quarta-feira, 5 de agosto de 2020

O DIA QUE MUDOU MINHA VIDA - PARTE 3









PARTE 3

A manhã estava quase terminando. Como Paola não estivesse conseguindo falar com Betina, acabou programando outra coisa para fazer durante o dia: iria ao cinema com amigos. Já tinha ligado para a Márcia, o Pedro, a Jan e o Breno.

Ao ouvir o nome dele, eu gelei. Então era isso? Ele matava a amiga e ia ao cinema? Como podia ser tão frio? 
Na hora do almoço, tentei comer um pouco. Minha mãe preparou uma macarronada deliciosa. Já estávamos quase terminando o almoço quando o telefone tocou. Meu coração quase parou. Mamãe foi atender, e era apenas papai. Eles falaram durante algum tempo, e depois ela desligou. 
Por volta de meio-dia e trinta, eu enxugava as louças do almoço quando o telefone tocou novamente. Daquela vez, Sandrinha atendeu. Pude ouvi-la:

-Oi, Helena! Tudo bem? Tentamos falar com Betina a manhã toda... não... você chegou em casa agora? Não, ela não está aqui! Ah, tirou o dia de folga ontem, hein? Que bom! ... está bem. Se ela aparecer, eu digo que você já chegou. Beijo.

Eu, que ouvira toda a conversa, encostei-me na parede para não cair. Sandrinha me olhou:

-Você está branca feito um papel, Mônica. Aconteceu alguma coisa?

Eu não conseguia responder. Meu coração estava tão acelerado, que eu sufocava. Me senti escorregar parede abaixo, tudo em volta foi ficando embaçado, e vi minhas irmãs e minha mãe correndo em minha direção, até que tudo escureceu. 

Acordei em uma sala branca, e havia uma agulha espetada no meu braço. Em volta de mim, todos pareciam muito preocupados. Ao ver que eu tinha acordado, Paola, de olhos vermelhos, cutucou minha mãe, e então ela veio correndo até a maca aonde eu estava deitada na emergência do hospital. Olhei para ela ainda grogue por causa dos medicamentos e pisquei várias vezes, me sentindo tonta e confusa. Ela disse:

-Não se preocupe, eles te deram um calmante. 

E foi naquele momento que eu cometi meu terceiro erro: perguntei a ela:

-Já acharam o corpo?

Ela arregalou os olhos, e sorriu:

-Que corpo, querida? Acho que você está delirando por causa dos remédios. Mas logo vamos para casa. 
Meu pai estava de pé ao meu lado, e me deu um beijo na testa. Apaguei de novo. 
Quando acordei, minhas irmãs não estavam no quarto, e não vi meu pai. Já estava escurecendo, pois as persianas estavam fechadas e havia uma luz fraca acesa por trás da maca. Ao me ver acordada, meu pai me disse:

-Oi, filha. Melhorou?

Pisquei novamente, repetidas vezes. 

-Estou bem, sim, pai. Cadê todo mundo?

Ele não respondeu, e mudou de assunto. Parecia bem triste:

-O médico disse que você poderia ir para casa assim que acordasse, mas ela quer dar uma olhada em você antes. Disse que você teve um mal-estar por causa do calor. 

Ele saiu do quarto e voltou com o médico, que me examinou e disse que eu podia ir. À porta, ele disse ao meu pai:

-Evite que ela tenha emoções muito fortes por hoje... conte amanhã...

Assim que ele saiu, meu pai e eu fomos para o carro e de volta para casa. Eu sabia que eles já tinham recebido a notícia. O silêncio entre nós já dizia tudo. Não pude me conter:

-Pai... aconteceu alguma coisa?

Ele parecia que estava pronto para desabar. De repente, encostou o carro no meio-fio, e com as duas mãos sobre o volante, parecia estar tomando coragem para me contar. Esperei, até que ele achasse as palavras:

-Mônica, aconteceu uma coisa, sim. Vou contar agora, pois quando chegarmos em casa, vai ser pior. Suas irmãs estão muito abaladas. Bem, é que... a Betina... ela morreu. 

Eu achei melhor fingir surpresa:

-Morreu??? Mas... como? Ela... ela é muito nova ainda, pai!

-Eu sei, querida. Eu sei...

Ele chorou um pouco, e nos abraçamos. Chorei também, sinceramente, querendo acreditar que eu não soubera daquilo antes de todo mundo. Fingi que nunca estivera naquele quarto no dia anterior. Mas os olhos dela, de vidro verde, me olhavam de algum lugar que eu não tinha como escapar. 

Depois daquilo, houve o velório. Minhas irmãs estavam arrasadas. Os pais de Betina choravam muito, se sentindo culpados. Houve perícia, e acharam a cocaína sobre o mármore da pia do banheiro. Porém, a causa mortis não tinha sido overdose, e sim o ferimento na cabeça, que segundo a perícia, tinha sido ocasionado por uma queda acidental sobre uma estatueta de ferro. Mas eu sabia que não, e só eu sabia. Aquilo fez toda a diferença em minha vida. 

No velório, olhei de soslaio para Breno, pois não conseguia encará-lo. Ele era o mais abalado de todos nós, amigos de Betina. Precisaram medicá-lo com calmantes. Seria uma forma de disfarçar tudo? Notei que havia um rapaz ao lado dele que nós não conhecíamos, e depois ficamos sabendo ser seu namorado. Mas então, por que Betina estava nua com ele quando morreu? Aquela era uma pergunta que eu jamais poderia fazer a ninguém. Ninguém sabia que eu tinha sido a primeira pessoa, ou melhor, a segunda pessoa a vê-la morta.

Falamos com Helena; ela desconfiava que havia alguém mais na casa no dia da morte, pois encontrou dois copos com restos de suco de laranja na pia, e Betina não tomava suco de laranja, pois a acidez da fruta provocava-lhe dores de estômago – ela sofria de gastrite. Helena tinha comprado o suco para si mesma. 

Fiquei muito preocupada, pois sabia que a polícia poderia tirar impressões digitais dos copos e comprovar que eram minhas. Por que eu não lavara os copos? E por que estava tão preocupada, afinal de contas? Não era eu a assassina! Passei várias noites sem dormir também por causa daquilo, mas nada aconteceu, já que descobri que automaticamente, assim que chegou em casa e antes de saber da morte de Betina, Helena tinha lavado os copos. Não havia mais qualquer impressão digital neles, e a polícia nada pode fazer, concluindo que talvez Betina tivesse tomado o suco, afinal. 

Me senti aliviada ao saber daquilo. Sem perceber, eu começara a agir como se eu tivesse matado Betina, como se eu tivesse algo a esconder!

Minha mãe me olhava de uma maneira muito estranha durante o velório, e mesmo depois dele. 
Alguns dias depois, abri os olhos no quarto durante a noite e deparei com minha mãe de pé ao lado da minha cama, me olhando. O abajur ao lado da cama estava aceso, e pude ver que seus olhos eram frios e indagadores. Levei um susto. 

-Mãe? O que aconteceu?

Ela me encarou por algum tempo antes de responder. Depois, com voz firme, ela me disse:

-Você teve outro pesadelo. Estava quase gritando!

Sentei-me na cama: o que ela tinha ouvido? O que eu tinha dito? Minha mãe completou:

-Você ficou assim depois que sua tia-avó morreu, lembra-se?

-E como poderia esquecer? Claro que eu me lembro. 

-A morte de Betina a abalou muito, não foi?

Concordei com a cabeça e me deite, virando-me de lado e de costas para ela. Ela saiu do quarto, fechando a porta. 

O Natal daquele ano foi muito triste, e não houve comemorações na nossa casa, nem ceia. Fomos todos dormir mais cedo. 

Uma semana após a morte de Betina, todos fomos à missa de sétimo dia. Paola chorava muito, abraçada a Breno e Sandrinha. Eram melhores amigos desde crianças. Eu olhava toda a cena do meu lugar na igreja, me sentindo oprimida e sofrendo por causa do calor, sentindo o suor escorrer pelas minhas costas me fazendo cócegas. Só queria que tudo aquilo ficasse para trás.

Morávamos em uma cidade pequena, e o caso foi manchete no jornal local por vários dias. Havia uma foto três por quatro de Betina estampando uma das  matérias que não fazia jus à sua beleza. Somente eu guardara comigo o último vislumbre de Betina ainda bonita, sem a cor esverdeada dos cadáveres.

Daquela noite em que acordei com minha mãe me olhando em diante, eu sentia como se um abismo fosse sendo cavado entre mim e ela. Com o passar dos meses, minhas irmãs se recuperaram da perda – eram jovens e tinham muitos amigos. Mas minha mãe parecia cada vez mais triste e calada. E quando ela me olhava, seu olhar era tão profundo, que eu sabia... que ela sabia de alguma coisa! Um silêncio criou-se entre nós. Ela só falava comigo sobre coisas absolutamente indispensáveis, e eu apenas respondia, pois temia que ela tocasse no assunto. Eu me lembrava de que, no dia em que fui para o hospital, eu perguntara a ela se já tinham achado o corpo. Com certeza, ela ligara os pontos. Sabia que de alguma forma, eu tinha alguma conexão com a morte de Betina. 

E então, após quase três meses e meio da morte de Betina, eu me lembrei do anel em minha gaveta. 


(continua...)




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