terça-feira, 5 de junho de 2018

O Lar de Ofélia - Parte III







O Lar de Ofélia Parte III


Quando Ofélia deixou a casa, já estava bem escuro. Ela parou diante do portão antes de trancá-lo, e teve a impressão de que a casa olhava para ela, tanto quanto ela olhava para a casa. As últimas fotografias que tirara, que mostravam as mudanças repentinas no jardim, estavam no tablet. 

 Ao chegar em seu apartamento, telefonou imediatamente ao seu pai:

-Pai, estive na casa.

Ele parecia entretido com alguma outra coisa - ela conseguiu escutar o jogo de futebol ao qual ele assistia. Ele resmungou:

-Oi, filha. Podemos conversar sobre os detalhes amanhã?

Ofélia insistiu:

-Não! Quero falar hoje. Pai, quando a mamãe morreu, você me perguntou se eu queria a minha parte na herança dela, e eu disse que não. Mudei de ideia. Eu quero a minha parte agora. Amanhã, ou o mais cedo possível!

Do outro lado da linha, Rony - o pai de Ofélia - pegou o controle remoto e diminuiu o volume da TV, sentando-se ereto no sofá. Estava a costumado ao modo submisso de ser da filha, sempre cordata, sempre desinteressada em bens materiais, e aquela declaração o assustou.

-Mas... por que isso agora, Ofélia? O que a fez mudar de ideia? Não vá me dizer que está com problemas de saúde!

-Não, pai, eu estou ótima. Acho que nunca estive melhor. Mas...

Antes de prosseguir, ela parou e pensou quais pedaços daquela história valeriam a pena serem contados ao seu pai, e para que ele não mandasse que ela fosse interditada e posta em um manicômio, Ofélia achou melhor omitir certas partes dos acontecimentos daquele dia:

-Na verdade, eu estou apaixonada pela casa.

Enquanto dizia aquilo, ela sentia que não era bem assim; Ofélia sentia que havia uma conexão entre a casa e ela, mas não saberia definir, ao certo, se a casa lhe causava medo, pavor mesmo, curiosidade ou qualquer outro sentimento. Só sabia que 'paixão' não era bem a palavra certa, embora fosse adequada a fim de convencer o pai a vendê-la para ela. O pai soltou o ar de repente, como se tivesse levado um soco no estômago. Nunca tinha ouvido aquela expressão - 'apaixonada' -  saindo da boca de sua filha! Lembrou-se dos poucos namorados que ela tivera, e que nenhum deles durara; lembrou-se do cuidado e esmero com o qual ela cuidava da mãe, da expressão piedosa, mas inabalável, que ela mantinha enquanto a mãe gemia de dor em seus últimos momentos, e dos olhos secos durante o velório. Paixão não era, definitivamente, uma palavra que combinava com ela.

-Ora, Ofélia... você, apaixonada por um casarão velho caindo aos pedaços? Mande-me as fotos por e-mail!

-Na verdade... ela não está tão ruim assim... eu... tirei algumas fotos, mas ... elas não ficaram muito boas. Acho que o tablet está com defeito. Voltarei lá amanhã para tirar outras. Mas pai, eu nunca pedi nada a você. Nunca! Esta é a primeira vez. Me deixe ficar com a casa!

-Mas eu não entendo! Eu estaria, aliás, nós estaríamos perdendo um grande negócio! Após reformada, ela valerá uma fortuna!

Ela sentiu-se desanimada, e não respondeu. Será que o pai teria coragem de negar-lhe aquele pedido? Ele já era um homem rico e poderoso, e nada custaria vender-lhe  a casa. Não ficaria arruinado nem nada, e ainda receberia de volta o dinheiro que tinha pago por ela. Rony sentiu a decepção dela, e disse:

-Olha, filha, eu vou pensar e te dou a resposta amanhã, ok? Agora estou assistindo ao campeonato nacional. Meu time está jogando.

Naquele momento, uma bela mulher foi juntar-se a ele no sofá da sala, e ele fez sinal para que ela não fizesse barulho. Não queria que Ofélia soubesse ainda sobre sua nova namorada. A mulher seminua passou as pontas dos dedos sobre o abdômen dele, fazendo cócegas, provocando-o. Ele segurou a mão dela, e repetiu à filha antes de desligar:

-Nos falamos amanhã, filha Durma bem. 


No dia seguinte, após sua corrida matinal, Ofélia aprontou-se, e ao invés de ir ao escritório, dirigiu-se à casa. Deixou algumas mensagens para sua secretária sobre algumas tarefas e reuniões que queria adiar, dizendo que não iria ao trabalho naquele dia, e depois disso, desligou o celular. Não queria falar com mais ninguém naquele dia. Não queria interrupções enquanto ela fazia seu tour pela casa. 

Ao chegar na rua, viu Bruno, o menino que a ajudara a encontrar o caminho no dia anterior. Buzinou para ele., e continuou dirigindo, mas notou que ele a estava seguindo em sua bicicleta, então parou o carro, abrindo a janela para falar com ele:

-Olá, Bruno. Deseja alguma coisa?

Ele a cumprimentou sorrindo,  com um aceno de cabeça, sem descer da bike:


-Olá, Ofélia. Tudo bem lá na casa?

-Sim, tudo... obrigada por me ajudar a char o caminho ontem. Agora eu... preciso ir.

Ela viu que o garoto tinha os olhos presos no decote 'V' da blusa de malha que ela usava. Aquilo deixou-a constrangida, e fechando a janela, ela disse:

-Já vou indo. Até um dia.

Bruno ficou olhando o carro se afastar, e pensando no que faria se tivesse uma mulher daquela em sua cama. Pelo retrovisor, Ofélia viu-o fitando-a. Pensou  no quanto garotos têm a imaginação fértil e a libido nos píncaros, e acabou rindo sozinha. Imaginou quantos anos ele poderia ter: dezoito, quem sabe? Se estivesse certa, aquilo deixava-o nove anos mais jovem do que ela, que não tinha a manor inclinação para envolver-se com caras mais novos. Afastou aquele pensamento - e todos os outros - ao avistar a casa.

O portão de ferro abriu-se sozinho, e ela ficou boquiaberta, pensando no quanto a casa parecia adivinhar o que ela queria. Lembrou-se de ter trancado tudo antes de sair, na noite anterior. Após recuperar-se da surpresa, Ofélia dirigiu o carro novamente, entrando, enquanto o portão voltava a fechar-se atrás dela. 

(...continua...)




2 comentários:

  1. Fantástico texto. Muito bom e interessante. :))

    Hoje, do Gil, que por motivos profissionais não pode visitar os blogues amigos:
    Coração em labaredas vulcânicas.

    Bjos
    Votos de uma boa Terça-Feira

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  2. Comecei o primeiro capítulo agora a pouco e não consigo parar de ler...
    Rumo ao próximo...

    Beijos
    Ani

    ResponderExcluir

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