segunda-feira, 30 de maio de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 7





 Parte 7


Jonathan passa algumas horas na minha casa. Depois que termina o trabalho na instituição, por volta das quatro da tarde, pelo menos duas vezes por semana ele vem para cá. Estamos juntos há quase dois meses, e apesar disso, ainda não fizemos sexo, apesar dos carinhos e da vontade quando estamos juntos. Eu digo a ele que ainda não me sinto totalmente pronta, e ele respeita minha decisão. Ele sabe que eu ainda sou virgem.

Minha avó me telefonou, convidando-me para passar as próximas férias lá – garantiu a passagem na primeira classe, e me disse que a estadia seria em seu apartamento. Meu avô melhorou, segundo ela, mas a saúde dele ainda inspira cuidados. Ela soou um pouco triste ao telefone, e me disse que meu avô estava falando muito de mim ultimamente, e dizendo que gostaria de me ver de novo antes de morrer. Não sei se aquilo foi uma pequena chantagem emocional para me convencer a ir até lá. Mas depois que desligamos o telefone, fiquei pensando neles e nas poucas lembranças que tenho deles. Eram sempre atenciosos e muito legais comigo. Talvez eu aceite o convite, quem sabe. Mas ao mesmo tempo, eu não gostaria de me afastar agora, que Johnatan e eu começamos a nos relacionar. Bem, ainda faltam meses até as férias.

Tia Atena acha que eu não deveria ir, pois para ela, meus avós e eu somos praticamente estranhos, e ela teme que meus avós possam tentar destruir a imagem que tenho de meu pai. A imagem que tenho de meu pai... e que imagem seria essa?

Sinto a falta dele. Todos os dias, quando acordo, ainda preciso repetir para mim mesma que ele morreu, que eu estou sozinha. A realidade vai aos poucos se assentando conforme a manhã avança, enquanto me dirijo à escola, assisto aulas, converso com meus colegas. Aliás, existe um grupinho que gostaria de organizar uma festa aqui em casa (sem pais para atrapalhar, segundo eles). Mas eu não quero. Não vou deixar que me usem desse jeito. Sempre me trataram como se eu fosse Carrie, a Estranha, e agora precisam de um local para dar suas festinhas? Sou melhor que isso, e nem gosto de festas. Nunca gostei. Imagino meu pai, lá do outro lado, me vendo dar uma festa nesta casa! Com certeza, pensaria que eu estou sucumbindo a tudo contra o qual ele me ensinou a lutar toda a minha vida: a superficialidade, os amigos interesseiros supérfluos e sem conteúdo, a vida sem objetivos.

E eu passo meus dias dividida entre a escola, Johnatan, os cuidados com a casa, e livros e mais livros que Johnatan traz para mim. Será que arranjei um outro tutor?

Não sei nada sobre a vida dele fora daqui, a não ser o que ele me contou nos primeiros dias. Não faço perguntas. Nós conversamos sobre livros, filmes, filosofia, e às vezes, arriscamos falar sobre o futuro – mas tais momentos são breves e entrecortados de silêncio. Eu tenho um certo medo do futuro. Porque eu já senti o que ele pode estar preparando para nos surpreender ali na esquina da vida. Assim, tento viver a minha vida sem pensar muito. Johnatan acha a minha atitude um tanto pessimista e melancólica. Vive me dizendo que tive muita sorte em ter tido um pai e uma mãe, em ter avós que se preoupam comigo, e meus tios Atena e Heitor. Ele me faz ver que eu não sou tão sozinha assim. Me diz sempre que cresceu sem ter ideia sobre o que é ter uma família, pais que se preocupam, tios, avós, casa, lar. Desde bebê ele foi criado na instituição, ocupando o quarto com uma porção de outras crianças, fazendo suas refeições em refeitórios, sem ter roupas que fosse realmente suas, ou brinquedos que pertencessem apenas a ele (tudo é compartilhado entre todos) ou momentos de privacidade, pois até os banheiros são coletivos. Quando precisa ficar sozinho, ele vai para um banco de praça e se senta lá por algum tempo, ou então acorda bem cedo e vai dar uma volta à pé, ou então se levanta de madrugada e vai se sentar no pátio para ouvir música (ele coneguiu juntar dinheiro e comprar um celular). Fora isso, ele precisa trabalhar na instituição se quiser continuar tendo um lugar para viver. E obedecer ordens o tempo todo. Um dia, eu perguntei a ele:

- Quando a gente se conheceu, você me disse que era livre. Isso é ser livre?

Logo me arrependi do que disse, pois vi uma sombra passando sobre o rosto dele, enquanto seu olhar caiu no chão, bem junto aos próprios pés. Percebi que aquela história de “Não tenho nada, mas sou livre” era apenas alguma coisa que ele criou para tornar as coisas mais fáceis. Andei até ele e o abracei forte. Ele não respondeu, apenas me beijou.

Às vezes eu percebo uma tristeza dentro dele maior ainda que a minha, mas Jonathan nunca foi uma pessoa de reclamar das coisas. Ele se mostra sempre grato, se contentando com pouco. Uma vez perguntei se ele sentia falta da Pri. Ele me respondeu o seguinte:

- Eu a vejo todos os dias. Continuamos amigos. Mas embora eu a ame, o que eu sinto por ela mudou, virou alguma coisa de irmão para irmão. Acho que já estava assim há muito tempo, mas a gente não percebia. Precisou que você aparecesse na minha vida para eu perceber.

-E quanto a ela? Acha que ela está bem com isso tudo?

Ele encolheu os ombros:

-Não sei... penso que não, ainda não. Ela está tão acostumada com a gente, que de repente se sentiu sem chão. Pensa que ainda precisa de mim, do que a gente achava que tinha.

-Então ela está mal?

-Está. Mas vai superar. A Pri é jovem, bonita... logo vai aparecer outra pessoa.

Pensei que encontrar alguém legal vivendo em uma instituição para crianças e jovens abandonados ou sem lar não deveria ser muito fácil. Sinto pena dela. É como seu eu tivesse roubado alguma coisa muito preciosa de alguém que só tinha aquilo.

Uma vez pedi que Jonathan me mostrasse uma foto dela. Ele abriu uma no celular uma foto onde ela aparecia ao lado dele e de alguns outros jovens. Vi uma menina de estatura baixa, magrinha, olhos bondosos, sorriso tímido. Não uma linda garota, mas delicada, bonitinha. Priscila tem cabelos cacheados na altura dos ombros, castanho-claros, sem um corte moderno. Suas roupas simples e parecendo muito usadas não ajudam na sua aparência. Mentalmente, me vi fazendo comparações entre nós duas, e em todos os quesitos, eu venci: sou mais bonita, mais alta, me visto bem, tenho um corte de cabelo channel moderno e bonito, estudo em uma ótima escola, tenho dinheiro, tenho casa, tenho família, tenho todos os sonhos na palma da minha mão. E tenho Jonathan. 

Até hoje, embora só tenha visto a foto uma vez, me lembro muito de todos os detalhes. E me sinto mal quando penso nela. Ter conhecido o Jonathan me fez perceber o quanto eu tenho sorte, apesar de tudo. Não trocaria a minha vida com a deles de jeito nenhum. Eu tive e perdi meus pais, mas pelo menos, eu os tive. A maioria das crianças e adolescentes daquele lugar não fazem ideia do porquê estão lá, por que foram abandonados, quem são seus pais, onde estão suas famílias. 

Olho meus colegas da escola – todos pertencem a famílias senão ricas, pelo menos bem de vida. Todos têm os celulares da moda, usam roupas de marca, têm pais ou mães que os levam de carro para a escola, comem bem, não precisam se preocupar com o futuro. E vivem reclamando de tudo. Alguns tomam remédios para depressão (eu mesma já tomei) e não se dão bem com a família. Outros se drogam, bebem, são promíscuos, vão a festas e ficam com uma porção de gente em uma só noite. Suas mentes são completamente fodidas.

Jonathan me contou que na instituição também tem muitos jovens assim, que tomam remédios para depressão e ansiedade, que são agressivos, inacessíveis emocionalmente, e que reclamam de tudo. Alguns se drogam, mas se forem descobertos, sabem que serão imediatamente levados para uma unidade correcional. Não vão para nenhuma clínica de reabilitação luxuosa. 

Penso que de qualquer forma, a vida é a vida. A vida não poupa ninguém de nada.

 (Continua...)





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