segunda-feira, 16 de agosto de 2021

AS ESTRELAS QUE EU CONTEI - CAPÍTULO 10


 Capítulo 10


A morte de Tia Samira foi um dos eventos mais chocantes para todos nós, depois da morte de papai. Minha mãe andava sempre triste e cabisbaixa, calada e distante. Eu pensava demais nela, e em tudo o que as nossas vidas poderiam ter sido se ela não tivesse se apaixonado pelo nosso pai. Mas ninguém manda no coração, e Tia Samira, assim como mamãe, tinha sido uma mulher forte e apaixonada, que se jogava com força naquilo que acreditava. Era uma característica das mulheres daquela família, eu perceberia mais tarde.

Um mês se passou da morte de tia Samira, e aos poucos, fomos aprendendo a conviver com a realidade daquela perda; porque uma coisa, é a gente brigar com alguém que a gente ama muito, mas saber que a pessoa está viva em algum lugar, e que ainda pode ser feliz e quem sabe, a gente possa até mesmo fazer as pazes um dia. Outra coisa bem diferente, é saber que aquela pessoa se foi, e que nada que fizermos poderá trazê-la de volta para que a gente possa consertar os erros do passado.

Nós falávamos com nossos primos por telefone de vez em quando, e eles nos contavam sobre a nova vida que tinham. Não pareciam muito felizes, mas procuravam seguir em frente. Nós trocávamos ideias sobre nossos estudos e cursos no estrangeiro. Joana dissera ao pai que pretendia morar fora quando terminasse a escola, e ele não apenas aprovou a ideia como considerava mudarem-se todos juntos para algum lugar na Europa, onde poderiam continuar com suas vidas longe de todas aquelas lembranças tristes. Mais uma vez, ficaríamos longe uns dos outros durante bastante tempo – quem sabe, para sempre.

Afonso diminuíra o ritmo de trabalho, mas ainda pretendia diminuir mais. Eu e Sara sentíamos o quanto nós significávamos para ele. Era como se fôssemos suas filhas de verdade, e sabíamos que ele faria tudo o que pudesse para nos ver felizes. Era tranquilizador saber que poderíamos escolher qualquer coisa que quiséssemos fazer de nossas vidas, pois teríamos tudo o que precisássemos para alcançar nossos sonhos e metas. 

Afonso sempre me dizia que eu deveria entrar em um concurso literário, mas eu ainda não me sentia pronta. Ele procurava sempre me animar e encorajar, lendo meus manuscritos e sugerindo alguns detalhes. Era um tanto agradável ter alguém como ele ao meu lado, uma figura masculina forte e protetora. Sentia um pouco de culpa, pois eu tinha certeza que meu pai jamais teria conseguido ser como ele para nós. Papai tinha um coração meio-nômade, aventureiro e louco. Era um sonhador. Mantinha um dos pés no chão, mas o outro, estava sempre junto com a cabeça, nas nuvens. Este tinha sido um dos maiores motivos das brigas entre meus pais. 

Mamãe ficou bem mais triste do que Sara e eu. Andava perdida pela casa, falava pouco. Tentava se animar quando estávamos por perto, mas era como um arremedo de alegria. Todos estávamos tristes. Nossa família tinha perdido dois membros importantes e queridos – papai e tia Samira. Duas estrelas no meu céu de lembranças. Pensei em mamãe: ela perdera os pais também. Quanta gente já tinha ido embora de sua vida! Os pais, a irmã, o marido. Se não fosse por nós, ela estaria praticamente sozinha no mundo. Mas mamãe ainda era uma mulher jovem – tinha apenas quarenta e três anos.

Tínhamos Afonso conosco, e ele estava sendo mais do que um simples pai, mas um verdadeiro amigo, sempre presente. 

As pessoas que trabalhavam na casa, ao nos conhecerem melhor, também se tornaram um pouco mais doces e menos formais. Um dia, distraída, Sara entrou pela cozinha de manhã e deu um beijo no rosto de Elga, que estava lavando as xícaras. Ela corou, e sorriu. Eu achava que tínhamos formado um novo tipo de família, e me sentia novamente segura outra vez. Minha amiga Fernanda tinha passe livre na casa, e vivia por lá. Era uma casa feliz – a não ser pela nossa última perda.

Um mês após a morte de tia Samira, Afonso e mamãe nos deram uma boa notícia, logo após o jantar. Foi mamãe quem anunciou:

- Temos uma novidade: vamos viajar em lua de mel. Nós nos casamos, mas não tivemos uma.

Eu e Sara os entreolhamos, surpresas. Minha irmã perguntou:

- Para onde vamos? Quanto tempo vamos ficar longe? 

Eu a interrompi:

-Sara, é uma viagem de lua de mel. Isso significa que nós duas não estamos incluídas, sua enxerida.

Ela levou a mão à boca, dando uma risadinha. Afonso disse:

- Mas nós temos uma surpresa para vocês duas: as férias de dezembro estão chegando, e antes de viajarmos em lua de mel, vamos todos passar uns dias na fazenda. Depois do Natal, viajamos para a Inglaterra.

Batemos palmas de alegria. Mamãe disse:

-Acho que todos precisamos de uma mudança de ares.

Sara reclamou:

-Meu sonho é conhecer a Inglaterra...

Afonso prometeu que um dia, iríamos todos juntos. Ainda disse que conheceríamos o mundo todo. Ele ia promover uma pessoa junto com ele na companhia a fim de ajudá-lo, para que pudéssemos ter mais tempo para ficarmos todos juntos. Minha mãe corou de satisfação. Para ela, era muito importante o fato de que Afonso sempre nos incluía em seus planos. Ela ouvira falar de uma amiga de escola viúva que se casara de novo, e o marido não aceitava as crianças do primeiro casamento, colocando-as em colégios internos. Afonso jamais pensaria numa coisa dessas. Ele nos chamava de filhas – embora jamais tivesse exigido que o chamássemos de pai. Mas Um dia, pela manhã, Sara entrou correndo na cozinha (estava atrasada para o café) e disse “Bom dia, mãe, bom dia, pai.” Todos nós ficamos paralisados, nos entreolhando, enquanto ela se sentou à mesa e começou a tomar seu café da manhã normalmente, tagarelando sobre a prova que teria na escola. Vi que Afonso deixou escapar um leve sorriso de satisfação, ao responder: “Bom dia, filha.”

É, a vida sempre continua.

E assim, chegou dezembro.

A escola terminou, e começamos a planejar uma festa de Natal, que tinha sido tradicional na família de Afonso, e que ele gostaria de retomar. Assim, dizia ele, poderia apresentar sua família aos amigos. A festa não seria no dia de Natal, mas no dia 20 de dezembro. Mamãe estava muito nervosa em conhecer os amigos de Afonso – todos tão ou mais ricos do que ele. Ela sabia que não fazia parte daquele mundo. Eu e Sara nos sentíamos da mesma forma, e uma noite enquanto estávamos todos acomodados na sala, conversando sobre os preparatórios para a festa, quando sem querer, Sara deixou escapar a seguinte frase:

-Ai, meu Deus do céu, fico nervosa só de pensar em estar cercada por todas essas pessoas ‘bacanas...’ 

Mamãe a fuzilou com os olhos, embora se sentisse da mesma forma, mas antes que ela pudesse repreendê-la, Afonso disse:

- Meninas, eu sei que vocês estão preocupadas em conhecer meus amigos, mas quero que saibam que nenhum deles é mais importante do que vocês. Se vocês acham que não estão à altura deles, eu preciso concordar: vocês estão em um patamar muito mais alto. Sabem por quê? Porque vocês fazem parte da minha vida e moram no meu coração. E não se preocupem, eles não mordem. Tenho certeza de que ficarão muito felizes em conhecerem minha nova família. E isso vale para você também, Vanessa.

Todas ficamos felizes, mas constrangidas, e mamãe tentou se desculpar, mas ele disse a ela que ficasse em paz, segurando a mão dela:

- Eu tenho certeza de que você vai ser muito admirada, Vanessa. Afinal, será a mulher mais bonita da festa. Além disso, é inteligente, espirituosa e muito forte. Se eu pude ver em você essas qualidades, meus amigos também as verão. Vai dar tudo certo! Estarei sempre ao seu lado, não se esqueça. E Geraldo está acostumado a esses eventos, ele vai tomar conta de todos os detalhes. 

-Mas eu quero que tudo fique perfeito para você, Afonso – mamãe respondeu.

- Já está tudo perfeito. 

Ele a olhou tão apaixonadamente, que eu senti pena dele, pois eu sabia que mamãe jamais o amaria daquela forma. Mas sabia também que ela era sim, uma  mulher forte e leal, e que faria tudo o que pudesse para fazer de Afonso um homem feliz. Até pensei que a vida deles seria bem mais fácil justamente por ela não estar apaixonada por ele, e assim poder controlar melhor seu gênio forte. Há tempos mamãe não tinha um de seus ataques de fúria. Afonso a deixava tranquila em todos os sentidos. Ela gostava dele profundamente e o amava como a um grande amigo, e talvez para ela, naquela altura da vida, aquilo fosse o suficiente. Mas conhecendo minha mãe como eu a conhecia, e tendo visto o relacionamento que ela e meu pai desfrutavam, eu simplesmente sabia, apesar de ser apenas uma criança.

Finalmente, o dia da festa chegou. Nós, crianças, ficaríamos no salão apenas até as dez da noite, e após jantarmos na copa, iríamos para os nossos quartos. 

Quando as pessoas começaram a chegar, notei que Afonso segurava a mão de mamãe com muito orgulho, apresentando-a a todos os convidados. Achei que mamãe estava se saindo muito bem, e conseguindo conquistar a simpatia das pessoas. Os adultos cumprimentavam a mim e Sara com gentileza e depois nos esqueciam completamente. Não havia outras crianças na festa, então Sara e eu ficamos em um canto do salão, observando tudo. Havia cerca de cinquenta pessoas na casa, e nós não conhecíamos ninguém, o que era um tanto estranho para duas meninas que não estavam acostumadas com aquela situação. Foi um jantar à americana, descontraído, mas ao mesmo tempo, luxuoso. 

Geraldo e Helga tratavam de manter os convidados sempre bem servidos, entrando e saindo a todo momento com bandejas cheias de comidas e bebidas, enquanto Helena trabalhava na cozinha. Havia também mais dois garçons que tinham sido contratados para ajudar. 

Não me lembro de nada mais especial que tenha acontecido naquela festa. Às nove  e quarenta e cinco mamãe nos chamou para jantarmos na copa, na companhia de Carlos, o motorista, e então fomos dormir. Lembro-me de ter acordado por volta das três da manhã e a casa já estava em silêncio. E foi isso.

No dia 26 de dezembro, logo após o Natal, viajamos todos para a fazenda de Afonso, que ficava em uma cidade afastada no interior de Minas. Passaríamos o ano novo por lá e então voltaríamos para casa, e mamãe e Afonso partiriam em sua viagem de lua de mel. Geraldo nos levou até lá de carro e ficou de nos buscar no dia 3 de janeiro.

A fazenda era ainda maior que a casa onde morávamos, e o casarão antigo e bem conservado era branco de janelas azuis. Uma grande varanda circundava a casa. Amei as enormes janelas e portas, o chão de tábuas corridas, a cozinha enorme com piso de azulejos hidráulicos em tons de azul pastel (o mesmo piso da varanda). Tudo era grandioso, lindo, mas muito mais rústico e simples que a casa, e eu adoraria poder ficar morando lá para sempre. Havia na casa muitas pessoas trabalhando: os que cuidavam das hortas e dos animais, as cozinheiras, arrumadeiras e  lavadeiras, os que tratavam dos cavalos (Afonso tinha alguns puro-sangue) e o capataz, que comandava tudo. Nós, crianças, conhecemos algumas daquelas pessoas bem superficialmente, mas gostamos especialmente de Tamara, a governanta, uma senhora alta, robusta e enérgica que aparentava ter sessenta e tantos anos. Seus cabelos negros e grisalhos estavam sempre presos em um coque no alto da nuca, e seu sorriso largo e franco nos conquistou a todas prontamente. Ela andava pela casa cuidando de dar ordens aos empregados, tratando para que tudo estivesse ao gosto de Afonso e de mamãe. Era enérgica e incisiva, mas educada. O belo rosto de Tamara revelava que ela tinha sido uma linda mulher na sua juventude, e ela e minha mãe ficaram amigas quase imediatamente, apesar da diferença de idade. 

Mas quando conhecemos Rosália, a filha de Tamara, a impressão não foi das melhores. Ela nos olhou como se examinasse algumas espécies de ameba, os lábios curvados para baixo, e cumprimentou-nos com um leve aceno de cabeça. Notei que ela fuzilava minha mãe com os olhos. Ela era uma mulher bonita, talvez alguns poucos anos mais jovem do que mamãe, mas havia alguma coisa nela que me desagradava profundamente. Ela só era simpática com Afonso, que a tratava com respeito, mas sem intimidades. Ele parecia visivelmente constrangido quando ela entrava em um cômodo onde todos nós estávamos sentados, comendo u conversando. Rosália atravessava a sala, nos olhando com o canto do olho, carregando pilhas de roupas passadas, ou uma bandeja com café que depositava sobre a mesinha, e quando fazia isso, eu sempre a via desviar o olhar na direção de mamãe. Achei que aquilo acabaria sendo problemático, e acertei. Mas vou contar essa história mais tarde, no seu devido tempo. 


(CONTINUA...)







2 comentários:

  1. Amei esse blog!
    Quero ir com ele até o final, se não voar os céus.
    Gosto que remexam minha inteligência, pois a idade aumenta e com ela o esquecimento a abraça. Terrível!
    Adorei
    Meus parabéns
    Abraços
    Lua Singular

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