sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O Lar de Ofélia - Capítulo XVI





Ofélia despertou do seu transe momentaneamente, e olhou em volta; estava sentada no sofá da sala, e Anselmo segurava sua mão. A casa já estava obscurecida pelo crepúsculo, o que destacava ainda mais o clima de irrealidade: teria ela imaginado todas aquelas vidas, todas aquelas histórias? Será que aquele homem sentado ao seu lado não seria um embusteiro, alguém que estava brincando com ela, uma pessoa real, daquele século, que lhe dera algum tipo de droga que fizera com que ela imaginasse todas aquelas coisas?

Ofélia olhou para ele, e ao deparar com aquele olhar se entornando sobre ela, teve certeza de que suas suspeitas eram infundadas, e de que todas as histórias das quais se recordara, todas as vidas passadas que já vivera, eram reais. Tinham sido experiências verdadeiras. 

Anselmo sorriu-lhe, mas apenas com os lábios, pois ele jamais sorria com os olhos. Os olhos dele pareciam sempre tristes e cansados. Afinal, eram olhos que já enxergavam há muitas vidas, e já tinham visto muitas coisas e passado por sofrimentos terríveis. Ela entendeu o cansaço que via em seus próprios olhos, ao olhar-se no espelho, e o tédio que sentia quando estava junto de outras pessoas. Ela sorriu para ele de volta, e entendeu que aquela maneira triste de sorrir era também dela. 

Ele tocou-lhe a testa com a palma da mão, e ela fechou os olhos. Ao abri-los novamente, estava de volta àquela mesma sala, mas há vidas atrás. 

Viu-se indo deitar-se na noite em que Anselmo demitira Leôncio. Acordou assustada de repente, e tudo o que conseguiu ver, foi o próprio Leôncio debruçado sobre ela com o olhar maldoso (ou seria amedrontado?). Ele segurava um martelo e uma estaca, e antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, ele fincou-a no coração dela. Ofélia lembrou-se de ter gritado, mas por um breve tempo apenas, e então tudo ficou escuro. Dali em diante, aquela vida apagou-se para ela. 

Novamente, ela teve a experiência de entrar por um túnel, mas daquela vez, ela foi cair em um local escuro e sombrio, como que desembocada ali, por onde outras pessoas atormentadas vagavam. Não sabe quando tempo passou ali naquele ermo e escuro lugar de sofrimentos, onde não tinha amigos e não era feliz. Ninguém seria capaz de ser feliz ali. Procurava por Anselmo e Vivian, e a falta deles doía-lhe a alma. Passaram-se anos - ou teriam sido apenas horas?

Novamente, ela abriu os olhos em um local iluminado, e viu o rosto bonito e sorridente de uma mulher que a embalava. Sua nova mãe. Era novamente uma mortal, mas aos dezessete anos, ela adoeceu por um longo tempo, e finalmente, após um período de muitas dores e sofrimentos, ela morreu. Renasceu ainda uma vez, mas também teve uma vida sofrida e curta, morrendo aos cinco anos de idade após sérios problemas de coração. Ainda assim, ela voltou. Viveu até os cinquenta anos de idade. Era uma mulher pobre, e com muitos filhos. Morreu sufocada, após contrair uma forte gripe. As suas crianças estavam todas em volta dela. 

Em todas aquelas vidas posteriores, ela teve a experiência de estar sempre triste, infeliz, vazia. Procurava por alguma coisa que jamais encontrava, mas agora ela sabia que tinha procurado por Anselmo e Vivian. mas eles tinham ficado em algum lugar bem longe dela. 

Nasceu novamente, agora em sua vida atual. Ofélia reviveu experiências que tivera com seus pais, e reconheceu outras pessoas que encontrara em outras vidas. Magda e Bruno estavam entre elas. 

Finalmente, Ofélia abriu os olhos novamente. A sala estava escura. Anselmo caminhou até o interruptor, acendendo as luzes. A pequena Vivian serviu-lhe um cálice de licor. Aquilo ajudou-a a recuperar as forças. 

-O que aconteceu naquela noite, Anselmo?

Ele suspirou:

-Naquela noite, Leôncio tirou você de nós. Consegui pará-lo antes que ele atingisse Vivian. Eu o transformei e o aprisionei nesta casa, e como castigo, dei-lhe uma aparência de velho e  a missão de guardar a casa para sempre, até que eu conseguisse trazer você de volta. Mesmo se ele tivesse tentado ir embora, não teria conseguido. Quando ele passava mais que uma ou duas horas longe da casa, sentia dores insuportáveis. 

-Como assim? E você... e Vivian...?

-Nós ficamos suspensos no tempo. Guardamos nossos corpos, pois fazemos parte de um clã, e eles teriam envelhecido sem sua energia. Eles estão escondidos  lá em baixo no porão, mas nossos espíritos estão livres, e por isso só você consegue nos ver. Por este motivo, é importante que você faça o que eu pedi. É a única forma de trazer nossos corpos de volta à vida. 

Ofélia ergueu-se do sofá, brandindo os braços:

-Eu... eu não posso, Anselmo! Você não entende? Não conseguiria!

Ele correu até ela, obrigando-a a olhar para ele:

-Minha querida, lembre-se de quem você é! 

Ela voltou a sentar-se. Sua mente dava mil voltas. Ofélia tocou a própria cabeça, pois esta lhe doía um pouco. 

-Aquele homem que nos vendeu a casa... ele era...

-Sim! Ele era Leôncio. Está livre agora. Seu castigo acabou. Mas nós ainda somos prisioneiros nesta casa, longe de nossos corpos, Ofélia. 

-Então me transforme para que eu possa ficar com vocês!

-Não é assim... não posso transformá-la sendo espírito. Preciso voltar ao meu corpo antes. 

-Mas... mas... eu não posso!

Existe uma coisa que você não sabe ainda, minha querida. 


Dizendo aquilo, Anselmo aproximou-se dela, colocando a mão aberta sobre sua testa. Ofélia teve uma visão. Ela viu Bruno. 

Reconheceu nele o homem que, em uma das vidas passadas, dos tempos antes de eles serem transformados, queimara a ela e à sua família vivos somente porque eles estavam doentes com a peste! 

Aquela visão encheu-a de dor. Ofélia começou a chorar compulsivamente.

-Viu, minha querida? Viu quem ele realmente é?

-Mas ele... não se lembra mais! Foi há tanto tempo, e ele... e nós... 

-Ele também tem um carma a pagar. Veja as coisas desta forma. Derramar seu sangue sobre nossos corpos será também uma libertação para ele. Se você não o fizer até a próxima lua cheia, jamais poderemos ser trazidos de volta, e nos perderemos para sempre uns dos outros... 

-E o que acontecerá então, Anselmo, a você e à nossa filha? 

-Permaneceremos no limbo, presos a esta casa, a este terreno... até que... até que... eu não sei dizer. Não sei o que acontecerá, mas acho que estaremos eternamente presos aqui. Mas você será livre para viver sua própria vida, concluir sua existência. Sem nós. Porque nós vamos desaparecer para você. Para sempre. 

(continua...)




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