terça-feira, 6 de outubro de 2015

A OUTRA MARGEM - Parte I





Mais uma vez, Rayssa andou pela casa, estudando a posição dos móveis. Já anoitecia, e ela tinha acendido algumas luzes que davam aos cômodos uma iluminação indireta e aconchegante. O ruído do seu velho relógio cuco - herança de família, que pertencera á sua bisavó, avó e mãe - emprestava a tudo sensações delicadas que remontavam à riqueza de um lar. A cada hora, o pequeno pássaro dava o ar de sua graça, saindo da casinha e soltando um discreto trinado. Rayssa o tinha levado a um relojoeiro que substituiu o velho som repetitivo e irritante, característico dos antigos relogios cuco, por um único e discreto canto. Georgina, sua mãe, não ficara muito satisfeita com a mudança quando soube, através de um telefonema da filha naquela manhã, mas depois admitiu que o repetitivo "cuco-cuco-cuco" que a acompanhara durante toda a sua vida também a irritava. No fundo, admirava a coragem da filha em quebrar antigas tradições. Uma delas, tinha sido a obrigação do casamento na igreja católica, o que era quase uma exigência da família. Mas Rayssa foi firme: casar-se-ia em uma cerimônia simples na casa de campo dos pais, no começo da manhã, sem padres ou religiosos - apenas um juiz de paz. Aquilo escandalizou os sogros de Rayssa, que fizeram uma pequena cena ao receberem a notícia, mas que de nada adiantou.

Luciano logo estaria em casa. Ela queria que tudo estivesse perfeito para ele. Desejava que sua primeira casa própria, após três anos de casados, fizesse com que ele sentisse sempre alegria ao chegar em casa após um dia cansativo de trabalho. Era sexta-feira, e ela aproveitara o dia para terminar de desencaixotar a mudança e pendurar os quadros. Antes de determinar a posição definitiva dos móveis da sala, ela os empurrou de lá para cá em vários arranjos diferentes, até que encontrou a posição ideal; a poltrona bergére de seu marido ficaria junto à lareira, sobre um pequeno tapete onde ela colocara um confortável pufe, de costas para o  grupo de sofás que formavam um outro ambiente em volta do tapete vermelho felpudo. 

Mais adiante, próxima à cozinha, a sala de jantar, cuja mesa estava coberta em seu comprimento por um caminho de croché  azul-claro feito por sua avó, sobre o qual estava um vaso de flores do campo. Ela respirou fundo: tudo estava muito bonito. Tinha pendurado as cortinas novas, brancas leves  e esvoaçantes, que estavam abertas naquele momento, dando vista ao jardim iluminado e à piscina. No corredor, a passadeira nova, que substituiu a antiga que era curta demais. Ao passar pelo corredor, olhou para o espelho que colocou sobre o  console, e vendo suas roupas sujas e seu cabelo  preso em um rabo-de-cavalo com um elástico, pois não conseguira encontrar seu prendedor de madrepérola,  Raysa decidiu tomar um bom banho de banheira para estar totalmente descansada na hora do jantar.

Acendeu algumas velas em volta da banheira, enquanto a água morna a enchia, e foi pegar seu roupão de banho e os sais perfumados. Colocou uma música bem baixinho, e o som que vinha do aparelho do quarto chegava até lá ainda mais suave. Acendeu apenas a luz sobre o espelho, pois Rayssa não gostava de luzes fortes acesas pela casa. Achava que a noite tinha sido feita para relaxar, e as luzes fortes demais impediam que o corpo se preparasse para o momento de descanso devidamente. Além disso, um ambiente à meia luz remetia à sensualidade, é claro. Entrou na banheira, mas não sem antes de testar a temperatura da água: perfeita! Deixou que seu corpo fosse se entregando aos poucos à deliciosa sensação da água quente e perfumada, e fechou os olhos, deitando a cabeça sobre uma toalha dobrada.  Poderia dormir, de tão relaxada que se sentia. 

Do outro lado da cidade, uma mulher de meia-idade andava de um lado para o outro, medindo o quarto onde estava. Segurava nas mãos um prendedor de cabelos que pertencia a outra mulher. Ela o pegara na casa desta, naquela manhã, sem que a outra percebesse. Não sabia ainda porque fizera aquilo, mas de repente, ao percorrer a casa onde era conduzida em uma visita por sua anfitriã, sentiu uma necessidade quase dolorida de pegar aquele objeto, que parecia brilhar sobre a cômoda apenas para chamar sua atenção. Tentou resistir, mas o objeto parecia exercer uma estranha magia sobre ela, chamando-a para que o pegasse e o levasse dali, o que ela fez assim que a outra mulher saiu pela porta em direção ao corredor, enquanto tagarelava sobre o trabalho que tiveram durante a mudança. Joana - a mulher de meia-idade - olhava com um sentimento invejoso e um sorriso falso, enquanto a nora, sem nada perceber, servia-lhe um chá na sala recém arumada. Olhou em volta, e o sorriso, que morrera no momento exato em que Rayssa entrou na cozinha para pegar biscoitos, voltou ao seu rosto maquiado quando a nora ofereceu-lhe um dos biscoitos de nozes feitos por ela mesma, mas que Joana recusou com uma desculpa sobre estar de dieta.

Dez minutos depois de tomar seu chá, Joana olhou no reloginho de pulso, e levantando-se, disse que precisava voltar para casa, pois seu marido precisava tomar os remédios, e ele sempre se confundia quando ela não estava lá para administrá-los ela mesma:

-Você sabe como são os homens, não é, Rayssa? Totalmente dependentes de nós! (mal sabia ela que dentro em breve, o marido estaria mais dependente dela do que nunca).

Rayssa sorriu, mas sem concordar, e recomendou:

-Dê lembranças minhas a Carlos. Venham os dois, com mais calma da próxima vez!

Rayssa levou a sogra até a porta, e quando a viu entrar no táxi, teve a impressão de que um peso enorme havia sido tirado de suas costas. Ela sempre se sentia assim quando estava próxima de Joana, embora tentasse ignorar aquele sentimento. Era a mãe de Luciano, e agora que ambos tinham se mudado para a mesma cidade que os pais dele viviam, passariam a se ver com frequência, o que fazia que fosse necessário que as duas se entrendessem bem. Rayssa lembrou-se das pequenas indiretas que a sogra jogara sobre ela nas vezes em que estiveram juntas. Indiretas que surgiam sempre que Luciano ou Carlos não estavam por perto. Ela achava que era apenas uma rivalidade natural entre nora e sogra e tentava não dar muita importância, até que num domingo quando ambas estavam sozinhas na cozinha enquanto os dois homens assistiam a um jogo de futebol na sala, Joana olhou para ela com hostilidade mal controlada, e disse:

-Você soube mesmo roubar meu filho da noiva. Fez tudo o que foi preciso para que ele se casasse com você não é?

Desconcertada, pois não estava preparada para aquele tipo de agressão, Rayssa abriu a boca para falar, mas a voz não saiu. Aproveitando a perplexidade dela, Joana continuou:

-Farei o possível para que Luciano seja feliz, mesmo que ele ache que a felicidade dele está ao seu lado, mas preciso ser sincera: você não me engana, Rayssa. Fez com que ele terminasse um relacionamento de anos com Cláudia!

Rayssa conseguiu dizer:

-Espere aí, Joana... quando começamos a namorar, eles já estavam separados há meses!

-Joana interrompeu-a:

-Isto é o que você diz. Mas eu sei que quando você apareceu na vida dele como se tivesse caído de pára-quedas, Luciano teve a cabeça virada por você. Mas eu sempre tentei olhar tudo pelo lado positivo, ou seja, se você foi tão persistente, com certeza é porque gosta dele de verdade.

O que mais surpreendia Rayssa, não era apenas o que a sogra estava dizendo, mas o tom de voz controlado e o rosto sorridente que ela mantinha, enquanto dizia aquelas palavras que a feriam profundamente. Qualquer um que entrasse na cozinha naquele momento, diria que ambas estavam trendo uma conversa leve e amigável. Rayssa ficou tão perplexa, que não conseguiu responder. Sentiu que lágrimas afloravam em seus olhos, enquanto seu rosto queimava.

Joana olhou-a bem dentro dos olhos, com ar vitorioso, e deu-lhe alguns tapinhas amistosos no ombro, dizendo:

-Vamos levar o café para os homens, querida. Eles estão esperando. Vamos.

E saiu pela porta, carregando a bandeja como se nada tivesse acontecido.

Após aquela noite, na qual permaneceu a maior parte do tempo calada, Rayssa também ficou calada durante todo percurso de volta para casa. Luciano a olhava de soslaio enquanto dirigia, até que perguntou:

-Algum problema?

Ela pareceu estremecer, voltando à realidade, e tentou sorrir:

-Não... por que?

-Você está tão calada, amor...

-É só cansaço... preciso acordar cedo amanhã, acho que vou tentar dormir um pouquinho durante a viagem, se não se importa.

Dizendo aquilo, ela fechou os olhos e fingiu dormir durante as quase duas horas de percurso entre a casa dos sogros e a deles.

Rayssa trabalhava em uma revista feminina, para a qual escrevia artigos quinzenais. Também escrevia livros para crianças.  Trabalhava em casa, o que a deixava com muitas horas livres. Tinha muitos amigos no trabalho, mas via em Georgina, sua mãe, a sua melhor amiga. 

Georgina era uma bonita mulher de cinquenta e cinco anos, que tinha uma vida social intensa, muitos amigos e trabalhava em projetos sociais desde que o marido morrera ainda bem jovem, de câncer, há seis anos. Após o luto, ela respirou fundo, ergueu a cabeça e decidiu que ainda tinha o resto de sua vida para viver. Também compreendeu que podia  ajudar pessoas a passarem por aquela doença terrível de maneira menos sofrida, e assim, transformou sua casa de campo em uma casa de passagem para pacientes e seus acopanhantes, que vinham de longe para tratarem-se de sua doença. Chamou sua casa simplesmente de Segundo Lar, e ela a administrava organizando eventos para arrecadar dinheiro, que era totalmente investido em bens necessários aos pacientes e  em obras de ampliação para que ela pudesse receber cada vez mais pessoas. Não cobrava nada pela ajuda que oferecia. A instituição tambem pagava por exames quando os pacientes não podiam pagar eles mesmos. 

Rayssa tinha grande admiração pela mãe, e ambas eram muito unidas. Quando Luciano sugeriu que se mudassem para sua cidade natal, a fim de que pudesse ficar mais próximo do pai, que descobrira estar sofrendo de Alzheimer em fase inicial, ela ficou desolada. Mas Georgina abraçou-a forte, e deu-lhe coragem:

-Você deve acompanhar seu marido neste momento difícil, filha. Estaremos sempre em contato. A internet é uma caixinha mágica. E sempre há os finais de semana, nós nunca estaremos realmente separadas. E bem, você sabe do meu trabalho aqui, e agora que as obras de ampliação estão no final, ele ficará triplicado. Terei até que contratar mais ajudantes para cuidar de tudo. É até melhor que eu possa dedicar mais tempo ao Segundo Lar, o que não é possível com você me telefonando a toda hora... 

Dizendo aquilo, ela deu um sorrisinho implicante, encolhendo os ombros, e Raysa soube que sua mãe ficaria bem. Ela sempre ficava. Era a pessoa mais forte que conhecia. 

Pensou em contar a ela sobre o episódio na cozinha dos sogros, mas achou que não seria preciso deixá-la preocupada. Engoliu seu segredo com um gole de café e um pedaço de bolo. Não queria tornar-se uma preocupação a mais para sua mãe. Tentaria lidar com o problema da melhor forma possível, já que após o episódio na cozinha de sua casa, Joana nunca mais tocara naquele assunto mórbido e absurdo.

Ao contar-lhe sobre a doença do marido, após uma consulta médica para descobrir a causa de seus recentes esquecimentos e desorientações, Joana pareceu-lhe tão frágil que Rayssa chegou a sentir pena dela. Segurou a mão da sogra, enquanto esperou que ela se acalmasse, até afirmar que poderiam contar sempre com ela e com Luciano para o que desse e viesse. Entre lágrimas, Joana olhou para ambos e declarou:

-Eu não vou conseguir lidar com tudo isso sozinha, meus filhos. Preciso da ajuda de vocês.

Luciano sentou-se do outro lado do sofá, de modo que Joana ficou entre ele e Rayssa, e abraçando-a, confirmou o que Rayssa tinha dito:

-Estaremos sempre com vocês, mãe. Pode contar conosco.

Joana balançou a cabeça, concordando, e após assoar o nariz em um lenço de papel que carregava na bolsa, ela ergueu-se do sofá e caminhou até o outro lado da sala, voltando-se para encarar o filho e a nora, que continuaram sentados no sofá:

-Se posso realmente contar com vocês, então tenho um pedido a fazer.

Rayssa gelou: será que ela pediria para morar com eles? Notou, após um breve olhar, que Luciano também estava apreensivo.

Joana disse:

-Queria que vocês estivessem mais próximos. Gostaria que se mudassem para perto de nossa casa.

-Mas mãe, vocês vivem em outra cidade! Meu emprego e o de Rayssa é aqui, e nós...

Joana interrompeu-o:

-Tem razão, é... é uma bobagem minha. Imaginem, como eu poderia pedir que vocês largassem tudo para cuidar de dois velhos? E um deles, tão doente. Não, vocês são jovens e tem a vida toda pela frente, enquanto nós já estamos na reta final. Não se preocupem, o problema é nosso, ou seja, é meu, e tenho que lidar com ele sozinha.

Rayssa sentiu no ar um cheiro de manipulação emocional, mas nada disse, apenas ficou esperando que Luciano se manifestasse. Ele disse à mãe que precisava de um tempo para pensar e tomar uma decisão. Naquela noite, ele e Rayssa tiveram sua primeira briga.

Na manhã seguinte, uma Rayssa de olhos vermelhos e inchados tomava café na mesa da cozinha. Luciano aproximou-se, abraçando-a por trás e pedindo desculpas.

-Sinto muito, amor. É que está sendo muito difícil para mim. Você sabe, sempre fui muito próximo do meu pai, e saber que em breve ele nem sequer se lembrará de mim...

Ele começou a chorar. Rayssa levantou-se, abraçando-o. Passara parte da noite na internet fazendo pesquisas sobre o mal de Alzheimer, e vira a gravidade do problema. Sabia quase que exatamente o que o marido e a sogra teriam que enfrentar, e decidiu ser mais solidária:

-Tudo bem, amor. Nós vamos morar  mais perto dos seus pais. Você pode pedir transferência para lá, e eu posso trabalhar de qualquer lugar, já que fico o tempo quase todo no computador e só vou ao escritório duas vezes por semana. Tentarei reduzir minha ida a uma vez por semana. Eles vão entender.

Ele virou-a para si, olhando nos olhos dela:

-Obrigada, Rayssa. Você não sabe o que isso significa para mim.

Ao ficar sabendo da notícia, Joana deu vivas de alegria. Carlos, que ainda tinha muitos momentos de lucidez, agradeceu-lhes profundamente, com lágrimas nos olhos. Fez questão de adiantar a herança do filho para que eles pudessem comprar uma excelente casa própria, em um bairro ótimo, a trinta minutos de distância deles. E assim, encontramos Rayssa e Luciano, em seus primeiros dias na nova casa.


(continua...)




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