quarta-feira, 6 de julho de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 10


SEGUIR PARA TRÁS Parte 10


A viagem foi mais longa e mais solitária do que eu pensava que seria. Tomei remédio para ansiedade antes de embarcar, já que aquela seria minha primeira viagem internacional e sozinha. Meus tios me levaram ao aeroporto. Nos despedimos com abraços desajeitados, e eles me fizeram prometer que eu voltaria. Mas todos sabíamos que aquilo ainda não estava definido.

A tripulação foi muito gentil comigo quando repararam no quanto eu estava insegura. Uma das comissárias até conversou um pouco comigo, e quando pousamos, ela me deu algumas informações sobre como resgatar minha bagagem. Foi muito paciente e carinhosa. 

Segui os outros passageiros e esperei, como ela tinha me indicado, até que minhas malas passaram na esteira. Coloquei-as no carrinho, caminhei até a porta e lá estava minha avó me esperando.

Aquela mulher alta, de cabelos muito brancos elegantemente presos em um coque, é a minha avó. Ela me olha com seus olhos azuis (que nem são tão frios como sempre me diziam ser) e sorri. Vejo que ela está usando calças jeans estilo ‘flair’ e uma blusa branca de mangas longas muito chique, o tecido com caimento perfeito, um laço mole e branco escorregando do pescoço até o meio dos seios. Ela é tão bonita! Imediatamente, eu me lembro de minha mãe e do quanto ela era comum, sem atrativos especiais. Mas logo percebo alguns traços dela no rosto de minha avó. Aquilo me traz lágrimas aos olhos inesperadamente, e eu praguejo baixinho. Seco-as com as costas da mão enquanto caminho na direção dela, tentando parecer segura. Reparo no homem alto e forte, aparentando uns cinquenta anos ao lado dela; o motorista, suponho.

Já não nos vemos há muitos anos. Só conseguia me lembrar do rosto dela ao olhar as fotos. Ela agora parece bem mais velha, mas igualmente bela. Quando chego mais perto, ela me segura pelas mãos e me olha da cabeça aos pés; nos abraçamos, e sinto que o abraço dela é caloroso. Ela diz: “Seja bem-vinda!” enquanto faz sinal ao homem, que pega o carrinho com as minhas malas. Nós o seguimos até o carro, um sedan cuja marca desconheço, mas que é de um azul profundo e parece luxuoso. 

Paris nem é tão bonita assim. Parece uma cidade que já teve seus tempos áureos, mas que agora está um pouco suja. Vejo muita gente pelas ruas – imigrantes, conforme minha avó explica. Mas a Torre Eiffel é implacável, e não consigo segurar um “Uau” de admiração ao vê-la pela janela do carro. Minha avó comenta:

- Paris já foi bem melhor. Se quiser, podemos visitar a torre, mas hoje em dia está até um pouco perigoso, por causa de assaltos. Mas com certeza sua prima ficará muito feliz em levar você. 

-Olho para ela:

-Minha prima? A filha de Tia Agnes, irmã de mamãe?

Ela sorri:

-Claro! Quem mais? 

-Ela está aqui?

- Sim. Vai ficar algumas semanas. Quer conhecer você. 

- Mas... eu não falo francês!

-Não se preocupe. Georgette fala português fluentemente. Já morou e estudou em Portugal durante seis anos. Fez amigos por lá, e de vez em quando, passa algum tempo em Cintra. 

-E meu primo? Ele está aqui também?

- Rodolpho? Não, está morando em Londres. Estuda e trabalha por lá. Mora em uma república, imagine! Poderia ter seu próprio apartamento, mas acha mais divertido assim.

- E quanto ao Tio Charles?

Minha avó balança a cabeça levemente:

-Ele e sua tia se separaram há mais ou menos um ano. Ele vive longe daqui. Tem outra família. A mulher dele tem quase a metade da idade de Agnes, e eles tiveram um bebê recentemente.

Meu estômago dá voltas; ela estava me falando sobre a minha família, e eu teria que conhecê-los um dia. Sei que Tia Agnes é muito sofisticada (conforme meu pai vivia repetindo, ele a chamava de “Aquela metida da sua tia”, embora só tivessem se encontrado duas ou três vezes). E quanto a Georgette, eu não sei nada sobre ela. Só tinha visto uma foto que encontrei entre as coisas dele, depois que ele morreu. Na foto, ela é só uma criança, uma menina bonitinha de cabelos ruivos cacheados. Pergunto sobre meu avô, e ela diz:

- Ele está melhor, por enquanto, mas não sabemos como estará amanhã. A doença dele (o rosto dela se entristece) é um pouco grave, e com a idade...

- Olho para sua pele bem cuidada; sei que minha avó tem algo entre setenta e setenta e cinco anos, embora não aparente, mas que meu avô é bem mais velho que ela. Ela me sorri:

-Mas vamos falar de coisas boas. Como você tem se saído, agora que está vivendo sozinha?

Eu me espanto com a pergunta, pois sei que ela não deseja realmente escutar a história de minha vida desde que meu pai morreu. Por isso, demoro a responder, procurando as palavras certas. Mas acabo dizendo a pior coisa que eu poderia ter dito:

- Escute, vovó...

Ela me interrompe, rindo:

- Me chame de Joana, por favor. Meus netos não me chamam de vovó.

- Ok, Joana. Sei que você e meu avô não gostavam de meu pai. Vim aqui em busca de respostas. 

Ela arregala os olhos, erguendo as sobrancelhas tingidas. Vejo seus lábios se trasformando em uma letra ‘o’, e depois voltando lentamente ao lugar. Surge na minha mente a ideia de que a minha vida não anda para frente, só pra trás. Quanto mais eu me lanço em direção ao futuro, mais a vida me puxa para o passado. Mas compreendo que para seguir em frente, a gente precisa resolver as pendengas do passado. Minha avó põe os óculos escuros, que a deixam com aparência fria e impessoal. Ela diz alguma coisa em francês ao motorista, que começa a retornar, mudando de direção – sei, pois coisas que já tinham aparecidao à janela voltam a aparecer. Penso se ela não vai me levar de volta ao aeroporto, quando ela diz:

-Que respostas você está buscando, Valentina?

Aquilo me pega de surpresa, e hesito ao responder:

-Por exemplo... hã... por que vocês odeiam meu pai? Por que minha mãe praticamente cortou laços com vocês? 

-Você tem certeza de quer mexer nesse ninho de abelhas? Não acha que a vida é bem melhor quando aceitamos as coisas como elas são? Você tem a sua história, e mesmo que seus pais estejam mortos,  você tem uma vida inteira pela frente, para escolher viver como quiser. Talvez muitas coisas mudem, e essa mudança não vai ser para melhor.

Agora eu estou realmente curiosa. Ela parece estar me provocando. O rosto dela é totalmente inexpressivo por trás dos óculos escuros. Ela fecha o vidro que separa os assentos da frente do carro e o nosso. Acho isso chique. Penso, ao mesmo tempo, que talvez meus tios tenham razão, e que ela me convidou apenas para destruir a imagem que eu guardo do meu pai – um tipo de vingança póstuma? Mas isso não faz sentido.

A Torre Eiffel enfeita novamente a paisagem. Olho para ela, e penso que seria muito fácil subir até o topo e me jogar lá de cima, acabando com todos os meus problemas. Enfio a mão no bolso do meu casaco, e tateio meus comprimidos para ansiedade. Eles me trazem algum tipo de segurança. Eu me sinto pequena perto de minha avó... de Joanna. Ela me olha longamente, as mãos no colo, apertando os próprios dedos nervosamente, mas tentando aparentar frieza. Sinto que ela faz um esforço grande para não desmoronar emocionalmente. Joanna diz:

- Antes de qualquer coisa, quero que você saiba que não ter tido muito contato com você enquanto você crescia não tem nada a ver com falta de... amor da nossa parte. Fizemos de tudo, fizemos o possível para que você fosse parte da família, mas seus pais... minha filha... sua mãe, principalmente, não permitiu. No fim, acabamos desistindo de vez. 

-Por que foi assim? Por que minha mãe não ia querer que eu tivesse contato com vocês? Com os meus avós, tios e primos?

-Exatamente porque ela não queria que você descobrisse a verdade sobre ... 

Ela faz um gesto de negação com a cabeça. Retira os óculos escuros, me olha nos olhos, e eu vejo que eles estão úmidos. Ela os aperta com as pontas dos dedos. Eu espero. Pacientemente, em silêncio. Sinto que a minha vida vai mudar radicalmente, mais uma vez, a partir dali. Tenho vontade de pedir que ela pare o carro, e sair correndo de volta ao Brasil. Mas eu me seguro. E ela se solta, as palavras saindo de dentro de sua boca como uma forte enxurrada de águas há muito tempo represadas.

-Você... não é filha de minha filha Bia. Sua mãe se chamava... Fernanda.

Minha cabeça dá um nó. Fernanda, a primeira esposa de meu pai, era minha verdadeira mãe? Mas como? Tento manter a calma, Meus dedos abrem o envelope do remédio, dentro do bolso, e rapidamente levo um comprimido à boca, engolindo-o sem água, como já estou tão acostumada a fazer. Joanna (não posso mais chamá-la de minha avó) acompanha meu gesto, mas não diz nada. Ela continua:

-Você já escutou esse nome antes?

A percepção de que eu estou em um país estrangeiro, com uma pessoa que não é nada minha, me atinge como uma bala de revólver, e me sinto extremamente só. Sem querer, caio em um choro convulsivo. De pena de mim mesma. De ter sido tão enganada a  minha vida inteira, pelos meus pais, tios, pessoas que eu pensava serem a minha família...

Minha vó me passa uma caixa de  lenços de papel, mas antes, tira um para si mesma. Ficamos as duas chorando, sem nos olharmos, durante alguns minutos. Consigo dizer:

- E sei quem é Fernanda. Minha tia Atena, ela me contou que... Fernanda tinha sido a primeira esposa de meu pai.

Ela concorda com a  cabeça. Diz:

- Ela foi a primeira esposa de seu pai, e estava casada com ele quando ele e Bia se conheceram. Ela engravidou, morreu no seu parto, e seu pai e minha filha... tomaram você como filha natural deles. Seu pai tinha um amigo no cartório que fez a papelada toda. No início, eu e meu marido não concordamos, mas quando a vimos... tão pequena, inocente... nós a amamos no primeiro momento, e estávamos dispostos a fazer tudo por você, Valentina, mas queríamos que você soubesse da verdade. Não queríamos que você crescesse sem conhecer sua verdadeira história. Mas Bia foi contra. E seu pai também. Queriam que você acreditasse que era realmente filha de sua mãe. Por eles, você nem ficaria sabendo que Fernanda um dia existira. 

Minha cabeça começa a doer, mas eu sei que assim que o remédio surtir efeito, a dor passará e eu mergulharei em um confortável estado de semi-torpor. Eu não sei o que fazer com toda essa informação. Joanna continua, escolhendo as palavras agora com cuidado:

- Para nós, você é da nossa família, é a criança que Bia amou e cuidou, e que nós aprendemos a amar também, apesar da distância. 

Me lembro das poucas vezes que eles tinham me visitado, e do quanto tinham sido carinhosos comigo. Também das raras vezes em que nos falamos ao telefone ou através de aplicativo, e do quanto minha mãe sempre permanecia ao lado, monitorando a nossa conversa o tempo todo e decidindo quando ela terminaria. Depois, com meu pai, foi ainda mais difícil manter contato com eles. Ele dizia coisas terríveis sobre a família de minha mãe. Algumas daquelas coisas tinham influenciado a minha opinião sobre eles, de forma que não fiz mais questão de manter contato. 

Me lembro também de que ao arrumar o armário de meu pai, depois de sua morte, eu tinha queimado a única fotografia que eu poderia ter de minha mãe. E se a família dela perseguiu meu pai durante tanto tempo após a morte dela, por que haviam desistido de repente?

Pergunto aquilo à minha avó:

-Onde estão meus verdadeiros avós?

Vejo que ela se sente ferida com o que acabo de dizer, mas não saberia perguntar de outra forma. Ela responde:

- Sinto muito, Valentina, mas ambos já são falecidos. 

-E quanto aos meus tios, primos?...

-Fernanda era filha única. – Ela coloca uma mão sobre as minhas, que estão no meu colo: - Sinto muito.

Eu sinto aquele contato me incomodando, e retiro as minhas mãos de sob as dela. Não entendo o motivo, já que ela foi a única pessoa que me contou a verdade. Peço a  ela que me leve de volta ao aeroporto, mas ela me rebate:

-Por favor, Valentina, você está aqui, passe alguns dias conosco ao menos... nos dê uma chance de nos fazermos conhecer por você. Para nós, você é a nossa neta! Amamos você tanto quanto amamos nossa outra neta. Muitas vezes, a família da gente pode ser definida por outros laços que não os de sangue.

Odeio o que meu pai me fez, e esse ódio começa a ser algo pessoal. Ele mentiu sobre mim, sobre a minha identidade e a minha história; traiu  minha mãe verdadeira, e depois, a mãe que me criou. Envolveu a todos nessa mentira horrorosa e fez o que podia para que eu jamais soubesse da verdade, mesmo após a sua morte. Com a anuência e ajuda dos meus tios. Sinto que a vida que vivi até agora nunca foi minha.


(CONTINUA...)






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