Parte 3
Cada um dos
muitos amigos de meu pai compareceram ao velório, e também muitas mulheres que
vi no hospital e outras que eu nunca tinha visto na vida. Todos eles ficaram me
paparicando, e conversando entre eles e olhando para mim com pena. Eu só queria
que fosse todo mundo embora e me deixassem ter um momento a sós para que eu
pudesse me despedir do meu pai.
Ninguém da
família compareceu, a não ser Tio Heitor e Tia Atena, mas minha tia Agnes me
telefonou, perguntando se eu gostaria de morar com ela na Europa. Meus avós me
ligaram fazendo a mesma proposta. Quando eu disse a eles que não precisava,
pois estava bem financeiramente e meu pai tinha me emancipado, todos pareceram
aliviados, mas disseram que caso eu precisasse de alguma coisa, não deveria
hesitar em pedir. Agradeci polidamente, feliz por me livrar deles.
Alguns
colegas da escola passaram por lá, dizendo que sentiam muito, e que se eu
precisasse de alguma coisa, não deveria hesitar em ligar para eles a qualquer
ora do dia ou da noite. Achei engraçado, pois eles nunca tinham se importado
comigo antes. Alguns professores compareceram também, rapidamente. Fiquei
surpresa de que aquelas pessoas tivessem se dado ao trabalho. Meus professores
também me disseram que se eu precisasse de alguma coisa, não deveria hesitar em
pedir.
Aliás, ouvi
aquela frase dezenas de vezes naquele dia, quando tudo o que eu queria era ser
deixada em paz, mas certamente, não poderia pedir aquilo a eles.
Meu pai
estava lá, deitado, indiferente a tudo o que acontecia. As pessoas olhavam para
ele, tocavam as mãos deles por alguns instantes enquanto murmuravam coisas,
jogavam água benta nele. Aquilo era tão patético. Velórios são sempre tão
patéticos. E no final, um padre todo paramentado chegou. Olhei para o meu tio,
que me olhou de volta e encolheu os ombros, olhando na direção da tia Aurora,
querendo dizer que aquilo era coisa dela. Meu pai não gostava de padres, nem de
igrejas, e ela o estava forçando a ouvir um sermão em seus últimos momentos na
Terra.
Sem pensar, eu
me levantei como um raio do banco onde estava sentada, caminhando na direção do
padre no momento em que ele começou a abrir a Bíblia:
- Vá embora,
por favor. Meu pai não era religioso e nem gostava de padres.
Falei aquilo
baixinho, olhando nos olhos dele. Ele pareceu confuso por um momento:
-Bem, eu fui
chamado aqui...
- Foi um
engano, o senhor pode ir, por favor.
Ele abriu a
boca para dizer mais alguma coisa, mas eu o fuzilei com os olhos:
-Por favor!
As pessoas já
tinham percebido o que estava acontecendo. Minha Tia Atena chorava. O pobre
homem recolheu sua Bíblia e saiu, humilhado. Mas antes, parou diante do caixão
e fez o sinal da cruz. Tia Atena chegou perto de mim, falando baixinho:
-Me desculpe,
eu não deveria...
-Não deveria
mesmo. Ele era meu pai. A decisão teria que ter sido minha.
-Mas... as
pessoas... é que eu pensei...
-A última
coisa que preocupava meu pai era a opinião alheia, tia, e você sabe disso. Além
disso, quem são todas essas pessoas? Meu pai as conhecia de verdade? Eu nunca
vi a maioria delas. Precisava chamar toda essa gente?
Ela hesitou,
e respondeu:
- Eles são...
conhecidos, querida, ex-vizinhos do bairro antigo, a gente avisa as pessoas nessas
horas...
-Ou seja: são
curiosos. E carpideiras.
Ela me olhou,
zangada:
- Seu pai
tinha uma vida social que você desconhecia, ele não era só o ‘seu’ pai. Ele
tinha amigos. E amigas também, se é que você me entende. Mas ele não gostava
que você ficasse sabendo disso.
-Ou seja,
esse pessoal aqui são amigos de copo, amigos de bar, amigas de cama.
Ela concordou
com a cabeça:
-Mais ou
menos, sim..., mas são pessoas que se importavam com ele, que gostavam dele.
-Interessante
eu nunca ter visto a maioria deles no hospital, ou visitando meu pai em casa
depois que ele adoeceu.
Ela me pegou
pelo braço, me arrastando para o corredor:
- O que você
quer que eu faça, Valentina? Que eu expulse os amigos do seu pai? Que eu mande
todos embora, que impeça as pessoas de se despedirem dele? Você acha que ele
vivia apenas para você, por você, que a existência dele se resumia apenas a
tomar conta de você? Este é um pensamento egoísta!
Naquele
momento, enquanto lágrimas quentes e grossas queimavam meu rosto, eu percebi
que estava com ciúmes do meu pai. Eu tinha ciúmes por não conhecer a maioria
das pessoas que ele conhecia, por ele ter isolado de mim aquela parte
importante da sua vida. Eu estava revoltada porque, no fundo, eu não conhecia
meu pai de verdade. Ele me mantivera dentro daquela casa, me dizendo para
escolher bem as pessoas que fariam parte da minha vida, enquanto ele tinha uma
vida cheia de pessoas que eu não conhecia. Eu percebi que ele não estava, na
verdade, me ensinando a ser livre e independente, como ele dizia, mas poupando
a si mesmo das preocupações que teria, caso eu tivesse sido uma adolescente que
gostasse de sair com amigos e ter muitos namorados. Naquele momento, eu me
senti muito magoada com meu pai. Enquanto ele viajava quase todo final de
semana e chegava tarde em casa muitas noites para estar com seus amigos, eu
ficava isolada naquela casa junto à floresta, lendo os livros que ele dizia que
seriam bons para a formação da minha personalidade. E a maioria daquelas
pessoas nem deveria saber que eu existia, que eu era a filha dele!
Meu pai me
protegia do mundo apenas para que eu não desse trabalho a ele, para que eu não
ficasse no caminho dele.
De repente,
lembrei-me de uma discussão que eu ouvira entre ele e minha mãe quando eu tinha
seis anos, uma cena da minha vida que tinha sido totalmente apagada da minha
memória. Eu acordei no meio da noite, e ouvi vozes alteradas vindas da sala de
estar. Eu abri a porta do quarto e me sentei nos primeiros degraus, e vi meus
pais discutindo. Minha mãe chorava, e perguntava a ele: “Você estava com ela,
não estava? Você está sempre com ela, nem liga mais para nós! Só quer saber
dessa... Natália!” Meu pai estava sentado no sofá, a cabeça entre as mãos:
“Sim, eu estava com ela, e sabe por quê? Porque lá eu tenho paz!”
Meu estômago
revirou. Corri até o banheiro, seguida pela minha tia, que segurou meu cabelo
enquanto eu vomitava. Eu não estava pronta para aquele torvelinho de memórias
repentinas.
Eu nunca, até
hoje, compreendi como aquela cena tinha voltado tão de repente, se eu nunca
pensava nela, nem sequer me lembrava daquele dia. Eu cresci acreditando que o
casamento dos meus pais era alguma coisa sagrada, e que o amor dele pela minha
mãe era tão puro e profundo ao ponto de ele jamais querer se casar de novo. Ele
me fez acreditar naquilo. Eu cresci com aquele pensamento. Mas ele mentiu. Ele
não se casou de novo porque, na verdade, nunca foi talhado para o casamento.
Sua vida era ter muitas mulheres e não ser de nenhuma.
Aquele nome
nome não me saía da cabeça: Natália. Eu ouvira minha mãe gritar aquele nome
naquela noite, há anos atrás, quando eu tinha seis anos.
Lavei o rosto
na pia do banheiro, enxugando-o com uma toalha de papel que tia Atena me
entregou. Me olhei no espelho, e vi que eu estava muito pálida. Tia Atena me
olhava, preocupada. Ela me perguntou:
-Você está
melhor?
Não respondi;
ao invés disso, perguntei:
-Quem é Natália?
Ela está aqui?
Vi minha tia
empalidecer e gaguejar:
- Quem?
Natália... que Natália? Não conheço nenhuma Natália.
Eu tinha
certeza de que ela estava mentindo. Insisti:
- Se você não
me disser a verdade, eu vou entrar lá agora mesmo e gritar o nome dela. Então
eu vou saber quem ela é.
Ela sabia que
eu faria exatamente aquilo. Tia Atena concordou com a cabeça, vencida.
-Eu vou te
dizer quem é Natália. Mas será que você pode esperar até o final do velório?
Vamos enterrar seu pai primeiro.
-Mas você
promete que vai me contar?
- Eu prometo
que vou te contar. Vou passar a noite na sua casa hoje, só nós duas, e te conto
tudo. Mas por favor, não faça nenhum escândalo. E não importa o que eu te
disser, quero que saiba de uma coisa: seu pai amava muito você. Você era o
centro da vida dele. E se ele mentiu para você, foi para poupar você de
qualquer sofrimento. Mas por favor, Valentina, agora não. Não é hora.
Dizendo
aquilo, ela voltou para a sala onde meu pai estava sendo velado, e eu a segui,
em silêncio. Quando entramos, notei que algumas pessoas me encararam. Ergui a
cabeça e as encarei de volta, e elas baixaram os olhos.
E foi assim o
dia em que eu enterrei meu pai.
(CONTINUA...)
Também acho os velórios patéticos.
ResponderExcluirGrande parte das pessoas presentes estão ali só para parecer bem.
Com o desaparecer do pai esta jovem vai começar a "viver" uma vida cheia de descobertas...pelos vistos não sendo algumas muito boas.
Brisas doces *