Eu gostava de
acordar bem cedo e caminhar sozinha pela fazenda, quando a neblina ainda estava
sobre os campos antes do sol nascer, e observar os trabalhadores ordenhando as
vacas, escovando os cavalos, arando o campo e colhendo lindos maços de verduras
que comeríamos horas depois no almoço. Eu já conhecia algumas pessoas, que me
cumprimentavam e me chamavam pelo nome, me oferecendo fatias de queijo
fresquinho, frutas ou doces em compotas que eram fabricados na fazenda.
Pensei que
aquela era exatamente a vida que eu gostaria de ter, e decidi que no futuro,
estudaria alguma coisa que me permitisse trabalhar na fazenda. Já Sara preferia
a vida na cidade, o movimento, o burburinho dos centros comerciais. Eu só
pensava nas histórias maravilhosas que poderia escrever naquele lugar
inspirador.
Eu olhava as
copas das árvores e arbustos em busca de minhas amigas de infância, mas não
conseguia vê-las; achei que tinham ido embora para sempre. Até que um dia,
enquanto caminhava pela trilha da floresta, que eu já conhecia bem àquela
altura, deparei com uma estradinha calçada por pedras que eu não tinha visto
antes, pois havia uma árvore enorme caída sobre a entrada. Sobre o tronco
coberto de musgo, avistei uma criaturinha transparente que me olhava, mas que
logo desapareceu. Senti uma dor aguda na cabeça, que me levou a fechar os olhos
e cobrir a cabeça com ambas as mãos, enquanto um forte zumbido em meus ouvidos
me deixava surda. Acho que quase perdi a consciência, e quando reabri os olhos
e olhei adiante, vi uma estradinha limosa, uma trilha coberta de mato que teria
passado despercebida se eu não tivesse me sentado naquele tronco.
O caminho era
um tanto estreito, se perdendo em uma curva onde as árvores se juntavam umas às
outras tornando o local bastante sombrio; apenas alguns raios de sol conseguiam
penetrar as copas. A curiosidade, que era algo natural em mim, me fez passar
sobre o tronco e seguir o caminho.
Caminhei por
alguns minutos, ainda hesitante, sempre olhando em volta, e com a forte
sensação de estar sendo observada. Pensei em voltar, mas eu sentia como se uma
força me atraísse a continuar naquela direção, e ela me impelia para frente,
além do medo que eu sentia, além do arrepio na base da coluna e de algo em um
canto do meu cérebro que me dizia para voltar. Acho que andei durante quase uma
hora – não estou certa, pois os caminhos no meio das florestas nos iludem. O
sol já estava alto, e todos deveriam estar acordados, procurando por mim, mas
eu simplesmente tinha que seguir.
E foi logo
depois de uma curva que eu comecei a escutar vozes: risos de crianças e cães
latindo alegremente, e então comecei a andar mais rápido; mal pude conter o
folego ao chegar a uma enorme clareira gramada e ensolarada, onde havia uma
casa que parecia ser muito antiga, de dois andares, branca e convidativa.
Fiquei parada diante daquela linda visão, o ar preso nos pulmões, uma alegre sensação
de ter chegado em casa após muito, muito tempo.
As crianças (havia uma meia dúzia delas) voltaram os olhos para mim e
pararam de brincar, me observando em silêncio. Uma delas gritou: “Olhem!”
Imediatamente, um menino ruivo disse “Eu acho que ela pode nos ver!” Eu estava
confusa, assustada, surpresa, curiosa, feliz, enfim, eu era uma mistura de
vários sentimentos e pensamentos que se moviam todos em círculos ao redor de
mim, sem encontrar uma certeza. Na varanda da casa, um casal me observava, parecendo muito surpresos. Havia
também uma mulher mais jovem que eles, de longos cabelos negros, lindíssima,
parada junto à porta de entrada, que parecia tão perplexa quanto os demais.
Senti que uma mão nas minhas costas me deu um leve empurrão na direção da casa,
mas quando me voltei para olhar, não havia ninguém. Caminhei, hesitante, e logo
estava cercada pelas crianças, que me puxavam pela mão em direção à casa,
acariciavam meus cabelos e davam risadinhas. Uma delas sussurrou: “O nome dela
é Chiara. Está hospedada na fazenda!” No que a outra respondeu: “Sim! Ela é
filha adotiva dele.” Eu fiquei surpresa pela maneira como as notícias corriam
naquele lugar.
Quando
cheguei à porta, a mulher mais velha estendeu os braços para mim, dizendo:
-Entre,
menina. Você parece cansada. Venha comer alguma coisa! Posso apostar que ainda
não comeu nada hoje.
Concordei com
a cabeça e me deixei ser guiada para dentro da casa, seguida pelas crianças e
pelos outros dois adultos, o homem e a mulher de cabelos negros.
O interior da casa não era menos
impressionante do que o exterior: a luz do sol entrava em faixas pelas janelas
enormes, iluminando a casa magicamente, caindo sobre os jarros de flores
coloridas, o piso de madeira brilhante, as cadeiras e sofás brancos, as
cortinas finas e transparentes também brancas. O pé direito alto acolhia as
vozes das crianças, transformando-as em música para os ouvidos, e reverberava
os cantos dos pássaros da floresta. Fiquei pensando em como uma casa no meio de
uma floresta e cheia de crianças podia ser tão limpa, tão branca. A casa era
mágica, eu tinha certeza!
A mulher mais
velha sentou-me à uma mesa na cozinha, e foi colocando sobre a mesa o café mais
perfumado que eu já tinha visto, potes de geleias de frutas caseiras brilhantes e cheirosas, pão feito em casa
ainda quente, biscoitos e um bolo de laranja que eu devorei quase a metade.
Enquanto eu comia, a mulher mais nova ralhou com as crianças e fez com que
fossem continuar suas brincadeiras lá fora, pois elas faziam um ruído enorme,
mexendo no meu cabelo, falando todas ao mesmo tempo e dando risadas. Eu
interagia com elas apenas sorrindo. Eu me sentia totalmente à vontade entre
eles, embora não os conhecesse. O homem estava sentado diante de mim, me
olhando com carinho, como se eu fosse uma de suas netas (achei que era esse o
grau de parentesco entre ele e as crianças). Reparei em sua camisa branca e
simples, e também que o rosto dele era belíssimo, ornado por uma barba grisalha
cerrada. Parecia haver uma aura de luz em volta dele e das demais pessoas, até
que eu percebi, estendo a mão na frente do meu rosto, que ela estava também
sobre mim.
Ele me disse,
assim que pousei a xícara vazia sobre o pires:
-Você veio de
longe, minha menina. Estamos muito alegres e surpresos de você ter chegado até
aqui.
Eu sorri,
confusa:
-Mas a
fazenda fica a apenas alguns metros daqui... ou quilômetros? Bem, não é muito
longe, o senhor sabe.
Eles três
trocaram olhares, e nada disseram, mudando logo de assunto. A mulher mais velha
disse:
-Deixe a gente
se apresentar: meu nome é Elvira, e este é Téo, meu marido. A moça é Clara,
nossa nora.
-Eu sou
Chiara. Estou hospedada na fazenda com minha irmã Sara e minha mãe Vanessa,
como vocês já sabem, e minha mãe se casou com Afonso. Vocês o conhecem, não é?
A mulher
respondeu, quase sussurrando:
-Sim, nós o
conhecemos.
A voz dela
parecia muito triste, mas quando olhei para ela, ela sorriu.
Clara, a moça
de cabelos longos, parecia ter uma tristeza dentro dela que se derramava em
cada gesto. Ela não sorria muito, e mantinha os olhos presos em mim. Ela
perguntou, a voz quase sumida:
-Como está
Afonso?
-Bem. Ele está
ótimo. Você o conhece bem?
Os olhos dela
ficaram marejados, mas ela não respondeu; ao invés disso, pegou a minha xícara
usada e levou-a para a cozinha, de onde não voltou. Téo foi atrás dela, e
fiquei sozinha com Elvira, que sentou-se ao meu lado, cortando mais um pedaço
de bolo e colocando em meu prato, apesar da minha recusa. Perguntei a ela:
-O que deu em
Clara? Ela está bem?
-Sim, e...
não. Chiara, você sabe que esta casa não é uma casa normal, não é?
Meditei um
pouco naquelas palavras antes de responder, e conclui que ela estava certa: aquela
casa não era uma casa normal. Não podia ser. Como aquela casa poderia existir
ali, no meio de uma densa floresta, imaculadamente branca, mesmo cheia de
crianças? Como podiam as pessoas que ali estavam – inclusive eu mesma – emanar aquela
luz branca? Não respondo. Ela acariciou meu ombro levemente, e disse:
-Venha
comigo.
Segui-a até a
varanda da casa, e de lá ficamos olhando as crianças e os cães, que brincavam juntos
novamente. Percebi que uma menina estendeu a mão e um passarinho pousou nela. Não,
aquela não era uma casa normal. Perguntei quem eram as crianças.
-Elas...
bem... são crianças que vieram morar aqui por escolha. Elas costumavam morar na
fazenda antes de...
Completei a
frase:
-...de
morrerem?
Elvira
concordou com a cabeça. Eu logo entendi tudo: todos naquela casa estavam mortos!
E se eu estava ali, entre eles, estava morta também. Instintivamente, apertei
meu punho, tentando sentir as batidas do meu coração. Nada. Nem um sinal. Minha
pele era uma coisa branca e brilhante, nem fria nem quente, macia e fluida ao
mesmo tempo. Mas eu podia sentir alguma solidez no meu corpo, pois estivera
sentada comendo e bebendo, sentia cheiros, ouvia, falava, enfim: não estava
entendendo nada. De repente, as coisas começaram a fazer sentido, como se a verdade
se desenhasse devagarinho dentro de mim. Tudo começou a se desembaraçar, e
percebi a verdade. Eu não sabia se era Elvira quem estava fazendo aquilo
comigo, mas a compreensão vinha aos poucos, sem deixar qualquer sombra de
dúvidas. Sim, estávamos todos mortos. Ao mesmo tempo, mil perguntas novas
brotavam na minha cabeça.
- Afonso nos
disse que sua ex-esposa tinha ido embora da fazenda e que eles tinham se
separado. No entanto, ela está aqui, morta!
- Clara
jamais deixou a fazenda. Ela foi morta aqui, e seu corpo está enterrado na
floresta.
O horror
daquelas palavras quase me sufocou.
- E vocês...
a senhora e seu marido Téo... vocês ... Afonso nos contou que ele foi criado
pelos avós. Vocês são os pais de Afonso, não são? Se Clara é sua nora...
Ela concordou
com a cabeça.
-E o que
aconteceu com vocês? Afonso jamais nos contou, sempre muda de assunto. Só
explicou que vocês morreram quando ele era ainda adolescente.
Ela concordou
com a cabeça.
-Sim. Talvez
ele não tenha contado a verdade porque as lembranças relacionadas a ela sejam
muito tristes. Nós nos afogamos.
Ela fechou os
olhos, e suas sobrancelhas se crisparam, trazendo de volta momentos certamente
muito dolorosos. Elvira continuou:
-Eu e Téo
adorávamos sair de barco pelo rio, pescar, ir até a ilhota...
-Ilhota?
-Claro,
Afonso não falou dela a vocês... bem, há uma ilha, uma pequena ilha na fazenda
que fica há quinze minutos de barco à remo, onde os pais de Téo construíram um
chalé de toras de madeira muito confortável e bonito. Gostávamos de ir até lá,
às vezes, passar a noite... Téo adorava
remar...
Ela ficou em
silêncio, envolta pelas boas memórias, enquanto seu rosto assumia um ar mais
tranquilo e feliz.
-A ilha não é
muito grande; tem apenas dois quilômetros e meio de extensão. Há muitos
pinheiros por lá, alguns eucaliptos, flores que os avós de Afonso plantaram, muito
verde. Você ia adorar. Pena que está abandonada agora. Há também algumas
criaturas...
Naquele
momento, pelo olhar dela, senti que ela falava de fadas. Sorri para ela, e ela
me sorriu de volta, concordando com a cabeça.
-Sim, elas
estão por lá. Onde não são perturbadas. Eu não sabia da existência delas, não
antes de morrer. Mas sempre amei aquele lugar, pois eu sentia que havia alguma
coisa muito boa ali. Mas... muitas coisas aconteceram. Você conheceu Rosália?
-Sim. Para
dizer a verdade, não gostei muito dela. Minha mãe me disse que as pessoas do
campo às vezes são assim, meio ariscas...
Ela cortou
minha fala:
-Fique longe
dela.
Eu fiquei
boquiaberta; afinal, se eu estava morta, é claro que ficaria bem longe dela. Eu
disse aquilo em voz alta, e ela respondeu:
-Você não
está morta. Seu corpo descansa na floresta, e você vai voltar para ele. Mas
antes você precisa saber do resto da história.
(Continua...)
colocando a leitura blogueira em dia
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