segunda-feira, 13 de junho de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 8


 Parte 8


Eu e Jonathan temos passeado muito por aí, à pé. Ele deixa o carro da instituição aqui em casa no meio da tarde e nós vamos andar. Não tem muitas casas onde moro, mas tem uma estrada linda, um parque que ninguém frequenta que fica a mais ou menos meia hora à pé daqui de casa (nem sei por que alguém construiu um parque onde não tem ninguém) e a gente gosta de sentar no banquinho velho de madeira, ou de nos balançarmos nos balanços enferrujados. Quando começa a escurecer, o céu fica lindo, em tons de laranja, e nós voltamos para casa. E quando chegamos em frente ao meu portão, já é noite. Ele entra no caminhão e vai embora. 

Eu entro em casa e vou fazer os deveres da escola, ou assistir a um filme. Raramente convido Jonathan para entrar durante a noite, pois tenho medo do que possa acontecer, da gente não conseguir resistir. Quando o convido, nós comemos alguma coisa e nos sentamos um pouco na varanda. Mas ele nunca demora muito, pois se descobrirem na instituição, que ele anda usando o carro para vir namorar, não vão mais deixá-lo usá-lo. A gente se vê duas ou três vezes na semana, e ficamos juntos por umas três horas, um pouco mais, um pouco menos.

Tio Heitor passou aqui ontem à noite de carro, justamente no momento em que eu e o Jonathan estávamos sentados de mãos dadas na varanda. Ele diminuiu a marcha, baixou a cabeça para me olhar, buzinou e acenou. Acenei de volta. Pensei que cedo ou tarde, tia Atena ia aparecer por aqui para indagar sobre o Jonathan. Mas o que eles tem com a minha vida? Sou emancipada. Dona do meu nariz. 

Bem, ela me liga na mesma noite:

- Oi, Valentina. Tudo bem? Só estou ligando porque fiquei preocupada... Heitor me disse que viu um rapaz na sua varanda.

Ela sempre vai direto ao assunto. Respondo:

- Ah, é o Jonathan. Um amigo. Na verdade, estamos namorando.

Escuto a respiração dela acelerar:

- Mesmo? Ahn... que bom, fico feliz que você ... mas...

- Pode ficar tranquila, Tia Atena, eu sei me cuidar. Por isso meu pai me emancipou antes de morrer. Porque ele sabia a filha que tinha.

Achei que dizendo aquilo, ela entenderia o recado, mas minha tia continua a falar:

- Claro, claro, mas... é seu primeiro namorado, e se quiser conversar sobre isso, é só me chamar. Você sabe, precisa ter cuidado.

- Ainda não transamos, se é o que você quer saber. Mas eu sei me cuidar, tenho aulas sobre isso na escola. E meu pai me deu muitos livros sobre o assunto. Não se preocupe, tia.

Silêncio por alguns segundos.

- Valentina... eu sinto como se você estivesse nos expulsando da sua vida. Cada vez nos vemos menos. E sempre que eu ligo, você se mostra tão escorregadia... quase hostil. Por que? Fiz alguma coisa errada?

Sinto pena dela, mas penso que eu também sento a mesma coisa a respeito deles. Eram casados há tanto tempo, e  como viviam sem filhos desde sempre,  acho que me afastar seria melhor para todos.

-Não, tia. É que eu tenho sentido vontade de ficar mais sozinha, seguir, aprender a viver. Mas eu sei que posso sempre contar com vocês. Amo vocês dois.

-Nós também a amamos, Valentina. E por favor, vê se aparece por aqui. Traga seu namorado.

-Ok. A gente liga para marcar alguma coisa. Beijos, tia.

Mas até hoje, tal visita não aconteceu. Porque outras coisas aconteceram.

Estou em casa, mais ou menos cinco dias após minha conversa com tia Atena. É bem cedo ainda, manhã de sexta-feira, e estou pronta para ir à escola. Estou terminando de tomar café quando a campainha toca. Vou atender a porta, achando que é Tia Atena, mas para minha surpresa, deparo com alguém que eu jamais esperaria ver na minha porta algum dia.

Priscila.

Ela me olha. Eu a olho. Ela realmente me olha, da cabeça aos pés, talvez fazendo as mesmas comparações que eu fiz ao ver a foto dela. Ela parece triste, pois com certeza, chegou às mesmas conclusões que eu. Sinto vergonha por ela estar se sentindo tão humilhada. Vejo que lágrimas chegam até a beirada dos olhos dela. Mas ela as segura firme. Sinto que ela está arrependida de ter vindo. Ela abre a boca, como se fosse dizer alguma coisa, mas de repente os lábios dela se curvam para baixo e ela vira as costas, começando a se afastar da casa. Sem pensar, bato a porta atrás de mim e saio atrás dela.

Ela chega ao ponto de ônibus, e se senta no banquinho de madeira, sem me olhar. Eu me sento ao lado dela, e de repente, pego em sua mão. Nós nos encaramos. Digo:

- Vamos lá para dentro conversar?

Ela concorda com a cabeça, e sei que ela está com aquele nó horrível na garganta, que vai fzer com que ela transborde se tentar falar. Mas eu a conduzo de volta até minha casa. Abro a porta, ela entra e para para olhar em volta. Acho que ela nunca entrou em uma casa de verdade. Ela diz:

-É bonito aqui...

Eu a puxo, fazendo-a sentar-se no sofá. Ela se senta, e percebo que ela dá uma mexidinha nos quadris, tentando adaptar-se à maciez do sofá. Percebo que eu gosto dela. E isso não é bom. Ela me olha, aceitando o copo de suco que eu estendo para ela. Bebe um gole, depois mais dois, depositando o copo sobre a mesinha de centro. Priscila é uma menina tímida, percebo que ela não sabe como começar a falar comigo. Vejo os olhos dela furtivamente pousando sobre quase tudo na casa. Coisas que ela nunca teve. Ela demora-se sobre a lareira. A TV de 50 polegadas. A estante cheia de livros. Minha casa é um pouco bagunçada, mas aconchegante. Noto que se eu não disser nada, poderemos ficar ali durante muito tempo, então eu arrisco:

- Meu nome é Valentina. Mas acho que você já sabe. Como encontrou minha casa?

Ela gagueja:

- Eu me escondi no caminhão um dia. Queria saber aonde o Jonathan estava indo. Quando terminamos, ele não me disse nada sobre outra garota, mas eu sabia. Queria saber quem ela era... quem você é. Mas ele só me disse que nosso namoro estava morno demais, e eu achava melhor ficarmos apenas amigos. Jurou para mim que você nem existia.

Ela riu, eu continuei muito séria. Respondi:

- Ele veio aqui um dia buscar as roupas do meu pai... ele morreu há alguns meses, sabe.

-Sinto muito por você.

Senti sinceridade nas palavras dela.

- Então... nós começamos a conversar, ele um dia me disse que tinha namorada. Eu disse que não me envolveria em um triângulo amoroso. Então ele saiu daqui feito uma bala, nem se despediu. Depois ele voltou, dizendo que tinha terminado tudo com a namorada. Eu não sabia nada sobre você... quero dizer, antes de eu... antes de eu me apaixonar por ele.

A cada palavra que eu dizia, embora tentasse ser cuidadosa, eu sabia que a fazia sofrer. Mas ela precisava saber. Ela estava ali para isso. Não queria mentiras, nem seria justo.

Ela respirou profundamente:

- Sua casa é linda. Deve ser legal morar aqui.

-É. Quero dizer, acho eu já me acostumei, mas penso em vendê-la um dia. É muito grande só para mim.

-Como você consegue ficar aqui sozinha? Não tem medo?

Essa foi a primeira vez que pensei que morar sozinha em uma casa afastada poderia ser perigoso. Encolhi os ombros:

-Não sei... simplesmente nunca pensei nisso. Mas talvez eu devesse, sei lá.

Ela concordou com a cabeça.

-Mas acredito que você não está aqui para falar da minha casa, né?

- Não. Na verdade... fiquei surpresa quando você me reconheceu. Não esperava por isso.

- Jonathan me mostrou uma foto sua uma vez. Eu pedi a ele. Queria saber como você é.

Ela olha para si mesma, instintivamente levando a mão ao rabo de cavalo para ajeitá-lo. Algumas mechas de cachos escapam do elástico.  Ela alisa as calças jeans. Ergue as duas mãos deixando as palmas para cima, em um gesto de impotência:

-Bem, eu sou assim, como você está vendo. Não sou bonita, não sou glamourosa, não me visto bem. Cada peça que você vê em meu corpo foi doada por outras pessoas. Todas as minhas roupas são de segunda mão. Até mesmo esse anel no meu dedo. Mas eu tinha Jonathan, então tudo fazia sentido para mim. Até você chegar na vida dele e virar tudo de cabeça para baixo.

Ela ergueu a voz um pouco na última frase, me fitando.

-Escute, se você veio aqui para fazer eu ficar com pena de você, isso não vai funcionar.  Pensei que você fosse melhor que isso. Afinal, ele falou muito bem de você. 

Ela riu, erguendo-se do sofá e caminhando até o outro lado da sala:

-Pena de mim? Não preciso da sua piedade, Valentina. Só queria que você me entendesse. E eu vim porque eu estava curiosa sobre você. E sabe, você é bem mais bonita do que eu, enfim, eu perdi pra você.

- Que eu saiba, não estamos em uma competição, Priscila. Eu não tirei o Jonathan de você, eu não teria entrado nessa história se...

-“Se” o que? Quando ele te disse que tinha namorada, você poderia ter dado um pé nele.

-Mas como, se ainda nem estávamos namorando? E eu disse para ele que não seria um terceiro elemento na vida de ninguém!

Ela dá uma gargalhada maldosa, e eu me sinto tão oprimida, que deixo a sala.

Estamos ambas gritando. Vou até a cozinha e pego um copo de água, bebendo tudo. Ela vai atrás de mim. Recosta-se no alpendre, de braços cruzados, me olhando. Diz:

-Desculpa, eu não queria parecer grosseira.

Concordo com a cabeça:

-Nem eu.

-Sabe, minha vida não é nada fácil, e agora então... eu vim aqui porque não tinha outra saída! Eu estou grávida, e não quero abandonar meu bebê como a minha mãe fez comigo! Eu só tenho 17 anos, porra! Se eles descobrirem que eu estou grávida, vão tomar meu bebê e dar para adoção! É isso que eles fazem lá na Instituição.

Meu coração parece inchar, obstruindo a minha fala. Sinto meu rosto enrubescer: então ela está grávida do Jonathan! Cada palavra dela é como um punhal na minha garganta. Porque eu estou irremediavelmente apaixonada por Jonathan.

Eu me apoio na parede para não desabar. Olho para ela, que tem os olhos vermelhos, e vejo as lágrimas rolando no rosto dela. Digo a primeira coisa imbecil que me passa pela cabeça:

-Há quanto tempo você está grávida?

- Quatro meses.

Instintivamente, olho para a barriga dela, disfarçada pelo blusão de lã bem largo, cujas mangas cobrem as mãos.

-Ele sabe?

- Não. Ainda não. 

- E por que você não contou ainda?

-Porque eu ... porque ele terminou comigo. Na verdade, eu não sei o que eu vou fazer da minha vida. Mas achei que eu precisava vir aqui e contar a você.

Pronuncio as palavras mais árduas que eu preciso pronunciar:

- Você quer que eu termine com ele?

Ela demora a responder.

-Eu não sei... não sei se adiantaria alguma coisa. Isso não faria o Jonathan se apaixonar por mim de novo. Mas acho que  se ele resolvesse assumir o filho até eu fazer 18 anos, pelo menos ele poderia me ajudar. Já tem 21 anos. É maior de idade. Pelo menos isso já me deixaria mais tranquila. Ao mesmo tempo, o Jonathan não tem nada, nem um lugar para morar com meu bebê. 

Ela se senta na cadeira, colocando os cotovelos sobre a mesa e a cabeça entre as mãos. Priscila é o retrato do desamparo, do puro desespero. Ela precisava de um rumo, de um apoio. A única coisa que eu não deveria ter dito sai da minha boca, em palavras desajeitadas:

-Já pensou em tirar?

Ela me encara:

-O que? Matar meu filho? Nunca! Seria prático para você, não?

Percebo a tolice do que eu acabo de dizer:

-Me desculpe, isso foi... estúpido da minha parte. Desculpe. Eu quero ajudar. Como posso ajudar?

Ela diz, enxugando o rosto com a manga da blusa:

-Eu vou contar ao Jonathan hoje mesmo. Daqui a pouco, a barriga vai aparecer. A gente precisa tomar uma decisão. Depois a gente volta a conversar, quero antes ver a reação dele.

- Você acha que eu devo terminar tudo com ele, não é? Isso facilitaria as coisas?

-Não vim aqui pedir isso. Só vim porque estava curiosa sobre você.

-Mas você não está sozinha, Priscila, eu quero ajudar. Olha... eu... meu pai me deixou um apartamento que está alugado. Não é grande, mas... o contrato vence daqui a dois meses. Eu posso deixar você morando lá.

Ela balança a cabeça:

-Mas eu sou de menor, não posso morar sozinha. A não ser que eu me casasse.

Eu entendo logo a lógica daquele drama. Eu tenho que abrir mão do Jonathan. Eu tenho que cortar pela raiz uma linda plantinha que já estava crescendo e se tornando uma linda planta tão verde e tão bonita.

-Eu sei que não.

Ela se aproxima de mim, mas eu me recuso a encará-la. Ambas estamos cheias de sentimentos confusos. Ela me diz:

- Vocês não precisam terminar. A gente se casa de mentirinha. 

-Mas você gosta dele.

- É verdade, eu gosto dele, mas do que adianta se ele não gosta mais de mim? Olha...  tudo isso que aconteceu não é culpa de ninguém, mas quem tem menos culpa disso tudo, é esse bebê que eu estou esperando.

Coisas práticas surgem em minha cabeça:

-Você já foi a um médico?

-Ainda não. Não tenho como ir sem que o pessoal da Instituição fique sabendo de tudo. 

-Ok, eu vou te levar no meu médico.

Vejo o pânico nos olhos dela.

-Não se preocupe, eu pago a consulta e os exames. E eu posso pagar. Vou ligar hoje mesmo para marcar uma consulta.

Ela hesita, e me olha desconfiada:

-Por que você faria tudo isso por mim?

Rebato:

-Por que não faria? Você está aqui, e precisa de ajuda. Ou é orgulhosa demais para colocar a vida do seu bebê em risco? Olha, Priscila, eu sou a única pessoa que pode te ajudar agora. Sejamos realistas, o Jonathan não tem um centavo no bolso. Ele me disse que o salário que ele recebe na instituição é bem baixo.

-Mas não é obrigação sua me ajudar.

Meus sentimentos estão misturados dentro de mim. Eu tenho pena dela, e a odeio ao mesmo tempo. Também odeio o Jonathan. Eu não queria estar envolvida em uma história como essa. Mas eu estou. Ela está aqui, na minha frente. Eu sou a única pessoa no mundo que pode ajudá-la. Na minha cabeça (meu pai sempre me ensinou a ser prática e a pensar rápido) eu já tenho tudo resolvido: eu vou pedir o apartamento quando o aluguel vencer, e o Jonathan se casará com ela, e os dois se mudarão para lá, e eu... eu vou para Paris. 



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