segunda-feira, 16 de setembro de 2019

INOCÊNCIA- Parte III, Capítulo III






E foi na noite de sábado para domingo que tudo aconteceu. Foi exatamente naquela noite que Nelson veio a falecer, e que Duílio voltou a entrar na vida daquela família, o que fez com que Yara se afastasse por onze longos anos. 

Todos já tinham ido dormir. João dormia pacificamente ao lado da mãe, mas Yara estava aflita pois sentia que alguma coisa muito desagradável estava para acontecer. Ela gostaria muito que Cristina estivesse ali, que ela pudesse sentar-se ao lado dela e conversar. Pensou em ligar para Berta, mas o que diria: que estava com um pressentimento, à uma e trinta da manhã? Não seria um bom motivo para alarmar a irmã e Sebastian. 

Ela saiu do quarto nas pontas dos pés e desceu as escadas devagar, atravessando a sala silenciosa em direção à cozinha. No meio do caminho, o  telefone tocou, e ela estancou; àquela hora, não poderia ser boa notícia. Ainda esperou pelo terceiro toque antes de atender. Sem nada dizer, Yara pegou o telefone e escutou. Alguém do outro lado repetiu “Alô?” Duas vezes antes que ela respondesse. Yara sentia calafrios percorrendo sua espinha dorsal. “Alô,” ela murmurou. Não estava pronta para receber aquela notícia, e seu coração pulava tanto, que a deixava quase surda. Mas a voz do outro lado, que parecia pertencer a uma mulher de meia-idade cansada, apenas disse:

-Boa noite! Aqui é do Hospital São Marcos. Estou falando com um membro da família de Nelson Fernandes?

Yara soprou um ‘sim’ abafado de encontro ao bocal do telefone. A mulher perguntou:

-Com quem falo, por favor?

-Yara. Sou a filha dele.

-Gostaria de pedir que comparecessem ao hospital o mais rapidamente possível, trazendo documentos e uma muda de roupas do sr. Nelson. Por favor, venha até às sete da manhã. Você compreendeu? 

Yara não respondeu, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas pesadas e salgadas, que desceram quentes sobre seu rosto. A mulher repetiu o que havia acabado de dizer, e Yara finalmente concordou:

-Sim, eu compreendi. Obrigada. 

Assim que desligou o telefone, ela olhou em volta, para a casa adormecida, e deixou-se escorregar até o chão da sala. Tantas coisas tinha vivido ali! Tantos momentos de inocência e felicidade, e em todos eles, ela pudera contar com a presença confortadora de seus pais – principalmente, de seu pai. Agora ele estava morto, e ela nunca mais o veria ou falaria com ele. Lembrou-se da morte de seu tio Antônio: a dor que sentira então não era nada se comparada com a dor que a rachava no meio naquele exato momento. 

Após se acalmar um pouco, ela decidiu ir lá fora pegar um pouco de ar. Abriu a porta: havia uma luz acesa no apartamento sobre a garagem, agora vazio (Flora e Eugênio mudaram-se para uma nova casa após receberem a herança de D. Helena, embora continuassem a trabalhar na casa por opção). Yara achou aquilo estranho. Desceu as escadinhas da varanda. Estava descalça, e por isso não fez nenhum barulho. 

Ela cruzou o pedaço de jardim que afastava a casa da garagem e do apartamento. Debaixo de uma árvore, ela olhou para cima e esperou. Viu quando sua mãe,  Mirtes, passou pela vidraça, atravessando o quarto. Percebeu que ela falava e gesticulava, parecendo muito aflita. De repente, Yara ouviu uma voz masculina abafada: seria Sebastian? Ou quem sabe, Eugênio voltara para pegar alguma coisa? Mirtes saiu da frente da janela, e Yara esticou o pescoço, tentando ver o que estava acontecendo, mas como não conseguisse, ela subiu as escadas laterais que davam para a porta de entrada do apartamento, e sentando-se no último degrau, escutou. O que ela ouviu deixou-a sem voz e sem nada por dentro, a não ser ódio. Mirtes dizia:

-Não sei porque você foi se casar com aquela mulher! Disse que me esperaria! Disse que me amava e que esperaria até que Nelson ... até que ele nos deixasse! 

Yara levou a mão à boca, tentando conter um grito. Seus olhos derramavam lágrimas pesadas sobre a face vermelha e quente. Duílio respondeu:

-Minha querida... eu não podia esperar mais!

-Não sei por que você voltou então! Quase destruí meu relacionamento com minha própria filha, me fazendo passar pela tortura de vê-los juntos enquanto eu... eu... s[ó sofria e chorava por ter perdido você para ela!

-Tentei fazer com que você provasse me amar e lutasse por mim! 

-Eu não podia competir com minha própria filha! Será que não entende? E você decidiu ficar com ela, iam casar-se! Não queria deixar Yara infeliz! Não podia simplesmente abandonar Nelson com uma doença grave, dar as costas `a minha família toda!

-Você acha mesmo que algum dia Yara teve alguma importância para mim? Ou Aurora? Ou qualquer outra? Eu sempre quis só você! Só me envolvia com outras mulheres para causar-lhe ciúmes, para fazer com que você finalmente decidisse ir embora comigo! E você sabia o quanto o sexo é importante para mim, o quanto eu necessito dele! Se eu não podia ter com a mulher que eu amava, eu fazia com outras! Toda vez que eu amava Yara, era por você que eu procurava!

-Você usou a minha filha para me ferir!

-Não! Por que não admite que você a usou para me cozinhar em banho-maria, enquanto Nelson agonizava e você o esperava morrer para ficar comigo?

-Não!!! O que você está dizendo é absurdo! 

Naquele momento, Yara não conseguiu ouvir mais nada: desceu as escadas tropeçando. Foi correndo até a beira do rio, onde sentou-se sob um luar prateado e opressor. A lua, embaçada devido às suas lágrimas, parecia rir dela. Yara gritou bem alto, pois sabia que não seria ouvida. Ninguém ia àquele lugar isolado. Pensou em toda a sua vida, pensou no quanto sua inocência tinha sido pisoteada, no quanto ela tinha sido usada por todos.  Mas ela contaria a todo mundo, ela destruiria qualquer coisa que pudesse significar a reputação de Mirtes... mas... não! Se o fizesse, estaria manchando também a memória de seu próprio pai.

Ela voltou ao quarto com cuidado para que não a notassem. Ainda parou sob a garagem e olhou para o apartamento, que agora tinha as luzes apagadas, e pôde escutar os gemidos de amor que vinham lá de dentro. Apoiou-se no tronco de árvore e vomitou. Ela queria abrir aquela porta e acabar com tudo, mas como? 

Ao invés disso, ela foi ao quarto e pegou no colo o menino adormecido, enrolando-o em uma manta. Colocou-o no banco de trás do carro e partiu. Foi até o mesmo hotel onde Cristina estava hospedada, passando pela recepcionista que dormia debruçada no balcão e bateu à porta do quarto. Ao ver Yara parada na porta, os olhos vermelhos, descalça e despenteada, usando uma camisola de flanela com o filho adormecido nos braços, Cristina assustou-se. Fez com que a amiga entrasse, colocando o menino na cama, e foi com a amiga para a antessala, onde serviu-lhe uma dose de conhaque. 

_Agora.. tome tudo... assim... me diga o que está acontecendo, Yara, ou vai me matar de aflição!

E ela contou tudo à Cristina, que tudo ouviu com lágrimas de raiva nos olhos, lágrimas que mais tarde choraria junto com sua amiga, com sua menininha. Mas não naquela hora. Que o velório de Nelson passasse, e então ela levaria embora Yara e João junto com ela. Tinha dinheiro, muito dinheiro, e poderia acomodar os dois em uma de suas casas. Poderia dar à Yara um emprego rentável como gerente em um de seus salões de beleza em qualquer parte do país, se ela quisesse. Poderia pagar babás que cuidassem de João enquanto Yara trabalhava. Ela poderia tudo o que o dinheiro permite. E ela o fez. Porque definitivamente, aquela família não merecia Yara. 

E após o velório, Yara anunciou à irmã sua decisão de ir embora para sempre. Porém, não contou a ela o motivo, pois não queria arriscar sujar a memória de seu pai. Sabia que Berta faria um escândalo, que tentaria tirar satisfações com a mãe, que acusaria Duílio. Ela se despediu, e Berta, chorando, pediu-lhe que ficasse. Mas ela não ficou. Precisava ir embora. Precisava esquecer tudo aquilo, ou pelo menos, aprender a viver com aquelas lembranças terríveis.  Disse que telefonaria quando sua vida estivesse decidida, mas não o fez durante anos. 

Mas antes de ir, ela foi despedir-se da mãe. 

O velório terminara, e estavam todos em casa, na sala de estar. Duílio tivera o desplante de comparecer ao velório e também à reunião de família, onde encontravam-se Aurora, sua ex-amante, Yara, sua ex-noiva e Mirtes, sua ex e atual amante. Pelo menos, tivera o bom senso de não levar com ele sua atual esposa. 

Yara olhava para Aurora, Duílio e Mirtes, e seu estômago se embrulhava. As duas eram irmãs. Sua tia, sua mãe. Duílio, seu ex-noivo, o homem que por muito tempo ela amara. Todos a tinham enganado. Todos. Mas ela conseguiu resistir até que Duílio retirou-se, passando por ela e dizendo:

-Se precisar de alguma coisa, pode contar comigo, Yara. 

Ela não respondeu; desfocou o olhar ao encará-lo, a fim de não vomitar. Aurora passou por ela – a falsa moralista que não admitira que seu filhinho branco se casasse com a pessoa mais sensacional do mundo só porque ela era filha de uma mulher negra, empregada da casa. Aurora acariciou seu rosto de leve, dando um leve tapinha em seu queixo, que segurou na mão por um curto espaço de tempo:

-Olho na sua mãe, querida.  Ela não está nada bem. Joana manda dizer que sente muito por tudo. 

Dizendo aquilo, ela beijou Yara na testa, e a moça estremeceu, passando as costas da mão no local do beijo com toda força. Aurora franziu as sobrancelhas, mas nada disse. Depois, Berta a abraçou:

-Pense bem, irmã. Se você for embora, tudo ficará ainda mais triste para mamãe e para mim.

Ela quis responder que esperava que ‘mamãe’ morresse, ou sumisse, mas nada disse. Abraçou a irmã pela última vez em muitos anos. 

Quando a casa estava vazia, Cristina retirou-se com os pais, deixando mãe e filha sozinhas. 

(continua)





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