segunda-feira, 6 de setembro de 2021

AS ESTRELAS QUE EU CONTEI - CAPÍTULO 11

 


CAPÍTULO 11

Eu gostava de acordar bem cedo e caminhar sozinha pela fazenda, quando a neblina ainda estava sobre os campos antes do sol nascer, e observar os trabalhadores ordenhando as vacas, escovando os cavalos, arando o campo e colhendo lindos maços de verduras que comeríamos horas depois no almoço. Eu já conhecia algumas pessoas, que me cumprimentavam e me chamavam pelo nome, me oferecendo fatias de queijo fresquinho, frutas ou doces em compotas que eram fabricados na fazenda.

Pensei que aquela era exatamente a vida que eu gostaria de ter, e decidi que no futuro, estudaria alguma coisa que me permitisse trabalhar na fazenda. Já Sara preferia a vida na cidade, o movimento, o burburinho dos centros comerciais. Eu só pensava nas histórias maravilhosas que poderia escrever naquele lugar inspirador.

Eu olhava as copas das árvores e arbustos em busca de minhas amigas de infância, mas não conseguia vê-las; achei que tinham ido embora para sempre. Até que um dia, enquanto caminhava pela trilha da floresta, que eu já conhecia bem àquela altura, deparei com uma estradinha calçada por pedras que eu não tinha visto antes, pois havia uma árvore enorme caída sobre a entrada. Sobre o tronco coberto de musgo, avistei uma criaturinha transparente que me olhava, mas que logo desapareceu. Senti uma dor aguda na cabeça, que me levou a fechar os olhos e cobrir a cabeça com ambas as mãos, enquanto um forte zumbido em meus ouvidos me deixava surda. Acho que quase perdi a consciência, e quando reabri os olhos e olhei adiante, vi uma estradinha limosa, uma trilha coberta de mato que teria passado despercebida se eu não tivesse me sentado naquele tronco.

O caminho era um tanto estreito, se perdendo em uma curva onde as árvores se juntavam umas às outras tornando o local bastante sombrio; apenas alguns raios de sol conseguiam penetrar as copas. A curiosidade, que era algo natural em mim, me fez passar sobre o tronco e seguir o caminho.

Caminhei por alguns minutos, ainda hesitante, sempre olhando em volta, e com a forte sensação de estar sendo observada. Pensei em voltar, mas eu sentia como se uma força me atraísse a continuar naquela direção, e ela me impelia para frente, além do medo que eu sentia, além do arrepio na base da coluna e de algo em um canto do meu cérebro que me dizia para voltar. Acho que andei durante quase uma hora – não estou certa, pois os caminhos no meio das florestas nos iludem. O sol já estava alto, e todos deveriam estar acordados, procurando por mim, mas eu simplesmente tinha que seguir.

E foi logo depois de uma curva que eu comecei a escutar vozes: risos de crianças e cães latindo alegremente, e então comecei a andar mais rápido; mal pude conter o folego ao chegar a uma enorme clareira gramada e ensolarada, onde havia uma casa que parecia ser muito antiga, de dois andares, branca e convidativa. Fiquei parada diante daquela linda visão, o ar preso nos pulmões, uma alegre sensação de ter chegado em casa após muito, muito tempo.  As crianças (havia uma meia dúzia delas) voltaram os olhos para mim e pararam de brincar, me observando em silêncio. Uma delas gritou: “Olhem!” Imediatamente, um menino ruivo disse “Eu acho que ela pode nos ver!” Eu estava confusa, assustada, surpresa, curiosa, feliz, enfim, eu era uma mistura de vários sentimentos e pensamentos que se moviam todos em círculos ao redor de mim, sem encontrar uma certeza. Na varanda da casa, um casal  me observava, parecendo muito surpresos. Havia também uma mulher mais jovem que eles, de longos cabelos negros, lindíssima, parada junto à porta de entrada, que parecia tão perplexa quanto os demais. Senti que uma mão nas minhas costas me deu um leve empurrão na direção da casa, mas quando me voltei para olhar, não havia ninguém. Caminhei, hesitante, e logo estava cercada pelas crianças, que me puxavam pela mão em direção à casa, acariciavam meus cabelos e davam risadinhas. Uma delas sussurrou: “O nome dela é Chiara. Está hospedada na fazenda!” No que a outra respondeu: “Sim! Ela é filha adotiva dele.” Eu fiquei surpresa pela maneira como as notícias corriam naquele lugar.

Quando cheguei à porta, a mulher mais velha estendeu os braços para mim, dizendo:

-Entre, menina. Você parece cansada. Venha comer alguma coisa! Posso apostar que ainda não comeu nada hoje.

Concordei com a cabeça e me deixei ser guiada para dentro da casa, seguida pelas crianças e pelos outros dois adultos, o homem e a mulher de cabelos negros.

 O interior da casa não era menos impressionante do que o exterior: a luz do sol entrava em faixas pelas janelas enormes, iluminando a casa magicamente, caindo sobre os jarros de flores coloridas, o piso de madeira brilhante, as cadeiras e sofás brancos, as cortinas finas e transparentes também brancas. O pé direito alto acolhia as vozes das crianças, transformando-as em música para os ouvidos, e reverberava os cantos dos pássaros da floresta. Fiquei pensando em como uma casa no meio de uma floresta e cheia de crianças podia ser tão limpa, tão branca. A casa era mágica, eu tinha certeza!

A mulher mais velha sentou-me à uma mesa na cozinha, e foi colocando sobre a mesa o café mais perfumado que eu já tinha visto, potes de geleias de frutas caseiras  brilhantes e cheirosas, pão feito em casa ainda quente, biscoitos e um bolo de laranja que eu devorei quase a metade. Enquanto eu comia, a mulher mais nova ralhou com as crianças e fez com que fossem continuar suas brincadeiras lá fora, pois elas faziam um ruído enorme, mexendo no meu cabelo, falando todas ao mesmo tempo e dando risadas. Eu interagia com elas apenas sorrindo. Eu me sentia totalmente à vontade entre eles, embora não os conhecesse. O homem estava sentado diante de mim, me olhando com carinho, como se eu fosse uma de suas netas (achei que era esse o grau de parentesco entre ele e as crianças). Reparei em sua camisa branca e simples, e também que o rosto dele era belíssimo, ornado por uma barba grisalha cerrada. Parecia haver uma aura de luz em volta dele e das demais pessoas, até que eu percebi, estendo a mão na frente do meu rosto, que ela estava também sobre mim.

Ele me disse, assim que pousei a xícara vazia sobre o pires:

-Você veio de longe, minha menina. Estamos muito alegres e surpresos de você ter chegado até aqui.

Eu sorri, confusa:

-Mas a fazenda fica a apenas alguns metros daqui... ou quilômetros? Bem, não é muito longe, o senhor sabe.

Eles três trocaram olhares, e nada disseram, mudando logo de assunto. A mulher mais velha disse:

-Deixe a gente se apresentar: meu nome é Elvira, e este é Téo, meu marido. A moça é Clara, nossa nora.

-Eu sou Chiara. Estou hospedada na fazenda com minha irmã Sara e minha mãe Vanessa, como vocês já sabem, e minha mãe se casou com Afonso. Vocês o conhecem, não é?

A mulher respondeu, quase sussurrando:

-Sim, nós o conhecemos.

A voz dela parecia muito triste, mas quando olhei para ela, ela sorriu.

Clara, a moça de cabelos longos, parecia ter uma tristeza dentro dela que se derramava em cada gesto. Ela não sorria muito, e mantinha os olhos presos em mim. Ela perguntou, a voz quase sumida:

-Como está Afonso?

-Bem. Ele está ótimo. Você o conhece bem?

Os olhos dela ficaram marejados, mas ela não respondeu; ao invés disso, pegou a minha xícara usada e levou-a para a cozinha, de onde não voltou. Téo foi atrás dela, e fiquei sozinha com Elvira, que sentou-se ao meu lado, cortando mais um pedaço de bolo e colocando em meu prato, apesar da minha recusa. Perguntei a ela:

-O que deu em Clara? Ela está bem?

-Sim, e... não. Chiara, você sabe que esta casa não é uma casa normal, não é?

Meditei um pouco naquelas palavras antes de responder, e conclui que ela estava certa: aquela casa não era uma casa normal. Não podia ser. Como aquela casa poderia existir ali, no meio de uma densa floresta, imaculadamente branca, mesmo cheia de crianças? Como podiam as pessoas que ali estavam – inclusive eu mesma – emanar aquela luz branca? Não respondo. Ela acariciou meu ombro levemente, e disse:

-Venha comigo.

Segui-a até a varanda da casa, e de lá ficamos olhando as crianças e os cães, que brincavam juntos novamente. Percebi que uma menina estendeu a mão e um passarinho pousou nela. Não, aquela não era uma casa normal. Perguntei quem eram as crianças.

-Elas... bem... são crianças que vieram morar aqui por escolha. Elas costumavam morar na fazenda antes de...

Completei a frase:

-...de morrerem?

Elvira concordou com a cabeça. Eu logo entendi tudo: todos naquela casa estavam mortos! E se eu estava ali, entre eles, estava morta também. Instintivamente, apertei meu punho, tentando sentir as batidas do meu coração. Nada. Nem um sinal. Minha pele era uma coisa branca e brilhante, nem fria nem quente, macia e fluida ao mesmo tempo. Mas eu podia sentir alguma solidez no meu corpo, pois estivera sentada comendo e bebendo, sentia cheiros, ouvia, falava, enfim: não estava entendendo nada. De repente, as coisas começaram a fazer sentido, como se a verdade se desenhasse devagarinho dentro de mim. Tudo começou a se desembaraçar, e percebi a verdade. Eu não sabia se era Elvira quem estava fazendo aquilo comigo, mas a compreensão vinha aos poucos, sem deixar qualquer sombra de dúvidas. Sim, estávamos todos mortos. Ao mesmo tempo, mil perguntas novas brotavam na minha cabeça.

- Afonso nos disse que sua ex-esposa tinha ido embora da fazenda e que eles tinham se separado. No entanto, ela está aqui, morta!

- Clara jamais deixou a fazenda. Ela foi morta aqui, e seu corpo está enterrado na floresta.

O horror daquelas palavras quase me sufocou.

- E vocês... a senhora e seu marido Téo... vocês ... Afonso nos contou que ele foi criado pelos avós. Vocês são os pais de Afonso, não são? Se Clara é sua nora...

Ela concordou com a cabeça.

-E o que aconteceu com vocês? Afonso jamais nos contou, sempre muda de assunto. Só explicou que vocês morreram quando ele era ainda adolescente.

Ela concordou com a cabeça.

-Sim. Talvez ele não tenha contado a verdade porque as lembranças relacionadas a ela sejam muito tristes. Nós nos afogamos.

Ela fechou os olhos, e suas sobrancelhas se crisparam, trazendo de volta momentos certamente muito dolorosos. Elvira continuou:

-Eu e Téo adorávamos sair de barco pelo rio, pescar, ir até a ilhota...

-Ilhota?

-Claro, Afonso não falou dela a vocês... bem, há uma ilha, uma pequena ilha na fazenda que fica há quinze minutos de barco à remo, onde os pais de Téo construíram um chalé de toras de madeira muito confortável e bonito. Gostávamos de ir até lá, às vezes, passar a noite...  Téo adorava remar...

Ela ficou em silêncio, envolta pelas boas memórias, enquanto seu rosto assumia um ar mais tranquilo e feliz.

-A ilha não é muito grande; tem apenas dois quilômetros e meio de extensão. Há muitos pinheiros por lá, alguns eucaliptos, flores que os avós de Afonso plantaram, muito verde. Você ia adorar. Pena que está abandonada agora. Há também algumas criaturas...

Naquele momento, pelo olhar dela, senti que ela falava de fadas. Sorri para ela, e ela me sorriu de volta, concordando com a cabeça.

-Sim, elas estão por lá. Onde não são perturbadas. Eu não sabia da existência delas, não antes de morrer. Mas sempre amei aquele lugar, pois eu sentia que havia alguma coisa muito boa ali. Mas... muitas coisas aconteceram. Você conheceu Rosália?

-Sim. Para dizer a verdade, não gostei muito dela. Minha mãe me disse que as pessoas do campo às vezes são assim, meio ariscas...

Ela cortou minha fala:

-Fique longe dela.

Eu fiquei boquiaberta; afinal, se eu estava morta, é claro que ficaria bem longe dela. Eu disse aquilo em voz alta, e ela respondeu:

-Você não está morta. Seu corpo descansa na floresta, e você vai voltar para ele. Mas antes você precisa saber do resto da história.

 

(Continua...)




 

 

 


 

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