesse ( e a voz dele agora era só um murmúrio) o que faria neste exato momento?
- Eu.. eu estou confusa. Tenho medo. Mas queria que você ficasse aqui comigo. Queria sentar-me com você em minha casa e conversar.

Ela não teve coragem de confessar seus verdadeiros desejos, pois na verdade, eram desconhecidos pra ela, emoções totalmente inéditas. Nunca tinha sentido tanta ternura, tanto calor por dentro, e nunca tinha sentido vontade de abraçar-se a alguém. Lembrou-se das vezes em que ouvira outras meninas contando sobre suas aventuras amorosas, que , para ela, não passavam de contato físico, e do quanto sentia-se repugnada ao ouvir tais relatos.



Marcus passou um braço ao redor da cintura dela.
- Pois que seja assim. Vamos entrar e conversar, se é o que você deseja.
Eduarda deixou-se conduzir de volta à casa pelo caminho de pedriscos. Tudo parecia irreal à volta dela. Estava dentro de um sonho, podia ter quase certeza.
Sentaram-se na varanda da casa. Ela não parava de olhar para ele, com medo de que , se desviasse os olhos por um instante, ele desaparecesse para sempre. Marcus pareceu adivinhar-lhe os pensamentos.
- Não se preocupe, eu só vou embora quando minha missão estiver cumprida. E ainda vai demorar um pouco.
- Pois então eu espero que você jamais a cumpra.
Dissera aquilo sem nem mesmo pensar, e corou. Desviou os olhos, mas ele segurou seu queixo, obrigando-a a olhar para ele novamente.
- Eduarda, eu a conheço há tanto tempo... você também me conhece, mas talvez nunca chegue a se lembrar.
- Mas você disse que sua missão era fazer-me lembrar de algo.
- Mas não disso. De uma outra coisa.
- De quê?
- Não vamos falar nisso agora. Ainda temos muito tempo, não quero apressar as coisas. Ou você quer que eu cumpra logo o que vim fazer e vá embora?

Ambos riram. Infelizmente, Eduarda sentiu um leve enjoo e lembrou-se de que tinha um estômago, e de que ele se encontrava vazio há quase dois dias. Convidou-o a entrar e foram para a cozinha, ele sentando-se à mesa enquanto ela vasculhava o armário em busca de algo para comer. Encontrou alguns ovos na geladeira e um pedaço de presunto. Fariam um omelete. Para beber, chá gelado.
Ele ajudou-a a pôr a mesa, embora ela dissesse que aquela não era tarefa para um anjo. Ele rebateu dizendo que ela sabia muito pouco sobre anjos.

Conversaram durante o almoço, ela tentando controlar seu apetite voraz para não parecer mal-educada diante dele, e ele, quase não tocando na comida. Ela falou-lhe de seu relacionamento com os pais e com o irmão, embora sentisse que ele já sabia de tudo, mas falar fazia com que ela se sentisse bem, como se estivesse tirando um enorme peso dos seus ombros. E Marcus, um ouvinte perfeito, jamais a interrompia, ou fazia perguntas que ela não estaria pronta para responder. Conversando com Marcus, falando de tudo o que acontecera em sua vida nos últimos meses, Eduarda pôde finalmente colocar um senso de realidade naquilo tudo. Até então, tivera – ou procurara ter- a impressão de que tudo não passara de algo que vira em um filme, ou que alguém lhe contara a respeito de uma pessoa que ela não conhecia. Agora, ela, Eduarda, colocara-se no centro de todos os acontecimentos. Começou a realmente entender sua mãe, a maneira como ela sempre andara na beirada da loucura, pronta a se jogar, mas todos tentavam negar os fatos, começando por seu pai. 

Depois do almoço, sentaram-se no grande sofá da sala , e ela deitou a cabeça no colo de Marcus, que acariciou-lhe os cabelos levemente. Ao longe, ouvia pássaros cantando. Um leve ribombar de trovão, como se fosse o estômago de um gigante roncando. Eduarda nunca se sentira tão bem, tão relaxada. Nem se lembrava de um dia sequer em sua vida no qual alguém lhe acariciara daquele modo. Sem sentir, deixou que os ruídos de pássaros, trovões e carros ao longe fossem ficando cada vez mais distantes.
Agora, andava por uma estrada asfaltada, totalmente ladeada de árvores altas de copas espessas, que se encontravam no meio da rua, formando o arco verde-escuro sob o qual ela caminhava. A luz do sol filtrava-se por entre as folhas, formando pontos de luz no asfalto negro e liso. Eduarda caminhava sem sentir cansaço, e a estrada reta não lhe dava nenhuma impressão de distância. Não sabia de onde tinha vindo ou como fora parar ali, ou para onde ia. Apenas caminhava, sentindo-se energizada, o ar fresco enchendo-lhe os pulmões. Estava feliz. Ao longe, na beira da estrada, avistou uma grande pedra. Havia alguém sentado sobre ela, abraçado aos joelhos, de modo que seu rosto não podia ser visto.

De repente, ela começou a correr, aflita, na direção daquele vulto. Ela corria, corria, mas a cada vez a pedra parecia tornar-se mais distante. Ouviu choro e soluços. Eles tornavam-se cada vez mais altos e angustiados. Eduarda sabia que precisava chegar até aquela criatura, e de repente, a distância que havia se formado entre eles encurtou-se como num passe de mágica, e ela se viu diante da pedra. Um segundo, e estava sobre a pedra, de pé ao lado daquela pessoa. Ela conhecia aqueles cabelos encaracolados, a roupa preta desbotada... Getúlio!!!
Ela gritou o nome de seu irmão.
Ele olhou para cima, virando o rosto na direção dela lentamente. Seu olhar era de profunda mágoa.
“Você não fez nada”, ele disse. Mas sua boca não se movia. Eduarda não compreendia o que ele estava querendo dizer.
- Getúlio, me dê sua mão. Vamos embora, vou levá-lo comigo.
- Você não pode. Você não fez nada!!!

O rosto dele estava em todos os lados, a voz dele, os gritos, os soluços... ele gritava , repetindo aquela frase sem-sentido, deixando-a quase louca. Eduarda tentava tapar os ouvidos, mas era em vão. Para onde olhasse, e mesmo que fechasse os olhos, Getúlio estava em toda parte, olhando-a de forma acusadora. Os olhos eram como duas bolas totalmente negras, sem pupilas, sem profundidade, sem alma.
Ela gritou, gritou, e despertou bruscamente, sentando-se no sofá da sala, a respiração ofegante. Estava encharcada de suor, e lá fora uma tempestade desabava. Apesar do calor abafado, Eduarda sentia frio. Custou um pouco para recobrar o senso de realidade, como sempre acontece após um pesadelo.
Olhou em volta; estava sozinha. Chamou por Marcus, mas apenas o eco da sala vazia respondeu-lhe. Ele se fora.

(continua...)



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