domingo, 21 de outubro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - CAPÍTULO XVII - FINAL







O Lar de Ofélia - parte XVII - FINAL


Ofélia acordou sozinha novamente, e com a voz de Anselmo ressoando em sua cabeça: "Lembre-se de quem você é, e do que necessita fazer para ficarmos juntos!"
Ela ergue-se da cama, sentindo-se muito fraca e combalida. Dirigiu-se à cozinha para tomar um copo de água e preparar alguma coIsa para comer, e ao passar pela sua imagem no espelho do corredor, notou o quanto tinha emagrecido e o quanto sua pele estava pálida. Chegou à cozinha, tomou dois grandes copos d'água e sentou-se. Abriu o armário: não havia nada para comer, a não ser um pouco de pó de café e algumas bolachas de nata. Ela não tinha feito compras. Já era madrugada, e teria que esperar até o dia amanhecer a fim de ir ao mercado fazer compras ou encomendar algo. Enquanto isso, ia ter que sobreviver daquelas bolachas e do que restava do café.

Ela comeu, e então sentiu vontade de assistir televisão - algo que já não fazia há tempos. Achou que talvez a TV, os comerciais e as pessoas na tela a lembrassem de que ainda se encontrava no mundo dos vivos, com suas urgências e concretudes. Ela sentou-se no sofá com mais uma xícara de café, e começou a assistir a um velho filme. Aos poucos, as imagens das pessoas na tela foram ficando cada vez mais distantes. Suas bocas se mexiam, mas elas não pareciam dizer nada. 

Quando despertou, uma campainha tocava insistentemente, ao mesmo tempo que alguém batia à porta. Com a cabeça entre as mãos, Ofélia levantou-se e se encaminhou à porta de entrada, sem pensar muito. Ouviu a voz de Magda chamando por ela, aflita. Como Magda descobrira que ela não tinha viajado? Achou melhor abrir a porta; ajeitou um pouco os cabelos com as mãos, e respirando fundo, abriu a fechadura.

Magda olhou para ela, dos pés à cabeça. Ela carregava algumas bolsas de supermercado. Ainda custou a dizer qualquer coisa, surpresa com a aparência macilenta de Ofélia. Deu graças a Deus por Bruno ter telefonado para ela no escritório no dia anterior, preocupado com Ofélia. Achou que mais um pouco, e Ofélia poderia ter ... preferiu não concluir seu pensamento. 

Ofélia tentou um sorriso forçado, mas ele não saiu. Ela fez um gesto para que Magda entrasse, e seguiu-a até a cozinha, onde Magda, sem nada dizer, começou a preparar uma refeição para Ofélia, que sentada à mesa de madeira antiga, a cabeça apoiada na mão, observava a mulher de meia-idade movendo-se pela sua cozinha, procurando por utensílios, acendendo o fogo, fritando os bifes e preparando a salada e o arroz. 

Magda olhou para ela, enquanto Ofélia comia, e disse:

-Você precisa ver um médico. Está deprimida, e não duvido que se eu não tivesse recebido o telefonema do seu vizinho, você poderia ter morrido dentro desta casa! Assim que terminar de comer, vai tomar um banho e eu vou levar você a um psiquiatra.

Ofélia não respondeu. Não tinha a menor intenção de obedecer Magda, mas naquele momento, não queria discutir com ela. Só queria poder alimentar-se, fortalecer seu corpo. Magda continuou:

-Aquele rapaz gosta realmente de você, Ofélia. 

-Ele é muito mais jovem do que eu, Magda. 

-E daí?

Ofélia pensou que aquela pergunta, aquela pequena indagação, fazia muita diferença, mas daria muito trabalho para explicar tudo. Mais tarde, enquanto Magda lavava a louça, Ofélia deixou-se ficar sob a água tépida do chuveiro. Conseguia escutar Magda lidando com as louças na cozinha, enquanto deixava que a água quente a reanimasse um pouco.

Na cozinha, Magda sentia a atmosfera pesada da casa como uma cortina de chumbo sobre seus ombros. Não gostava daquele lugar, e achava que morar ali não podia fazer bem a ninguém, e pensou que talvez fosse melhor demolirem a casa e venderem o terreno. Àquele penamento, uma dor fininha passou por sua testa, indo alojar-se por trás dos olhos. Ela se sentou à mesa, e pegando sua bolsa, agarrou um comprimido e engoliu-o com água. Sentia-se mal naquele lugar. Olhou em volta: apesar do luxo e da beleza da casa, havia algo de maléfico dentro dela. Ela sentia que a casa sugava as energias das pessoas - pelo menos, a dela.

De repente, Magda sentiu-se levemente sonolenta. Imagens começaram a aparecer diante dela. Imagens que ela reconheceu, embora não fizessem muito sentido, como cenas de outras vidas. Algum tempo se passou antes que Magda se recuperasse do seu transe. Já desperta, ela juntos todas as imagens como numa colcha de retalhos, e tudo pareceu fazer sentido então.

Ofélia apareceu diante dela, de cabelos molhados, usando um vestido branco leve. Magda teve um leve sobressalto à presença silenciosa dela.  A cor da sua pele e a cor do vestido eram quase idênticas. 

-Ofélia... você me assustou... bem... vamos?

-Obrigada, Magda, mas não vou a lugar nenhum... por favor. Não insista. 

Magda percebeu que poderia ser mesmo inútil insistir naquele momento, então tentou apenas conversar com ela. Fez a pergunta que não queria calar:

-É esta casa, não é? Existe alguma coisa nela. Você mudou muito desde que veio para cá. Nos vimos poucas vezes desde então, mas deu para perceber. O que está havendo, Ofélia? Você sabe que pode confiar em mim.

Ofélia queria desesperadamente poder confiar nela, em qualquer pessoa, mas temia que se dissesse alguma coisa comprometedora sobre os últimos acontecimentos, algo de terrível pudesse acontecer às pessoas com quem se abrisse. Ela olhou para Magda, e esta viu o desespero nos olhos dela. Sem nada dizer, fez sinal para que Ofélia a seguisse até o jardim.

Lá chegando, o sol da manhã aqueceu a pele de ofélia, que começou a sentir-se um pouco melhor, pois a atmosfera dentro da casa era pesada e obscura. 

Magda caminhou com ela por algum tempo, em silêncio. Pararam junto a um banquinho de madeira, onde se sentaram. Ofélia se perguntava se Anselmo poderia ouvi-las dali, e logo teve a certeza de que sim, pois ele a olhava da janela do quarto, no andar superior. O olhar dele era frio e severo.

Ofélia entendeu que se quisesse conversar com Magda sem colocá-la em risco, teriam que sair dali. Pegando-a pela mão, ela se levantou, levando Magda até o portão e abrindo-o, saiu junto com ela para a rua e para a vida real. Magda deixou-se conduzir; também ela vira o homem à janela, a figura fantasmagórica e ao mesmo tempo, bela e fascinante que as observava, e como fosse médium, logo compreendeu que aquele homem não fazia parte do mundo dos vivos. Na rua, Ofélia implorou-lhe:

-Você precisa ir embora, Magda, e não voltar mais. Aqui, você estará em perigo, podendo ser morta como... como...

-A ex-namorada de seu pai, não é?

Magda assistiu, enquanto o desespero de Ofélia dava lugar às lágrimas e a um leve aceno de cabeça, concordando com ela. Magda ergueu a mão, secando o rosto dela com um lenço de papel que tirara da bolsa. 

-Se eu corro perigo, você também, querida. Não vou deixá-la aqui sozinha. Eu a conheço desde muito pequena... trabalho para o seu pai há anos... conheci sua mãe... não vou abandonar você, que é... como uma filha para mim. 

De repente, Ofélia olhou para o rosto de Magda e percebeu que o que ela dizia fazia todo sentido: viu-a em uma outra vida, sendo, realmente, sua mãe. Lembrou-se do quanto ela sofrera, ao ver sua filha querida adolescente definhar e morrer de uma doença longa e terrível. Magda realmente tinha sido sua mãe!

Ofélia abraçou-a, e Magda sentiu que aquele abraço era uma coisa que ela esperava há anos. Magda e Ofélia começaram a afastar-se de casa aos poucos, caminhando pela rua. A manhã estava belíssima, e pássaros cantavam ali perto. Lá em baixo, Ofélia podia ver Bruno e seus amigos reunidos, conversando. Ele a viu, mas não fez menção de acenar para ela. Ao olhar para ele, Ofélia compreendeu que jamais poderia fazer o que Anselmo lhe pedia. 

Ao olhar novamente para Magda, notou que ela estava de olhos fechados. Chamou por ela, sem obter resposta. Magda estava parada, lívida, respirando quase que imperceptivelmente. As duas estavam sob uma grande árvore, um olmo, que fazia sombra sobre elas. Ofélia achou melhor não interromper o que quer que estivesse acontecendo com Magda. após alguns minutos, Magda abriu os olhos, e seu olhar era muito triste e preocupado:

-Não volte àquela casa, Ofélia. Eu lhe peço. Aquelas pessoas... aquelas.. criaturas que lá se encontram, não têm mais nada a ver com você. 

-Não é verdade! Eles são meu marido e minha filha!

-Sim, mas... você reencarnou várias vezes, seu espírito evoluiu. Você é outra pessoa, enquanto eles permaneceram ligados aos seus desejos de vingança, à sua sede de sangue. Eles precisam evoluir também! Se você voltar, estará se prendendo a eles durante séculos, que serão tempos negros, entristecidos e ... pode ser que você leve milênios antes de livrar-se de tal situação! E não os estará ajudando, apenas prolongando suas penas, além de infringir a si mesma um carma terrível! 

-Anselmo me ama! Eu o amo também!

-Não é amor, não mais! Anselmo quer usá-la para poder voltar e continuar com suas maldades. Ele e Vivian. Sem a sua ajuda, eles não podem. Ficarão presos até que compreendam que necessitam morrer para renascerem e terem uma nova chance de evoluir espiritualmente. Ele agarra-se à existência física, uma existência de sangue, sonha com ela enquanto seria tão mais sensato morrer! Deixar-se morrer, libertar seu espírito...

-Mas eu nunca mais os verei!

-Se for amor o que os une, certamente vocês se reencontrarão, Ofélia!

Ao ouvir aquilo, Ofélia sentiu que uma nuvem pesada saía de seus ombros. Magda continuou:

-Eu vi suas vidas passadas também, Ofélia, eu sou médium. Aquelas crianças em volta de você, quando você morreu... sua própria mãe nesta vida, seu pai, e também sua ex-namorada... todas aquelas pessoas... são pessoas das quais você e Anselmo se alimentaram. Você teve que voltar com elas, resgatar suas dívidas. Quando fui sua mãe, eu também fui uma delas. Em uma outra vida, eu lhe fiz muito mal.  Somos todos heróis e algozes nas vidas que vivemos. Quando morremos como algozes, retornamos como vítimas, e depois, nos tornamos heróis na vida de alguém. 

Ofélia sentia o quanto aquelas palavras eram verdadeiras. Ofélia estava chorando, mas era um choro de alívio.

Magda segurou a mão dela:

-Vamos embora, não olhe para trás. Sabe que se entrar lá novamente, jamais conseguirá sair. Eles não a deixarão. Amanhã contratarei uma firma de demolição, e colocaremos a casa abaixo. Assim, libertaremos as almas deles. 

Ofélia olhou para trás. A silhueta da casa desenhava-se contra as nuvens brancas e esfiapadas e o azul profundo do céu. No jardim, maravilhoso e verdejante, pássaros cantavam entre roseiras e árvores frondosas.  Quem passasse por ali, não saberia que aquela linda casa estava cheia de energia pesada e negativa. 

Ela olhou para o rosto de Magda, aceitando-a como sua mãe amorosa. Assentiu com a cabeça, e as duas começaram a se afastar da casa. Após alguns metros, Ofélia olhou para trás novamente, mas tudo o que viu, foi uma velha casa de paredes escurecidas e em ruínas, no meio de um jardim seco e cheio de plantas mortas e retorcidas. 

Bruno viu que elas caminhavam juntas na direção dele, e sorriu enquanto elas se aproximavam pouco a pouco. 



FIM



2 comentários:

  1. Maravilhoso final! Muito obrigada!!

    Beijos-Boa noite!

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  2. Oi Ana,
    Não acompanhei,mas o blog esta lindo.
    adorei essa combinação de cores.
    beijos querida, bom final de tarde.
    beijos

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