segunda-feira, 18 de abril de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 4

 





Parte 4

 

Depois do velório, entrei no carro dos meus tios, e tio Raul nos levou até a minha casa, deixando-nos lá sozinhas. Eram quase cinco da tarde quando chegamos, e eu estava exausta, tanto emocional quanto fisicamente. Eu estava acostumada à presença dos meus tios – crescera tendo-os em minha vida – mas agora que eu sabia que durante todo aquele tempo eles tinham escondido coisas de mim, de repente não me sentia mais tão à vontade com eles. Para mim era como se eu estivesse cercada de pessoas estranhas, que sabiam tudo de mim sem que eu soubesse o suficiente sobre elas. A sensação de solidão era excruciante.

Na varanda, encontramos sobre a mesinha alguns cartões de pêsames e também vasilhas com comida, como uma lasanha, salada, bolos e biscoitos caseiros. Todos com um cartãozinho. Senti gratidão e simpatia por aquelas pessoas, vizinhos que nem moravam tão perto e que eu mal cumprimentava, e que estavam demonstrando solidariedade. Eu me sentia grata também pelo fato de que por causa da generosidade deles, eu não precisaria comer a comida da minha tia.

Eu e Tia Atena levamos tudo aquilo para dentro e guardamos. Ela colocou a lasanha semipronta no forno e começou a pôr a mesa para o jantar. Com toda aquela comida, eu concluí que não teria que me preocupar em cozinhar por pelo menos uma semana, o que é um alívio para quem está passando por um momento de luto.

Nós comemos – ou seja, tia Atena devorou a maior parte da lasanha, enquanto eu dei apenas algumas garfadas, desmanchando o resto no prato em uma massa disforme e repugnante. Fiquei me perguntando se algum dia eu teria fome outra vez. Depois que eu a ajudei a limpar a cozinha, nós nos sentamos no sofá da sala, cobertas pelas mantas que estavam sempre jogadas sobre o sofá. Acendemos a lareira, pois a noite era fria, e deixamos apenas as luzes dos dois abajures acesas. E então ela me contou a história dos meus pais.

Meu pai era um homem casado quando conheceu minha mãe. O nome da primeira esposa dele era Fernanda. Aquela informação, por si só, já me deixou boquiaberta. Ele tinha 36 anos, e minha mãe, 25 quando se conheceram em um bar. Eles começaram a se relacionar naquela mesma noite. Meus tios sabiam de tudo, pois eles namoravam naquela época, e os quatro – meu pai, Fernanda e meus tios - saíam juntos algumas vezes. Naquela noite, Fernanda tinha ficado trabalhando até mais tarde. Minha tia me disse que meu pai e minha mãe trocaram olhares durante alguns minutos (meu tio Heitor tentando fazer ele não perder o juízo) e depois ele a convidou para dançar. No começo do relacionamento do meu pai com minha mãe, meu tio Heitor foi totalmente contra, pois não gostava da ideia de meu pai estar traindo a esposa com quem estava casado há cinco anos e meio. Tia Atena, porém, passou a gostar muito de minha mãe e as duas ficaram muito amigas.

Fernanda, a primeira esposa de meu pai, era uma pessoa difícil e problemática, muito ciumenta, quase sempre em estado depressivo. Meu pai se apaixonou por ela porque ela era extremamente bonita, segundo minha tia me contou. A paixão dos dois era puramente sexual, quase uma doença da qual eles não conseguiam se curar, mas ela não sentia que havia amor entre eles, pois na opinião dela, nenhum tipo de amor poderia causar tanta discórdia e tantos problemas. Na cama, eles se davam perfeitamente bem, segundo confissões da própria Fernanda a ela, mas fora dela, eram como água e óleo. Mesmo assim, agiam como se não pudesse respirar sem a presença um do outro, até que Bia – minha mãe – surgiu.

No começo, meus tios pensaram que seria apenas um caso passageiro, mas à medida que o tempo passava, eles viam que era muito mais que isso. Logo, a paixão sexual que meu pai nutria por Fernanda diminuiu, e ela percebeu logo que alguma coisa estava errada. Mas meu pai não tinha coragem de se separar de Fernanda, pois tinha medo de que ela cumprisse sua promessa de se matar caso ele fosse embora. Ao mesmo tempo, Bia também cobrava dele uma escolha. Fernanda desconfiava que ele estava tendo um caso, mas tio Heitor o ajudava a encobrir tudo, e minha tia Atena também procurava se envolver o menos possível naquela história, já que era amiga de Fernanda e tinha se tornado também amiga de Bia.

E quando meus avós - pais de Bia - descobriram quem era o homem com quem a filha deles vinha saindo, a pressão aumentou ainda mais. Não queriam o escândalo de ter sua filha sendo amante de um homem casado. Fizeram tudo para separar os dois, mas não conseguiram. Quanto mais tentavam, mais os dois se uniam. Até que eles acharam que a única saída seria procurar Fernanda e contar tudo a ela.

E foi o que eles fizeram. Meu pai e minha mãe já vinham se relacionando há quase um ano quando aquilo aconteceu. Exatamente naquela época, minha mãe ficou grávida. Quando Fernanda soube de tudo, ela procurou minha mãe e pediu a ela que se afastasse, mas quando minha mãe disse que estava grávida, Fernanda não suportou, já que ela mesma não podia engravidar. Naquela mesma noite, Fernanda cometeu suicídio.

Aquilo arruinou o relacionamento que meu pai poderia ter tido com meus avós para sempre, pois meus avós culpavam meu pai, e ele, aos meus avós, pelo que tinha acontecido com Fernanda (eles ficaram com muita pena dela). E a família de Fernanda passou a perseguir meu pai e minha mãe, o que fez com que ele vendesse a casa e se afastasse, e foi quando fomos morar em Lumiar. Mesmo desaprovando o relacionamento, meus avós jamais deixaram de proteger a filha, e fizeram questão de dar a ela uma casa decente para morar, mesmo ela tendo se casado com um homem que eles detestavam. Pelo menos, sua filha e sua neta teriam uma vida confortável, como eles mesmos disseram. No começo, meu pai não queria morar na casa, mas com o tempo, achou que seria egoísmo privar a mim e à minha mãe de conforto apenas por causa do seu orgulho ferido.

Naquele trecho da história, senti raiva de meu pai; a vida toda, ele me dissera que meus avós não gostavam dele porque ele não era rico, e que eles só nos presentearam com uma casa porque não queriam que os seus amigos ricos ficassem sabendo que nós morávamos em seu apartamentinho. Privou-me de ter um relacionamento com meus avós e minha tia e primos porque não queria que eu soubesse da verdade. Minha tia respondeu, à minha observação:

- Jamais duvide do amor do seu pai por você. Ele cometeu muitos erros. Talvez mais erros do que a maioria das pessoas, mas depois ele caiu em si, ele compreendeu o quanto ele tinha magoado Fernanda e sua mãe, e se arrependeu. Se ele não queria que você ficasse sabendo da verdade, foi apenas por medo de perder você. Eu e seu tio sabemos o quanto ele sofreu depois que sua mãe se foi. A vida para ele nunca mais teve sentido, ele nunca mais conseguiu amar outra mulher.

No fundo, eu sabia que ela estava dizendo a verdade, mas não era fácil para mim aceitar que meu pai não era o homem que eu crescera acreditando que fosse. Eu não sabia quase nada sobre ele durante todo o tempo em que cresci. E agora eu ficava sabendo que ele era um homem egoísta, mulherengo e tóxico. Minha tia arregalou os olhos ao ouvir aquilo:

-Não diga isso, Valentina, porque a vida particular dele era a vida particular dele, e você... você era a melhor parte dele.  Otávio faria qualquer coisa para te proteger.

Os olhos dela se encheram de água, e percebi que minha tia Atena também tinha sido apaixonada pelo meu pai. Ao falar dele, os olhos dela brilhavam, seus lábios tremiam. Ela estava a ponto de explodir. Aproximei-me dela:

-Tia Atena... você era apaixonada pelo meu pai não era?

Ele enrubesceu e tentou negar, mas eu insisti:

- É claro que era. Senão, por que teria passado tempo tomando conta de mim, uma menina que sequer é seu parente de sangue?

Ela levou a mão à garganta, e vi o rosto dela se transformar em uma careta, antes que as lágrimas pulassem de suas órbitas. Fiquei sem saber o que fazer, então permaneci sentada perto dela, sem tocá-la. O choro de tia Atena era convulsivo.

- Que baita cliché, não é, uma mulher se apaixonar pelo próprio cunhado. Sim, você está certa, Valentina, eu fui apaixonada por ele, mas ele nunca ficou sabendo. E eu te peço que jamais comente nada com seu tio Heitor. Ele não merece isso.

Eu me levantei, caminhando até o outro lado da sala, e me voltei para encará-la:

-E quanto a Natália, tia?

Ela enrubesceu, respirando profundamente:

-Ela foi amante de seu pai enquanto ele era casado com sua mãe. Aconteceu nos últimos dois anos de casamento, antes de sua mãe ir embora. Ela já estava doente na ocasião, e acho que Natália foi uma válvula de escape.

-Pensei um pouco sobre aquilo antes de perguntar:

-E onde ela está agora?

-Não sei. Ele deixou de vê-la depois que sua mãe morreu. Nunca mais se encontraram.

-Você a conheceu?

-Superficialmente. Ela era frívola, engraçada... como eu disse, acho que foi apenas uma válvula de escape.

Concordei com a cabeça, pensando que a minha ida toda, eu nunca soubera muito sobre meu próprio pai. Caminhei de volta até o sofá, e segurei as mãos de tia Atena, fazendo-a me olhar de frente:

-O que mais eu não sei sobre esta família, tia Atena? Seria um bom momento para me contar.

Ela negou com a cabeça, colocando as mãos sobre o colo:

-Não há mais nada, eu juro. Mas agora seu pai se foi, tudo isso ficou no passado. Você deveria deixar o passado no passado.

Achei que aquele era um bom conselho, mas era mais fácil falar do que fazer. Pensei que eu precisaria de tempo para digerir tudo aquilo. Então, fui para o meu quarto. Tirei a roupa e entrei na banheira, enchendo-a com espuma de banho e água bem quente. Foi reconfortante o calor da água sobre a minha pele, que ficou avermelhada. Quando saí da banheira, uma hora e meia depois, a água estava fria. Depois, enfiei uma camiseta velha que tinha sido de meu pai sobre a cabeça e me deitei na cama desarrumada da noite anterior. O sono foi quase instantâneo. Há muito tempo eu não dormia daquele jeito.

Acordei na manhã seguinte com o barulho do aspirador de pó. Passava das dez da manhã. Levantei-me, escovei os dentes e fui para a sala, onde minha tia Atena estava finalizando a limpeza. Tudo estava limpo e organizado. Ela ergueu os olhos para mim, apontando para a cozinha:

-Bom dia, querida. Tem café e panquecas na cozinha. Sirva-se enquanto arrumo o seu quarto.

-Bom dia, tia... não precisava arrumar nada...

-A casa estava uma bagunça, e muito empoeirada. Parecia que não via uma faxina há meses. Aproveitei e coloquei as mantas do sofá ao sol, não se esqueça de recolhê-las mais tarde. Parece que vai chover.

Me lembrei que a última faxina que eu fizera tinha sido mesmo há meses.

Sentei-me à mesa, e devorei as panquecas. Meu apetite tinha voltado. A casa cheirava bem, e o chão de madeira brilhava de novo. Sobre o fogão, meu almoço me esperava entre dois pratos sobre uma panela de água para que eu o esquentasse em banho-maria quando tivesse fome. Me senti grata. O ruído do aspirador recomeçou, e quando acabei de comer, cerca de dez minutos mais tarde, minha tia passou carregando minhas roupas de cama:

- Troquei sua roupa de cama, vou colocar esta para lavar. Mais tarde, estenda-a para terminar de secar. Daqui em diante, você terá que fazer essas coisas sozinha ou então contratar alguém.

Eu não disse nada, mas estava acostumada a fazer metade do serviço de casa. Às vezes, tínhamos uma arrumadeira, mas na maior parte do tempo, eu e papai nos virávamos sozinhos.

Ela desapareceu em direção a área de serviço, e segundos depois escutei o barulho da máquina trabalhando. Depois que terminou de arrumar tudo, tia Atena me abraçou, dizendo:

-Se precisar de mim, sabe como me encontrar. Quer que eu passe aqui mais tarde?

Neguei com a cabeça:

-Não tia, obrigada. Obrigada por tudo, obrigada por me dizer a verdade.

Ela saiu e fechou a porta atrás de si.

Eu fiquei sozinha.

Começaria aquele que foi o dia seguinte ao funeral de meu pai, e o resto da minha vida sem ele.



(continua)




 

5 comentários:

  1. Gracias por compartir tus pensamientos con nosotros

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  2. Olá Ana.
    Vim ler um pouco aqui
    e deixar meu abraço
    de feriado
    Bjins
    CatiahoAlc.😍💖

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  3. a passar por cá para acompanhar a história!
    Isabel Sá
    Brilhos da Moda

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  4. É esmagador quando se descobre que parte da nossa vida foi sustentada na mentira e omissão.
    Cada vez mais presa na história.
    Brisas doces *

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