terça-feira, 13 de outubro de 2015

A OUTRA MARGEM - PARTE IV






Aquele sábado amanheceu nublado e cinzento, assim como o espírito de Rayssa. Mal abriu os olhos, ela lembrou-se de que teria que ir até a casa da sogra naquela tarde, o que fez com que um arrepio de mau pressentimento subisse pela sua espinha. Ela levantou-se da cama, escovou os dentes e foi preparar seu café ainda de camisola, já sentindo os primeiros acordes de uma dor de cabeça fininha que se aproximava. Após comer alguma coisa, engoliu um comprimido. Abriu o computador e tentou trabalhar, mas faltou-lhe a concentração necessária para tal. Ainda conseguiu revisar o artigo do mês para a revista, e mandou-o por e-mail, dando seu dia de trabalho por encerrado às onze da manhã. 

Escutou o celular avisando que tinha mensagem: era Joana: "Não se esqueça de nossa reunião hoje à tarde, amada. Beijos."  Rayssa teve outro calafrio ao ler a mensagem. Amada?! Joana nunca tinha se referido a ela daquela forma. Lembrou-se da mãe, e preferiu acreditar que aquele chá seria uma tentativa de reaproximação. Rayssa saiu e deu uma corrida de meia hora, mas como os primeiros pingos grossos começaram a tamborilar sobre sua cabeça, ela voltou para casa. Encheu a banheira com seus sais prediletos e mergulhou em um longo banho. Ao prender os longos cabelos com um nó sobre a nuca para que não se molhassem, sentiu falta de seu prendedor de cabelos de madrepérola, presente de sua avó, que havia desaparecido no dia da mudança. Por onde ele andaria?

Rayssa ficou bastante tempo no banho, até que notou que a pele de seus dedos começou a ficar marcada pela água. Enrolada no robe, foi até a cozinha e tirou uma salada da geladeira, que ela mesma tinha preparado no dia anterior. Fez torradas com duas fatias de pão de forma e sentou-se para comer. Lá fora, chovia torrencialmente agora, e ela deixou-se entrar em transe com o barulho da chuva caindo sobre o telhado da varanda. Acabou adormecendo no sofá, em frente a TV.

Acordou sobressaltada: Só tinha meia hora para vestir-se e chegar na casa de Joana! Vestiu a calça jeans desbotada de sempre, uma blusa de malha branca, botas de cowboy e uma jaqueta jeans. Olhou-se no espelho, e achou que deveria ter se arrumado melhor, mas não dava mais tempo. passou um batom cor-de-boca, escovou os cabelos com força, deixando-os cairem macios e brilhantes sobre as costas, agarrou a bolsa e saiu.

A chuva já tinha parado, e poças haviam se formado sobre o asfalto. Rayssa achou melhor ir caminhando, pois a tarde estava fresca e agradável, os raios do sol filtrados entre as densas nuvens quase negras, dando a tudo em volta um ar surreal. Chegou dez minutos atrasada, mas achou que não era grande coisa. Antes de tocar a campainha, parou à porta e respirou fundo. Joana veio abrir a porta para ela, abraçando-a calorosamente - embora Rayssa tivesse percebido alguma coisa muito estranha naquele abraço.

Mal entrou, deparou com a moça sentada no sofá, elegantemente vestida, e sentiu seu perfume penetrante. Ela segurava a mão de Carlos, enquanto conversava com ele, dizendo-lhe palavras suaves e encorajadoras sobre sua doença, que Rayssa ainda conseguiu captar:

-...e nos dias de hoje, é possível retardar o avanço da doença, Carlos. Você vai ficar bem. 

Rayssa sentiu que a sogra olhava fixamente para ela, como se estivesse saboreando o impacto do sentimento de Rayssa, ao vê-la de pé em frente a Cláudia. De repente, o olhar de Carlos dirigiu-se a ela, e ele levantou-se, abraçando a nora. Naquele momento, Cláudia também viu Rayssa, e pôs-se de pé, parecendo um tanto constrangida. Rayssa abraçou o sogro, que segurou suas mãos dizendo o quanto ela parecia linda e radiante, e quando ele se despediu, dizendo que deixaria as "meninas" em paz, mas Joana segurou-o pelo braço; Rayssa  olhou para Joana, como a perguntar o que significava aquilo. Joana abriu um sorriso ao explicar-se:

-Querido, veja, esta é a nossa nora querida, Rayssa; aquela moça lindíssima com quem você esteve conversando é Cláudia. Está menos confuso agora?

Carlos olhou de uma para outra, e depois fitou a esposa com mágoa no olhar:

-Eu sei muito bem, Joana, quem é Cláudia e quem é Rayssa. Por enquanto, pelo menos. Bem, agora se me dão licença, há uma partida de futebol que eu gostaria de assistir. -E sorrindo: -Fiquem à vontade, moças lindas.

Dizendo aquilo, Carlos encaminhou-se para seu quarto. As três mulheres ficaram de pé, até que Joana convidou-as a sentarem-se novamente, ocupando ela mesma a poltrona e obrigando Rayssa a sentar-se no sofá, junto com Cláudia, apresentando-as brevemente - mesmo sabendo que as duas já se conheciam por fotografias. As mulheres olharam uma para a outra, acenando friamente. 

Cláudia, que sentia o rosto vermelho,  virou a parte de trás da cabeça para Rayssa, fingindo checar as mensagens do seu celular dentro da bolsa, e naquele instante, Rayssa notou a presilha de madrepérola no cabelo da outra. A sua presilha de madrepérola! Seu coração deu um salto e quase saiu pela boca. Ela tentou falar, mas não sabia o que dizer. Olhou para Joana, que parecia não ter percebido nada. Joana tagarelava alegremente, falando sobre o tempo e prevendo chuva para aquela noite. Depois, como ninguém respondesse, começou a falar sobre a receita do bolo que serviria com o chá. Mas Cláudia começou a levantar-se, ainda muito sem graça, sentindo o clima tenso e a reação negativa que sua presença causava em Rayssa. 

-Sinto muito, mas já fiquei tempo demais, Joana. Ainda tenho um compromisso no comecinho da noite. Tenho que ir agora.

Despediu-se  de Rayssa, com um frio "Até."  Segundo Cláudia notou, a moça tinha os olhos rasos de lágrimas, e sem que houvesse qualquer tipo de protesto vindo da ex-sogra (o que não era natural) para que ficasse mais um pouco, Cláudia foi levada por ela alegremente até a saída. Para Joana, Cláudia já tinha cumprido sua função, e não precisava mais dela.

Rayssa estava tão estarrecida por ter visto sua presilha de madrepérola enfeitando os cabelos da ex de seu marido, que não conseguia falar. Joana saboreava sua vitória em silêncio, na cozinha, enquanto preparava a bandeja de chá. Sabia que tinha se arriscado muito ao convidar Cláudia e Joana para o chá no mesmo dia, e em ter pedido a Cláudia que chegasse uma hora antes para que ela mesma tivesse tempo hábil de presenteá-la com a presilha de cabelo de Rayssa antes que esta chegasse. Mas conhecia um pouco a nora, e sabia que ela não era dada a escândalos, e que por isso não questionaria Cláudia sobre a origem da presilha. 

Rayssa mal conseguiu engolir um gole de chá, apesar do cheiro delicioso das ervas escolhidas por Joana. A fatia apetitosa de bolo permaneceu no prato, intocada. Joana era toda gentilezas. Perguntou se ela não estava gostando do chá, já que não tinha tocado em nada, e Rayssa percebeu um tom de ironia em sua voz. Mas ao olhar a sogra nos olhos, encontrou o olhar mais inocente do mundo, e pensou estar imaginando coisas. Alegando não estar se sentindo bem, Rayssa despediu-se vinte minutos após a saída de Cláudia. Joana mostrou-se preocupada, e convidou-a para passar a noite, mas a ideia de passar uma noite na companhia de Joana só fez com que Rayssa sentisse seu estômago embrulhar de verdade.

Quando chegou na rua, Rayssa respirou profundamente. Já estava escurecendo, e ela foi andando pela calçada, os olhos turvos de lágrimas, tirando suas próprias conclusões sobre aquela tarde: Luciano estava saindo com Cláudia, e tinha dado a ela a sua presilha de cabelo, uma herança de família! Como ele poderia agir daquela forma com ela? Tinha largado tudo por ele, sua cidade, a companhia da mãe e dos amigos, tudo para ajudá-lo a ficar mais perto dos pais durante a doença de Carlos! Abrira mão de coisas que eram convenientes para ela para que ele pudesse estar mais confortável, e era assim que ele retribuía? 

Estava tão envolvida por seus pensamentos, que nem viu um sedan vermelho aproximando-se dela devagar.

Sobressaltou-se, porém, quando o carro buzinou. Ela levou a mão ao peito em um gesto espontâneo, e inclinou-se para ver quem a estava chamando: era Cláudia. Não soube o que fazer, como agir, quando viu a porta do carona se abrindo e a voz de Cláudia, sua rival, chamando-a para entrar. Num impulso, ela viu a si mesma entrando no carro e batendo a porta. Teria que resolver aquela situação de uma vez por todas. Virou-se de frente para Cláudia:

-Eu nem sei por onde começar, o que dizer...

Não queria que sua rival a visse chorando, e respirou fundo a fim de tomar fôlego e conter as lágrimas, mas quando ia abrir a boca para começar seu discurso de mulher traída, Cláudia a interrompeu:

-Não nos conhecemos, Rayssa, mas eu já estive aonde você está várias vezes. Preciso que me escute.

Rayssa ia protestar, mas achou melhor conter-se e escutar o que a outra tinha a dizer. Cláudia colocou uma mecha cabelo atrás da orelha, e seus olhos verdes piscaram repetidamente antes que ela prosseguisse:

-Em primeiro, lugar, não há mais nada entre mim e Luciano. Há muitos e muitos anos. Eu conheço Joana muito bem, e sei o que ela está tentando fazer.

-E o que seria?

-Ora, o que ela já fez muitas vezes antes: separar seu filhinho da namorada malvada. 

Rayssa olhou-a com desconfiança:

-E como você sabe?

-Bem, eu acabei virando melhor amiga da ex de Luciano, a que veio antes de mim. Por mero acaso, eu a conheci em um bar há alguns anos. O nome dela é Roberta. Eu não sabia quem ela era, até que começamos a conversar. Vimos que nossos relacionamentos passados tinham muito em comum, e acabamos chegando à conclusão que tínhamos namorado o mesmo homem: Luciano. E que ambas tínhamos nos separado dele devido a intrigas e armações de Joana. Mas já era tarde demais para mim, pois ele  tinha conhecido você.

Rayssa mal podia crer no que estava escutando! Mas... e a presilha?

-Mas se é verdade, me diga como a minha presilha de cabelo foi parar no alto da sua cabeça, se não foi um presente do próprio Luciano!

Cláudia levou a mão à cabeça instintivamente, removendo a presilha. Daquela vez, Joana tinha ido longe demais:

-Isto?

Rayssa acenou, enquanto a outra colocava a presilha nas mãos dela. 

-Você nem desconfia, Rayssa? Joana me disse para chegar às três da tarde, e deu-a de presente para mim. Ainda alegou que você estava atrasada. Mas agora eu sei que ela fez tudo de propósito.

De repente, tudo fez sentido para Rayssa: é claro! Joana havia pego a presilha em sua casa, quando fora visitá-la pela primeira vez, e Luciano tinha saído para comprar café! Foi exatamente no dia seguinte que ela dera falta do objeto, que ficava sobre a sua penteadeira, em seu quarto.

Com o rosto em brasa, Rayssa escutou a própria voz proferir um palavrão. Cláudia pareceu surpresa, mas riu, descontraindo o ambiente. As duas mulheres se olharam, e riram. Cláudia falou:

-Parece que meu destino é tornar-me amiga das mulheres do meu ex.

Rayssa achou que devia desculpas a ela:

-Sinto muito por ter pensado mal de você, Cláudia...

-Ora, se fosse comigo, eu teria enchido a sua cara de tapas. Sou bem mais impulsiva que você, e agradeço por você ser a pessoa calma que é. Não se preocupe, eu entendo. O que mais você poderia pensar? Sua presilha aparece na cabeça da ex do seu marido. Ora... mas acho que Joana merece uma lição.

-Você está certíssima. Vou contar tudo ao Luciano assim que ele voltar de viagem!

Cláudia arregalou os olhos:

-Não! Ela dirá que tudo não passou de uma coincidência. Vai fazer a maior cara de vítima, vai usar a doença de Carlos (coitado) para se justificar. Vai dizer que foi tudo uma grande confusão, e acredite em mim, ele vai ficar contra você.

Rayssa estava assustada: como aquela mulher conhecia bem Luciano!

-Não, ele precisa acreditar em mim, ou então não vale a pena ficar com ele. Prefiro ir embora a ficar com um homem que duvide de mim.

Mais uma vez, Cláudia foi mais coerente que Rayssa:

-Escute, Rayssa: não nos conhecemos, mas as circunstâncias da vida fizeram com que conhecêssemos muito bem o mesmo homem. Pode ser que Luciano esteja diferente agora, mas se eu fosse você, não me arriscaria. Pense bem: ele está fragilizado com a doença do pai, que adora. Não abandonaria a própria mãe nestas circunstâncias, mesmo amando muito você. E quando a ordem é fazer-se de vítima, Joana é imbatível!

Rayssa pensou que a outra estava certa: lembrou-se de si mesma há alguns minutos, quando os olhos "preocupados" de Joana ofereceram-lhe a casa para passar a noite e ela convenceu-se de que estava sendo injusta com a sogra.

-E o que você faria, se fosse eu?

Cláudia olhou a outra bem fundo nos olhos antes de responder.

(continua...)






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