terça-feira, 29 de maio de 2018

O Lar de Ofélia





O Lar de Ofélia

Capítulo I

Desde o primeiro minuto em que avistou aquela casa velha de dois andares no final de uma rua sem saída, Ofélia sentiu uma forte conexão com ela. A firma de sua família, que comprava, reformava e vendia imóveis, tornara-os muito prósperos. Ofélia trabalhava com o pai na decoração das casas após reformadas. Tinha ido até lá a pedido do pai,  um rico corretor de imóveis que acabara de comprá-la, a fim de pegar as chaves com o antigo proprietário. 

O pai dissera tratar-se de uma casa cuja construção terminara em 1799, e as famílias que a herdaram mantiveram sua arquitetura original durante mais de duzentos anos - embora apenas algumas pessoas tivessem vivido na casa durante pouco tempo, o que a deixava intrigada. 

Ofélia tinha vinte e sete anos de idade, e passara os últimos seis anos de sua juventude cuidando da mãe doente. Não fizera amigos por isso. A mãe de Ofélia tinha sido uma mulher absorvente e dominadora, emocionalmente carente, que gostava de despertar culpa e piedade nos outros. Fora bem fácil para ela manipular a filha, recusando-se a aceitar cuidadores que pudessem acompanhá-la e cuidar dela em sua paralisia. Fez questão absoluta que a única filha cuidasse dela. Seu pai, um homem de negócios um tanto frio e emocionalmente distante, deixou que a esposa absorvesse a vida de Ofélia, pois para ele, aquilo era mais cômodo. 

Ofélia encontrou o endereço com um pouco de dificuldade, apesar do GPS, pois a rua não estava incluída no mapa. Era uma rua antiga, mas que mudara de nome recentemente. Ofélia foi parando o carro e pedindo informações aqui e ali. As últimas pessoas que a informaram eram um grupo de cinco garotos em suas bicicletas. Ela parou junto a eles, que conversavam perto da calçada, e baixou o vidro do carro:

-Olá, rapazes, tudo bem? Podem me dizer onde fica  Eternity Ville?

Eles se entreolharam antes que um deles, um menino que usava um boné laranja com a aba virada, respondesse:

- Tudo bem, mas... por que uma gata como você ia querer chegar a um lugar desses?

Ofélia riu, tentando ser paciente - tinha muitos assuntos a resolver naquele dia, e estava com pressa. Tentou usar um tom de voz casual:

-Trabalho na imobiliária que acaba de comprá-la para reformá-la e revendê-la.

Os garotos riram discretamente, baixando os olhos. O menino de boné laranja disse:

-Tudo bem... mas acho que fizeram um péssimo negócio! Ninguém vai querer comprar aquela velharia. Me siga, eu levo você lá.

Dizendo aquilo, o menino montou na bicicleta, e Ofélia o seguiu até o final daquela rua, que se tratava de uma rua residencial de classe média. Ela mal pôde ver a entrada reta à esquerda - a tal rua sem saída da qual o pai lhe falara - devido ao mato crescido em ambos os lados. Chegou a levar um pequeno susto quando o garoto virou a curva, parecendo ter entrado no matagal, mas ao virar a curva atrás dele, Ofélia viu que a rua continuava, uma passagem estreita, longa - mais ou menos um quilômetro de extensão -  e arborizada, de paralelos úmidos cobertos de musgo. 

Ao chegarem à casa, o menino parou sua bike com uma freada brusca, causando uma derrapagem que o deixou de frente para o carro. "Um exibidinho," ela pensou. Ofélia desceu do carro, e tapando o rosto com a mão por causa da luz de final de tarde, olhou para a casa antiga e envelhecida, que ficava bem no final da rua. Ela tinha sido construída no meio de um terreno que deveria ter sido ajardinado algum dia, mas que hoje era de terra e coberto de capim ressecado. Havia algumas árvores - salgueiros chorões e pinheiros . Ela ficou durante algum tempo olhando para a casa, fascinada, até que o menino chamou sua atenção.

-Bem, é isso aí.

Ofélia desviou os olhos da casa, como se despertasse de um transe, e estendeu a mão ao menino, agradecendo. Ele segurou a mão dela brevemente:

-Meu nome é Bruno. Precisando de alguma coisa, moro na terceira casa, a amarela e branca.

-Sou Ofélia. Agradeço pela atenção, Bruno, mas eu não vou morar aqui...

Ofélia olhou novamente para  acasa, e acrescentou:

-...acho...

Bruno saiu pedalando, deixando-a em frente ao portão. 

Ofélia sentiu que estava sendo observada. E estava: um senhor bastante idoso fez com que ela despertasse de seu transe, com sua voz rascante:

-Vai ficar parada aí durante muito tempo? Você deve ser a corretora, certo?

Ela se aproximou da casa, abrindo o portão de ferro fundido enferrujado, que rangeu ao ser empurrado, e caminhou até o homem que estava de pé à porta da casa. Ofélia viu que ele parecia ser realmente velho, e rascante como fel. 

-Ah, me desculpe, o senhor deve ser o proprietário...  senhor Alcides, certo?

-Certo.

-Que bela casa! 

-Se eu soubesse que iam gostar tanto, teria aumentado o preço.

Ela pensou tratar-se de uma piada, e quase sorriu, mas ao deparar com o rosto fechado dele e seus olhos azuis cortantes como aço, Ofélia engoliu em seco. O homem não estava ali para brincadeiras. Ela pigarreou, estendendo a mão a ele, mas quando viu que ele não a pegaria, ela descansou-a sobre a bolsa à tiracolo que carregava. Resolveu ser o mais fria possível e acabar logo com aquilo:

-Vim pegar as chaves. 

Ele enfiou a mão no bolso da calça, e puxou um molho de chaves grandes e antigas, entregando-as a ela. Ofélia segurou-as, sentindo um estranho calor nas palma da mão. Era como se as chaves estivessem vivas. Havia uma energia passando delas para ela, e não havia nenhuma dúvida quanto àquilo. 

-O senhor mora aqui? Quero dizer... morava?

-Ninguém mora aqui há mais de vinte anos. Mas é nosso dever manter a casa conservada, e entre a família. Mas sou o último descendente, e não tive filhos. Devo passar esta tarefa a você agora.

Ela achou estranho que ele dissesse estar passando a tarefa a ela, mesmo sabendo que ela não estava ali para morar na casa, e sim para reformá-la e vendê-la.

Ela olhou novamente para a casa, e achou que se aquele era seu dever - mantê-la conservada - ele não o tinha cumprido. 

-Bem, e por que ninguém mora aqui há tanto tempo?

O velho deu uma risada sardônica antes de responder:

-Vocês logo vão descobrir. Agora eu preciso ir. Espero que tenham depositado o dinheiro na minha conta. Saio em viagem amanhã de manhã e não quero ter nenhum problema. 

-Pode ficar tranquilo. 

Ele desceu os sete degraus  da varanda vagarosamente, e ao chegar lá em baixo, olhou para cima, dando um longo suspiro. Ofélia notou que ele parecia aliviado. Ao mesmo tempo, notou um sorriso que ela julgou como sarcástico se formando no canto dos lábios dele. 

Ofélia decidiu que não gostava dele.  Mesmo assim, tratava-se de um idoso, e ela achou que devia a ele algum respeito. Preocupou-se com o fato dele ter que caminhar um quilômetro até a rua principal e pensou se não deveria oferecer-lhe uma carona, mas sua curiosidade pela casa era tão grande, que ela virou-se para  a porta, ajustando a chave na fechadura. Porém, a imagem mental que ela construíra sobre o homem velho descendo a rua vagarosamente, podendo cair e quebrar um osso, fez com que ela descesse as escadas atrás dele. 

E ela seguiu pela rua chamando pelo nome dele, perguntando se ele não gostaria de uma carona até algum lugar, mas o velho parecia ter desaparecido no ar. Ofélia ficou intrigada; afinal, nem mesmo alguém jovem - ou um dos meninos de bicicleta - poderia ter desaparecido tão rapidamente! Ela ainda ficou ali, parada no meio da rua, as mãos na cintura, tentando olhar em volta para ver se havia alguma passagem aonde o homem poderia ter entrado, mas não viu nada, e decidiu que seria melhor voltar à casa. E assim ela fez.



(Continua...)






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