quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE VIII - FINAL




 




Os dias acumulavam-se uns sobre os outros, e mais pessoas iam chegando ao nosso pequeno oásis, todas elas cansadas e desiludidas, mas após algum tempo por ali, logo percebiam a importância de sua difícil caminhada, e que a perda de seus entes queridos, que não haviam conseguido chegar, como elas, não tinha sido em vão. Todas as pessoas pareciam perfeitamente integradas umas às outras, o que fazia com que não houvesse conflitos, disputas ou necessidades de liderança. Sara Explicou-me que nos outros oásis o mesmo acontecia. Eu queria muito repartir aquele segredo com alguém, mas ela novamente advertiu-me para que eu não o fizesse, ou ela seria obrigada a provacar-me o esquecimento total sobre o que eu sabia, o que significava a volta das preocupações com meus filhos , as insônias e o medo. Optei por calar-me.

Às vezes Renan me perguntava por que eu estava tão pensativa, e para disfarçar, eu dizia que estava preocupada com nossos filhos. Ele me abraçava, e ficávamos assim por algum tempo, partilhando o silêncio. Eu sentia que ele queria me dizer alguma coisa, e ele também sentia que eu guardava algum segredo, mas nenhum dos dois ousava fazer perguntas um ao outro a esse respeito.

Alí onde estávamos, não havia doenças. Ninguém adoecia. O sol quente parecia não exercer qualquer efeito nocivo sobre a pele daqueles cujo trabalho era ao ar livre, a arar a terra, cuidar das plantas ou construir abrigos novos. A comida e a água eram sempre suficientes, e ninguém fazia perguntas sobre como aquilo poderia estar acontecendo, e nem sentia vontade de desperdiçar ou usar mais que o necessário. Trabalhávamos durante o dia, e à noite, partilhávamos momentos do lado de fora, em volta de alguém que tocava um violão, contava uma história ou de pequenos grupos que encenavam peças de teatro quase improvisadas. Fazíamos oficinas de arte para entreter as crianças. Não mais dispúnhamos de eletricidade a maior parte do tempo, por isso, mal sabíamos do que se passava do lado de fora do nosso oásis. Havia um gerador, mas na verdade, todos concordamos em silêncio em não nos perturbarmos pelo que acontecia lá fora: simplesmente, não queríamos saber.

Havia algumas sessões de cinema, quando Renan ligava o gerador e passava um dos filmes de sua extensa coleção. Também gostávamos de ouvir música, mas, pouco a pouco, escutar notícias deixou de ser um hábito ou uma necessidade.

Eu contava o tempo, enquanto via meus filhos em sonhos. Eles estavam bem, e eu sabia que eles também não se preocupavam conosco, pois tinham também o conhecimento de que estávamos todos bem. 

Hoje, quando penso naqueles dias, concluo que vivíamos num isolamento voluntário e feliz. Havia muita coisa que não sabíamos, e nem queríamos saber. Quando chegavam novos moradores, ainda sob as influências perniciosas do mundo lá fora, eles nos contavam sobre o que estava acontecendo, e nós os escutávamos, mas pouco a pouco, eles deixavam de falar no assunto, e ninguém fazia perguntas.

Uma noite, acordei de repente com sons tamborilando sobre o telhado. Imediatamente, acordei Renan, e nos encaminhamos para fora, onde todos os outros já estavam, alguns com os braços erguidos em direção ao céu, recebendo na pele os pingos de chuva que começavam a cair. Nós nos juntamos a eles, numa festa alegre e frenética, e quando a chuva começou a cair forte, vimos a água entrenhar-se aos poucos nas rachaduras da terra, que logo se fechavam, e as árvores mortas em volta tornarem-se novamente verdejantes. O calor forte arrefeceu. 

Quando a chuva parou, nos vimos todos dispostos em um grande círculo, no centro do qual encontrava-se Sara. O dia amanhecia. 

Olhei para o portão, que estava aberto, e vi duas pessoas na rua, caminhando em direção à casa, ao longe. Mal pude conter um grito de alegria: eram Bruna e Ian! Renan e eu nos entreolhamos, e corremos para receber nosso filhos com abraços e muitas lágrimas. Junto com eles, aos poucos, outras pessoas que não conhecíamos começaram a chegar. As pessoas do nosso oásis as abraçavam, assim que reconheciam nelas seus entes queridos.

Ficamos durante um bom tempo naquela festa de boas vindas, até que alguém nos chamou para o café da manhã. Nos encaminhamos para o grande refeitório que havia sido construído, onde todos nós desfrutamos de uma refeição farta e alegre na companhia daqueles que tanto amávamos. De repente, todos nós nos lembramos de algo: onde estava Sara?

Todos, inclusive as outras crianças, a procuramos por todos os lugares, mas não havia nem sinal dela.   Fui invadida por uma grande melancolia, exatamente como quando eu soube que meus filhos estavam perdidos de mim. Todos nos sentamos e começamos a partilhar nossos segredos. Foi algo natural. Descobri que tudo aquilo que eu soubera através de Sara, os outros também souberam, e que não partilhar o segredo dela uns com os outros era parte da nossa prova. 

Mas seu último segredo, ela jamais contou a ninguém. 


FIM





3 comentários:

  1. Que história linda Ana, quantas provas,
    só 1 anjo para manter unidas pessoas
    diferentes.
    Obrigada, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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  2. Amiga Ana, gostei deste conto de leitura agradabilíssima.
    Um abraço daqui do sul do Brasil. Tenhas uma linda tarde.

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  3. Pra mim, bastava a última frase pra fechar com chave de ouro, esse belíssimo conto de solidariedade e amor ao próximo.

    Bacios cara mia

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