domingo, 19 de junho de 2016

A RESENHA DO MAL - CAPÍTULO X







A manhã seguinte foi como o despertar de um pesadelo. Abriu os olhos, e viu a luz do sol entrando pela cortina transparente, brincando com a poeira. Escutou o barulho de pássaros cantando lá fora, e sentiu o aroma de café fresco. Feliz, viu que Sophie ainda dormia ao lado dele, e não o mandara embora, como da outra vez. Ela abriu os olhos, e ele ficou esperando pela reação dela, cheio de ansiedade. Nunca sentira aquilo antes por causa de uma garota. Ela ficou olhando-o durante algum tempo, e então, esticou a mão e tocou-o na perna, fazendo-lhe uma suave carícia. Aquilo foi o suficiente para despertar nele uma tonelada de desejo, e eles se engalfinharam na cama, e tudo foi intenso, forte, urgente. Ainda tonto de prazer, ele segurou a cabeça dela entre as mãos, obrigando-a a olhar para ele:

-Sophie, o que você fez comigo?

Ela nada disse: apenas beijou-o nos lábios, como se estivesse com fome e quisesse alimentar-se dele. E quando ele estava ficando pronto para ela novamente, Sophie esfriou sob o corpo dele, afrouxando os músculos, e ele sentiu. Olhou para ela, e o que viu, foi um par de lindos olhos verdes que pareciam mais apavorados do que cheios de desejo. Ela tentou balbuciar alguma coisa, mas não conseguiu, então apontou para onde queria que ele olhasse, atrás dele. Décio virou a cabeça na direção que ela apontava, e teve que se conter para não gritar: havia alguém ali no quarto, em plena luz do dia. Alguém com olhos maldosos, um homem grande e ruivo, que estava observando os dois, e parecia divertido. Um arrepio de medo percorreu a coluna dele. Mas quando Décio abriu a boca para falar, a fim de perguntar quem ele era, e o que queria, o homem desapareceu como se fosse fumaça, diante dos olhos dele. 

Décio saiu de cima de Sophie, e os dois se abraçaram, e ela tremia:

-É ele! É ele... foi ele, Décio. Ele...

Décio logo compreendeu que tratava-se do tio que a agarrara quando criança. 

-Mas Sophie, como ele se atreveria a voltar aqui, agora que...

-Ele não pode voltar, Décio. Não pode! Não poderia, ele está.. morto! Eu o matei!

Décio não podia acreditar no que acabara de escutar! Nada estava fazendo sentido: ele não acreditava em fantasmas. Mortos não voltavam, e ele disse aquilo a ela. Sophie pareceu não ouvir. Ele viu que os olhos dela estavam vidrados enquanto ela se levantava da cama. Ela cruzou o quarto nua, e então entrou no banheiro, fechando a porta. Ele escutou o ruído do chuveiro. Tentou colocar a própria cabeça em ordem, mas nada fazia sentido. Ficou com medo de que estivesse ficando louco. 
Quando Sophie saiu do banheiro, vestia calças jeans e uma bata preta com franjas azuis. Calçava botas de cano alto sobre a calça, e usava um pingente com uma pedra azul grande. Estava linda. Ele olhou para ela, e ela olhou-o de volta, desta vez, com sua habitual frieza. Ia sair do quarto, mas ele segurou-a pela mão, obrigando-a a parar.

-Quem você matou, Sophie?

Ela olhou para ele como se não soubesse do que ele estava falando, e rindo, encolheu os ombros:

-Você deve ter sonhado! Eu vou tomar meu café. 

Dizendo aquilo, ela abriu a porta, que deixou escancarada atrás de si, sem se importar com a nudez dele. Décio vestiu suas roupas, que estavam sobre uma cadeira, e foi para a sala de jantar, onde Brian tomava café com Endora, que parecia estar se sentindo bem melhor. Ela ria das coisas que ele dizia. Sophie, sombria, tomava seu café alheia à conversa dos dois. Brian logo notou o clima tenso entre Sophie e o irmão, mas achou melhor não dizer nada. Continuou com seu trabalho de encantar Endora e fazê-la rir. Depois, Brian pegou sua câmera e saiu, dizendo que ia dar uma volta e fazer umas fotos. 
Endora olhou de Brian para Sophie, parecendo preocupada. Quis quebrar o gelo:

-Seu irmão é adorável, e muito bem-vindo a esta casa, Décio.

-Obrigada, Endora. Sente-se melhor?

-Sim... há muito eu não ria assim. Mas vejo que não posso dizer o mesmo sobre vocês. O que houve?


Sophie ergueu as sobrancelhas:

-Como assim, mãe? Não houve nada. Só dormimos juntos de novo.

Décio soltou o guardanapo sobre a mesa de maneira brusca, e afastando a cadeira com raiva, saiu da mesa sem pedir licença. Hesitou à porta de saída, e disse, dirigindo-se à Endora:

-Eu acho que vou embora. Obrigada por tudo, Endora. 

A senhora brandiu um sininho, chamando Diana, que veio mais do que rapidamente, e então ela segredou algo no ouvido dela, que correu atrás de Décio:

-A senhora pede que por favor, você e seu irmão fiquem, e que desculpem Sophie. Ela anda muito tensa com todos os acontecimentos recentes. 

E dirigindo a ele um pedido pessoal, no qual Décio sentiu uma súplica, Diana disse, segurando-o pelo braço:

-Por favor, senhor, fique! Ela não tem muito tempo.

De alguma maneira, Décio sentiu que Diana não pedia por Endora, mas por si mesma. Quis perguntar a ela por que ela não deixava a fazenda e voltava para sua terra natal, mas antes que formulasse a pergunta, eles ouviram o sininho de Endora, e Diana voltou correndo para dentro da casa. Décio colocou as mãos na cintura, chutando o chão. Entrou na casa. Ele sabia que não ver Sophie nunca mais seria a coisa mais sensata a se fazer, mas ao mesmo tempo, ele não conseguia ir embora. 
Naquela tarde, após o almoço, Endora chamou-o ao seu quarto. Sophie passara a tarde toda fingindo que ele não existia, o que o deixava muito magoado. Ela resolveu conversar com Brian, com quem esbanjou simpatia daquela vez, e ambos passaram a tarde juntos, passeando pela fazenda – sem ele. 
Décio bateu à porta do quarto, entrando ao escutar a voz de Endora. Ela estava radiante, sentada à cama, coberta por um lençol branco bordado. Usava uma camisola azul-clara, e os cabelos tinham sido penteados e estavam presos por um arco de cabelo, lavados e sedosos. Nem parecia uma mulher tão doente. Tinha usado um pouco de maquiagem, o que talvez explicasse sua aparência tão saudável. 
Décio sentou-se na mesma poltrona de antes, e Endora começou:

-Décio, antes quero agradecer por você ter ficado. É muito importante para mim que você termine seu trabalho, meu jovem. E é muito importante para Sophie também...

-Ela me odeia. Eu não entendo. Tivemos uma noite linda, e de repente ela me olha como se eu não fosse nada! Ela é tão... inesperadamente brusca...

Endora riu:

-Minha filha está confusa, Décio. Sophie nunca se apaixonou por ninguém antes.
O coração dele deu uma guinada dentro do peito, e ele tossiu de leve. Então Sophie o amava? Mas como?

-Acho que você está enganada, Endora.

Ela balançou a cabeça, negando e tornando-se séria:

-Apesar de passarmos anos separadas fisicamente, nós nos correspondíamos, e eu acompanhei cada fase da vida de Sophie. Conheço minha filha, e é só uma questão de tempo até ela descobrir o que está sentindo por você. Até Brian notou! Diana também... você não?

-Não sei... Às vezes, como ontem à noite, ela parece que gosta de mim, mas de repente, Sophie me olha como se eu fosse um estranho. Nunca garota nenhuma fez isso comigo. O que ela faz... seria o suficiente para que eu nunca mais olhasse na cara dela, mas ela é diferente das outras.

Endora ouviu-o com atenção, e disse:

-Vocês nasceram um para o outro. É claro que sim!

Décio gostou de escutar aquilo, mas algo não se encaixava, não fazia sentido. Gostaria de poder acreditar em Endora, e nos sentimentos de Sophie. Mas ele não estava conseguindo. Havia algo errado com aquelas mulheres, aquela casa. Ele hesitou, mas achou que deveria perguntar de uma vez:

-Os sonhos dela, Endora. Ela me contou sobre o que eles são. 

-Isto é mais uma prova! Ela nunca fala sobre eles com ninguém. 

-Mas ela disse algo que me deixou confuso... bem, ela tinha acabado de ter um pesadelo, estava muito impressionada... mas ela... Endora, ela me disse que matou o homem que fez aquilo com ela. É verdade?

Endora engoliu em seco, levando as mãos ao rosto:

-Não, não, não! Não é verdade. Ela está confusa, é só isso. Como você disse, ela acabara de ter o pesadelo. Fui eu quem o matou. Matei  todos eles, envenenados. Eu dei a eles veneno de rato. Achei no paiol. Eu mesma coloquei-o no chá antes de servir, fui eu, não ela. E eu quero que todo mundo saiba como foi. Você vai me ajudar! Tem que me ajudar!

Décio tentou acalmá-la, pois Endora estava ficando agitada demais, e ele teve medo. Serviu-lhe um pouco de água que estava em uma jarra sobre a mesinha de cabeceira, e pediu-lhe que se acalmasse. Ela respirou fundo, bebendo a água. Ele estava ainda mais confuso, e agora se perguntava se tinha sido mesmo Endora quem matara aquelas pessoas, há tantos anos... mas ao mesmo tempo, uma menina de apenas seis anos não poderia ter feito aquilo sozinha. Seria impossível. Sim, seria impossível! Mas... por que a menção daquela possibilidade tinha deixado Endora tão apavorada ao ponto de quase entrar em pânico? 

Ele estava evolvido em seus pensamentos, quando Endora o trouxe de volta à realidade:

-Podemos começar?

Ele relaxou, encostando na cadeira. Ligou o gravador, e a voz dela tornou-se quase hipnótica. 

-Falávamos de como Cícero reagiu ao saber que tinha uma menina, e não um menino como ele queria, e do quanto Sophie o enfrentava... pois é... foi exatamente assim. Ela sabia que o pai não a amava. Sabia que os avós não a amavam. Sabia que eu era a única criatura dentro desta casa que a amava de verdade. E ela apegou-se a mim. E eu, a ela. Não havia lugar para mais nada, nem mais ninguém depois que Sophie nasceu. Eu pensava muito no meu garotinho, que tinham levado para longe, e uma dor incrivelmente forte me apertava o peito naquelas horas...mas eu precisava esquecer, pois ele deveria estar morto há muito tempo, e estava. Mas Sophie estava viva, e precisava de mim. 

-Você chegou a procurar pelo seu filho?

-Eu não podia... não podia sair da fazenda. Era prisioneira. Perguntei a todo mundo: empregados da fazenda, meus sogros. Cheguei a indagar em fazendas vizinhas, mas ninguém me dizia nada. Ou não sabiam, ou escondiam alguma coisa por medo de Cícero. Um dia, durante uma discussão, Cícero me disse que era melhor esquecer aquele menino, pois ele não existia mais. E foi o que eu fiz, mas não sem muita dor. Ainda me lembro dele, ainda posso sentir seu cheiro de bebê, ouvir sua voz, sua risada... ele nunca cresceu, entende? É como se tivesse ficado encantado no tempo, sempre bebê, e sempre meu... não importa para o quão longe o carregaram, eu sempre estou junto com ele, e para isso, basta fechar os olhos do corpo e abrir os olhos da alma. Isso, ninguém conseguiu tirar de nós: somos um só. Mãe e filho. 

Ela puxou um lenço de dentro do bolso da camisola, e secou os olhos. Décio comoveu-se pelo amor que ela ainda nutria por seu filho, mesmo após tantos anos. Ela continuou:

-Um dia, os parentes de Cícero vieram para mais uma de suas interináveis temporadas, nas quais eu tinha que bancar a esposa feliz e a anfitriã satisfeita. Eles me tratavam como se eu fosse a empregada da casa, mal me dirigindo a palavra. Mas eu suportava tudo, pois a minha esperança estava naquele saco de dinheiro que eu juntava, e que ficava maior a cada vez. Quando eu não aguentava mais a presença repugnante daquela gente – eles gostavam de beber e jogar cartas até tarde da noite, e fumavam charutos fedorentos enquanto o faziam – eu ia para a varanda do segundo andar, e olhava a estrada, que me chamava. Sonhava que ainda não era tarde, e quem sabe, lá fora eu ainda fosse encontrar Ruy e meu filho. Fantasiava que os dois estariam juntos, felizes em algum lugar, esperando por mim e por Sophie. Porque eu tinha certeza que Ruy a criaria como se fosse sua. E sonhar foi o que me salvou da loucura naqueles instantes.

E então, eu percebi que minha Sophie andava diferente. Arredia, até comigo. Ela sempre brincava comigo, gostava de fazer roupas para suas bonecas, e nós íamos para longe da casa da fazenda carregando sua boneca, uns trapos, tesouras e agulhas...e nós a vestíamos de princesa. A boneca de Sophie. Mas ela não queria mais brincar com sua boneca, e estava ficando cada vez mais arredia. Parecia esconder algum segredo de mim. Eu estava muito preocupada, mas quando falei com Cícero, ele não deu importância, dizendo que meninas eram assim mesmo, cheias de frescuras. Provavelmente, ela estava ‘de lua.’ Como eu, ele disse. 

E um dia, eu vi. Segui Sophie até o paiol. Vi quando aquele marmanjo ruivo colocou suas mãos nela. Eu vi, e não consegui fazer nada, a não ser ficar grudada no chão, as lágrimas caindo. Eu tinha que fazer alguma coisa, mas sabia que se eu entrasse de repente, ele seria capaz de torcer o pescoço de minha filha – já o vira matar cães, gatos e outros animais por puro prazer. Mas ela me viu, e gritou por mim. Eu tive que correr até ela, e enfrentá-lo. Ele se recompôs, guardando sua indecência, e soltando Sophie, que eu aninhei em meus braços, ele nos disse que mataria a ambas, da mesma forma que matara, ele mesmo, com as próprias mãos, a pedido de Cícero, o meu bebê! E antes dele, Ruy! E ele descreveu como atirou em Ruy após amarrá-lo a uma árvore, e como jogara meu bebê dentro do rio, e ficou olhando até que o rio o cobriu. Eu fiquei possessa de ódio! Prometi que todos saberiam de suas maldades, disse que iria à polícia! Ele riu, e saiu do paiol endireitando a cinta, sem se importar conosco, e voltou ao casarão. 

Décio sentiu os olhos arderem, e percebeu que estivera tão envolvido pela história de Endora, que nem percebera que estava chorando. Ele nunca chorava! Há anos não o fazia. Aquelas mulheres realmente mexiam com o seu emocional. Mesmo assim, sabia que aquela história tão cheia de emoção não estava batendo com alguma coisa, mas não sabia o que era. 

Endora tomou mais um pouco de água, e deu continuação à sua história:

-Eu sabia que de nada adiantaria contar àquelas pessoas, pois elas não acreditariam em mim. Diriam que eu estava levantando calúnias contra uma pessoa da família, alguém de confiança, honrado. Mas eu precisava fazer aquilo parar. Naquela mesma noite, eu peguei o saco de moedas e coloquei algumas coisas na mala, sem que Cícero se desse conta – estavam todos na sala, jogando cartas. Peguei Sophie pela mão e nós duas saímos noite adentro, em busca de um destino melhor. Caminhamos pela beira da estrada até amanhecer. Pensei que eu estava livre, mas logo veio um carro da fazenda, com Cícero ao volante, e seu primo ruivo, o horroroso, e eles nos forçaram a entrar no carro e voltar para casa. Eu gritei, tentei contar a Cícero o que estava acontecendo à nossa filha. Mas é claro que ele não acreditou em mim. Nem um pouco. Achou que eu estava fugindo para ir ao encontro de Ruy, e me assegurou de que ele estava morto. Chegamos à fazenda, e na frente dos empregados, Cícero tirou a cinta e aplicou-me uma surra com ela, do lado de fora da casa, para que todos vissem, e depois, deu ordens a todos os empregados de que eu deveria ser vigiada 24 horas por dia, e que jamais poderia sair dos limites da fazenda. Eles nada disseram: baixaram as cabeças, e com certeza, cumpririam as ordens do seu senhor. Minha menina, enquanto isso, foi levada para dormir no quarto dos avós. Cícero disse que a menina precisava ser educada devidamente, e que eu não era a pessoa certa para isso. 

Dizendo aquilo, Endora deixou que faíscas de ódio saíssem dos olhos dela, provocadas pelas dores daquelas lembranças. Depois, não conseguindo continuar, pediu a Décio que a deixasse descansar um pouco. 

Quando ele saiu do quarto, encontrou Sophie sentada no chão do corredor, junto à porta do quarto. Ela chorava. Ele quis tomá-la em seus braços e consolá-la, mas a dor dela era tão grande, que ele teve medo. Apenas depositou uma carícia sobre a cabeça dela, e depois foi trancar-se em seu quarto.



(CONTINUA...)





Um comentário:

  1. UAU, estou sem fôlego... rs
    Esse emaranhado de fatos estranhos estão me deixando com muita curiosidade e eu estou tentando traçar uma linha de pensamento (imaginária), misturando a meu modo personagens, fatos,memórias e aparições.
    Tá muito bom o conto, Ana, não demore... esse "CONTINUA"... me deixa com cataporas... hehehe

    bacios

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