quarta-feira, 6 de abril de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 3

 




Parte 3

 

Cada um dos muitos amigos de meu pai compareceram ao velório, e também muitas mulheres que vi no hospital e outras que eu nunca tinha visto na vida. Todos eles ficaram me paparicando, e conversando entre eles e olhando para mim com pena. Eu só queria que fosse todo mundo embora e me deixassem ter um momento a sós para que eu pudesse me despedir do meu pai.

Ninguém da família compareceu, a não ser Tio Heitor e Tia Atena, mas minha tia Agnes me telefonou, perguntando se eu gostaria de morar com ela na Europa. Meus avós me ligaram fazendo a mesma proposta. Quando eu disse a eles que não precisava, pois estava bem financeiramente e meu pai tinha me emancipado, todos pareceram aliviados, mas disseram que caso eu precisasse de alguma coisa, não deveria hesitar em pedir. Agradeci polidamente, feliz por me livrar deles.

Alguns colegas da escola passaram por lá, dizendo que sentiam muito, e que se eu precisasse de alguma coisa, não deveria hesitar em ligar para eles a qualquer ora do dia ou da noite. Achei engraçado, pois eles nunca tinham se importado comigo antes. Alguns professores compareceram também, rapidamente. Fiquei surpresa de que aquelas pessoas tivessem se dado ao trabalho. Meus professores também me disseram que se eu precisasse de alguma coisa, não deveria hesitar em pedir.

Aliás, ouvi aquela frase dezenas de vezes naquele dia, quando tudo o que eu queria era ser deixada em paz, mas certamente, não poderia pedir aquilo a eles.

Meu pai estava lá, deitado, indiferente a tudo o que acontecia. As pessoas olhavam para ele, tocavam as mãos deles por alguns instantes enquanto murmuravam coisas, jogavam água benta nele. Aquilo era tão patético. Velórios são sempre tão patéticos. E no final, um padre todo paramentado chegou. Olhei para o meu tio, que me olhou de volta e encolheu os ombros, olhando na direção da tia Aurora, querendo dizer que aquilo era coisa dela. Meu pai não gostava de padres, nem de igrejas, e ela o estava forçando a ouvir um sermão em seus últimos momentos na Terra.

Sem pensar, eu me levantei como um raio do banco onde estava sentada, caminhando na direção do padre no momento em que ele começou a abrir a Bíblia:

- Vá embora, por favor. Meu pai não era religioso e nem gostava de padres.

Falei aquilo baixinho, olhando nos olhos dele. Ele pareceu confuso por um momento:

-Bem, eu fui chamado aqui...

- Foi um engano, o senhor pode ir, por favor.

Ele abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas eu o fuzilei com os olhos:

-Por favor!

As pessoas já tinham percebido o que estava acontecendo. Minha Tia Atena chorava. O pobre homem recolheu sua Bíblia e saiu, humilhado. Mas antes, parou diante do caixão e fez o sinal da cruz. Tia Atena chegou perto de mim, falando baixinho:

-Me desculpe, eu não deveria...

-Não deveria mesmo. Ele era meu pai. A decisão teria que ter sido minha.

-Mas... as pessoas... é que eu pensei...

-A última coisa que preocupava meu pai era a opinião alheia, tia, e você sabe disso. Além disso, quem são todas essas pessoas? Meu pai as conhecia de verdade? Eu nunca vi a maioria delas. Precisava chamar toda essa gente?

Ela hesitou, e respondeu:

- Eles são... conhecidos, querida, ex-vizinhos do bairro antigo, a gente avisa as pessoas nessas horas...

-Ou seja: são curiosos. E carpideiras.

Ela me olhou, zangada:

- Seu pai tinha uma vida social que você desconhecia, ele não era só o ‘seu’ pai. Ele tinha amigos. E amigas também, se é que você me entende. Mas ele não gostava que você ficasse sabendo disso.

-Ou seja, esse pessoal aqui são amigos de copo, amigos de bar, amigas de cama.

Ela concordou com a cabeça:

-Mais ou menos, sim..., mas são pessoas que se importavam com ele, que gostavam dele.

-Interessante eu nunca ter visto a maioria deles no hospital, ou visitando meu pai em casa depois que ele adoeceu.

Ela me pegou pelo braço, me arrastando para o corredor:

- O que você quer que eu faça, Valentina? Que eu expulse os amigos do seu pai? Que eu mande todos embora, que impeça as pessoas de se despedirem dele? Você acha que ele vivia apenas para você, por você, que a existência dele se resumia apenas a tomar conta de você? Este é um pensamento egoísta!

Naquele momento, enquanto lágrimas quentes e grossas queimavam meu rosto, eu percebi que estava com ciúmes do meu pai. Eu tinha ciúmes por não conhecer a maioria das pessoas que ele conhecia, por ele ter isolado de mim aquela parte importante da sua vida. Eu estava revoltada porque, no fundo, eu não conhecia meu pai de verdade. Ele me mantivera dentro daquela casa, me dizendo para escolher bem as pessoas que fariam parte da minha vida, enquanto ele tinha uma vida cheia de pessoas que eu não conhecia. Eu percebi que ele não estava, na verdade, me ensinando a ser livre e independente, como ele dizia, mas poupando a si mesmo das preocupações que teria, caso eu tivesse sido uma adolescente que gostasse de sair com amigos e ter muitos namorados. Naquele momento, eu me senti muito magoada com meu pai. Enquanto ele viajava quase todo final de semana e chegava tarde em casa muitas noites para estar com seus amigos, eu ficava isolada naquela casa junto à floresta, lendo os livros que ele dizia que seriam bons para a formação da minha personalidade. E a maioria daquelas pessoas nem deveria saber que eu existia, que eu era a filha dele!

Meu pai me protegia do mundo apenas para que eu não desse trabalho a ele, para que eu não ficasse no caminho dele.

De repente, lembrei-me de uma discussão que eu ouvira entre ele e minha mãe quando eu tinha seis anos, uma cena da minha vida que tinha sido totalmente apagada da minha memória. Eu acordei no meio da noite, e ouvi vozes alteradas vindas da sala de estar. Eu abri a porta do quarto e me sentei nos primeiros degraus, e vi meus pais discutindo. Minha mãe chorava, e perguntava a ele: “Você estava com ela, não estava? Você está sempre com ela, nem liga mais para nós! Só quer saber dessa... Natália!” Meu pai estava sentado no sofá, a cabeça entre as mãos: “Sim, eu estava com ela, e sabe por quê? Porque lá eu tenho paz!”

Meu estômago revirou. Corri até o banheiro, seguida pela minha tia, que segurou meu cabelo enquanto eu vomitava. Eu não estava pronta para aquele torvelinho de memórias repentinas.

Eu nunca, até hoje, compreendi como aquela cena tinha voltado tão de repente, se eu nunca pensava nela, nem sequer me lembrava daquele dia. Eu cresci acreditando que o casamento dos meus pais era alguma coisa sagrada, e que o amor dele pela minha mãe era tão puro e profundo ao ponto de ele jamais querer se casar de novo. Ele me fez acreditar naquilo. Eu cresci com aquele pensamento. Mas ele mentiu. Ele não se casou de novo porque, na verdade, nunca foi talhado para o casamento. Sua vida era ter muitas mulheres e não ser de nenhuma.

Aquele nome nome não me saía da cabeça: Natália. Eu ouvira minha mãe gritar aquele nome naquela noite, há anos atrás, quando eu tinha seis anos.

Lavei o rosto na pia do banheiro, enxugando-o com uma toalha de papel que tia Atena me entregou. Me olhei no espelho, e vi que eu estava muito pálida. Tia Atena me olhava, preocupada. Ela me perguntou:

-Você está melhor?

Não respondi; ao invés disso, perguntei:

-Quem é Natália? Ela está aqui?

Vi minha tia empalidecer e gaguejar:

- Quem? Natália... que Natália? Não conheço nenhuma Natália.

Eu tinha certeza de que ela estava mentindo. Insisti:

- Se você não me disser a verdade, eu vou entrar lá agora mesmo e gritar o nome dela. Então eu vou saber quem ela é.

Ela sabia que eu faria exatamente aquilo. Tia Atena concordou com a cabeça, vencida.

-Eu vou te dizer quem é Natália. Mas será que você pode esperar até o final do velório? Vamos enterrar seu pai primeiro.

-Mas você promete que vai me contar?

- Eu prometo que vou te contar. Vou passar a noite na sua casa hoje, só nós duas, e te conto tudo. Mas por favor, não faça nenhum escândalo. E não importa o que eu te disser, quero que saiba de uma coisa: seu pai amava muito você. Você era o centro da vida dele. E se ele mentiu para você, foi para poupar você de qualquer sofrimento. Mas por favor, Valentina, agora não. Não é hora.

Dizendo aquilo, ela voltou para a sala onde meu pai estava sendo velado, e eu a segui, em silêncio. Quando entramos, notei que algumas pessoas me encararam. Ergui a cabeça e as encarei de volta, e elas baixaram os olhos.

E foi assim o dia em que eu enterrei meu pai.



(CONTINUA...)






 

Um comentário:

  1. Também acho os velórios patéticos.
    Grande parte das pessoas presentes estão ali só para parecer bem.
    Com o desaparecer do pai esta jovem vai começar a "viver" uma vida cheia de descobertas...pelos vistos não sendo algumas muito boas.
    Brisas doces *

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