segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XV








Daquela forma, a família de Ofélia viveu por trezentos anos, mudando-se constantemente de um local do mundo para o outro a fim de evitar que as pessoas percebessem que eles jamais envelheciam, fazendo e abandonando amigos e inimigos, acompanhando de longe os fatos históricos para que não fossem jamais notados. Nada mais lhes faltava, e aqueles que antes tinham sido vítimas oprimidas do mal agora eram os opressores, escolhendo suas vítimas à dedo entre a escória da humanidade - criminosos que não tinham famílias ou que fariam muito mais bem ao mundo não estando nele, prostitutas ou mendigos de quem jamais alguém sentiria falta. 

Ainda se reuniam com os seus semelhantes, pois eram parte do clã, mas raramente, porque não aprovavam seus métodos cruéis, sua loucura maldosa. Evitavam a companhia deles, mas os semelhantes se atraem e se reconhecem. Ofélia estava feliz na companhia de sua família, estava feliz sabendo que nunca mais seria vítima da doença, da miséria e da fome, pois sua condição atraía sobre eles riquezas imensas, que ela não tinha certeza de como chegava tão facilmente a eles, e preferia não saber. 

Então, no ano de 1767, eles adquiriram a mansão cuja história contamos. Por ser afastada dos grandes centros, pensaram que poderiam estar seguros ali. Pretendiam passar ali talvez uma centena de anos, sem se envolverem em atividades sociais e sem se deixarem notar. Queriam férias do mundo. Contrataram apenas um único empregado, um rapaz de trinta e um anos a quem revelaram sua condição, e este prometeu guardar segredo se ele próprio fosse transformado. Seu caráter não era muito limpo; passara alguns anos na prisão por roubos e pequenos delitos; mas como ninguém dava-lhe emprego devido á sua falta de cultura e pelos anos que passara encarcerado, e como estivesse à beira de cometer atos que garantiam não apenas o seu sustento, mas também sua inevitável volta à prisão, Leôncio aceitou aquela proposta de trabalho. Seria responsável por pequenos reparos na mansão, e também pela jardinagem e outros funções menos nobres que lhe fossem delegadas. Para ele, tais funções não seriam problema.

Assim, a família viveu por muitos anos ainda, desfrutando dos confortos da mansão e também de tudo o que a riqueza lhes proporcionava; quando queriam ir ao teatro, bailes  ou a outros eventos para se distraírem, sempre o faziam nas cidades vizinhas, de modo que não estabelecessem conexões com as pessoas do local onde viviam. 

Leôncio, apesar de ter aceito as condições de ser transformado apenas após vinte anos trabalhando para a família (eles sabiam que assim que desfrutasse de seus próprios benefícios Leôncio os deixaria) estava começando a ficar impaciente. Queria poder, ele mesmo, ter todas as riquezas que o cercavam e as quais ele só podia invejar. Assim, certa noite, após a família retornar de umas férias em uma cidade longínqua, Leôncio os confrontou:

-Preciso que vocês me transformem.

Anselmo ficou surpreso, e lembrou-o do trato:

-Você ainda não está aqui por vinte anos, e este foi o trato. 

-Sim, mas... quero escolher a minha aparência eterna. Não desejo ser eternizado com a aparência de alguém que tem 50 anos! Quer se jovem eternamente, e não velho. 

Anselmo replicou:

-Não se preocupe. Ao sermos transformados, nossa aparência rejuvenesce imediatamente. Fique calmo, cumpra o trato e terá muito mais do que jamais sonhou.

Leôncio bufou de raiva, e respondeu em voz alta:

-E se eu disser que não desejo mais cumprir trato nenhum? E se eu for agora lá na cidade e contar a todos sobre quem vocês são? 

Naquele momento, Vivian ia passando e ouviu a ameaça. Entrou na sala segurando uma de suas bonecas, e rodeando Leôncio enquanto o percorria com olhar irônico, ela disse:

-Ora, tio Leôncio... mordendo a mão que o alimenta? Vou responder à sua questão no lugar de meu pai, propondo-lhe uma outra: E se nós o matássemos aqui e agora? Do que reclamaria, ou teria para reclamar? 

Anselmo repreendeu a filha:

-Minha filha, não somos desse jeito. Não diga mais isso!

Ela caminhou até o pai:

-Talvez o senhor tenha razão, e seja melhor que eu morra. Deixe-o ir até a cidade e trazer aqui todos os curiosos e caçadores de gente como nós, que nos trarão um fim! Ou então vamos por um fim nele!

Anselmo ficou preocupado com a reação da filha. Ele vinha notando que, com o passar dos anos, ela vinha se transformando em uma pessoa amarga, cínica e cansada de tudo. Temia que sua doce filha estivesse se transformando em uma daqueles que ele evitava por serem cruéis.

Em um canto da parede, Leôncio, assustado com as ameaças feitas pela menina, suava frio e não se atrevia a dizer mais nada. Ofélia entrou na sala, perguntando:

-O que se passa aqui? Qual o motivo de tanta gritaria?

Leôncio pediu licença, e com uma reverência de cabeça, retirou-se. Anselmo, sentado em sua poltrona enquanto observava a cena, nada disse. Mas Vivian respondeu à mãe:


-Nada, mamãe. Apenas uma insatisfação proletária passageira. 

Leôncio rolou na cama, e não dormiu naquela noite. Sua revolta e humilhação pesavam sobre ele. Ser afrontado pela pequena Vivian, a quem sempre tratara tão bem... estava cansado, e queria ter a sua vida de volta, queria... uma mulher! Queria poder escolher sua companheira eterna e transformá-la, e ela seria a mais bela mulher da vila, e após a transformação, ela o amaria para sempre, por absoluta falta de alternativa. Eles sempre permaneciam entre os clãs daqueles que os transformavam. A família de Anselmo passaria a ser também a sua família; a riqueza que ele tinha passaria a ser também sua. Nunca mais seria humilhado. 

Alguns meses se passaram, e ninguém mais tocou no assunto. Aos quarenta e cinco anos, Anselmo sentia o peso dos anos que passavam, e via seu rosto enrugar-se todos os dias. Aquilo o deixava desesperado! Mais ainda, sentia-se muito mal ao deparar, todos os dias, com seus patrões, sempre jovens e bonitos, e ricos também. 

Ainda faltavam muitos anos para que o trato fosse cumprido, e novamente, ele decidiu afrontar Anselmo. Aproveitou um dia em que Vivian e Ofélia estariam ausentes, e foi ter com seu patrão, que era bem mais maleável, mas daquela vez, de forma mais veemente:

-Sr. Anselmo, se não fizer o que peço, irei embora hoje mesmo. 

Olhando para ele com tristeza, Anselmo espondeu:

-Sinto muito, Leôncio. Acreditei em você e em sua palavra. Só me resta fazer suas contas e mandá-lo embora, e infelizmente, também teremos que partir desta casa que tanto amamos. afinal, você provou não ser de confiança. 

Leôncio esperou até que seu patrão reunisse a quantia que lhe devia - acrescida de mais alguns milhares, que ele decidiu pagar por conta própria, porque era um homem generoso - e retirou-se da casa. 

Quando Vivian e Ofélia retornaram, ele explicou-lhes o acontecido e disse-lhes que deveriam deixar a casa na noite seguinte, pois já amanhecia um dia ensolarado e quente, e a luz do sol forte podia ser fatal para pessoas como eles. A família recolheu-se aos seus quartos a fim de descansar, entristecidos por terem que deixar a casa. 

Ofélia, antes de recolher-se, percorreu toda a casa, parando diante do quadro da família que estava pendurado na parede da sala de estar. Ficou olhando para ele por um longo tempo, e teve um pressentimento horrível que causou-lhe uma imensa tristeza. Parecia-lhe certo de que algo aconteceria, e ela nunca mais veria sua família. Anselmo abraçou-a por trás:

-O que há, meu amor?

Ela agarrou-se a ele, chorando em seu peito:

-Eu não sei... tive um pressentimento...

-Está tudo bem, querida, lembre-se que ninguém pode nos fazer mal. Somos imortais!

-Sim, a não ser que...

-Shsh... Leôncio levará o dia todo até chegar à cidade, e quando lá chegar, já será noite, e teremos partido. Voaremos daqui para outro lugar e recomeçaremos nossas vidas. Onde está Vivian?

-Ela dorme. Também estou preocupada com ela. Você sabe, ela não é o que aparenta ser. Não é uma menininha... isto a está deixando amarga. 

-Eu sei, querida. Existe uma forma de fazer pessoas como ela crescerem alguns anos. Cuidaremos disso. Tentaremos achar o curandeiro que faz este procedimento. É que sempre achei necessário que ela fosse a nossa menininha para sempre... 

-Mas ela não é. Vivian é uma mulher.

Eles se beijaram. Sempre que se beijavam, Ofélia esquecia de todas as suas preocupações.

Mas não muito longe dali, Leôncio aguardava... planejava sua vingança... 

(Continua...)





2 comentários:

  1. Como sempre, é um gosto ler os seus contos. Obrigada pela partilha:))

    Hoje, com: Sussurros da natureza em desamor
    Bjos
    Votos de uma óptima Terça - Feira

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